O facto vem do Brasil e com ele a
sugestão. No âmbito de uma operação judiciária denominada “Lava Jato” tem sido
feito uso generalizado da “delação premiada”. Resultados, vários: no imediato,
denúncias em cascata, prisões em sequência, atingindo já o coração do sistema
político governante, não se sabendo se é este o investigado ou o tecido
empresarial sob suspeita; para além disso, o surgimento de advogados
especializados nesta forma de delação, justificando publicamente a mesma como
uma forma de defesa como outra qualquer, porque o delator obtém benefício na
pena expondo o delatado a ser punido: redução da prisão em 2/3 ou substituição
da prisão por penas mais benignas ou ao limite a impunidade, para além de
outros «prémios acrescidos».
O debate está em aberto e estou
certo que contagiará em Portugal aqueles sectores do judiciário que louvaram o
estatuto de “arrependidos” – mesmo quando se generalizou a partir do núcleo
inicial para o combate ao terrorismo – e ensaiaram recentemente a entronização
da “pena negociada”, forma tida por análoga à da justiça norte-americana. E na
escola americana se formou a linha da frente dos magistrados brasileiros que
agora avançam, com amplo respaldo mediático, para a nova fase da operação,
denominada “ninguém pode dormir”.
A delação premiada tem do ponto
de vista da eficácia penal notórias vantagens: abre o apetite aos arguidos necessitados
que dão a morte aqueles que, julgam, saciarão a fome probatória dos
investigadores. E faz progredir a investigação com celeridade e redução de
custos.
O problema são os seus “quês”. Já
nem falo no moral, porque essa é hoje, tempos de pragmatismo, tida como uma excrescência
do passado: permitimo-nos, dizem, o que censuramos aos filhos na escola. Nem
refiro quanto estão em causa princípios que pareciam universais da Justiça
Penal, porque o mundo mudou e com ele endureceu certo crime e está a endurecer toda
a Justiça.
Refiro-me aos riscos deste
expediente para a própria investigação. Este meio de obtenção da prova penal –
porque a delação não é prova em si – é obtido com promessa de vantagem e sob
receio de punição. O delator que veja provar-se o denunciado obtém, no mínimo,
redução da pena, o que viu ser infirmado o que contou vê a sua pena agravada.
Ora, não se tratando de declarações livres, e muitas vezes não sendo
espontâneas, fica em aberto saber se não integram o conceito de prova proibida.
Por outro lado, meio sugestivo que é, abre a porta à efabulação, que pode
lançar a investigação por caminhos sinuosos e enganadores.
Tal como a concebe a justiça
brasileira, esta colaboração passa por um acordo em que se envolve o próprio
juiz, homologando-o. E significa que o delator renuncia ao direito ao silêncio
e se obriga a prestar declarações.
Até aqui tem havido o benefício
de uma jurisprudência complacente com isto, que data já de 1990, com a Lei dos
Crimes Hediondos, e desde 1998 se tem vindo a estender ao universo da
criminalidade económico-financeira. Mas assim o seu uso leve a situações em que
a convicção judicial expressa na sentença se firme mais na íntima convicção do
juiz baseada no assim delatado do que na demais prova que o confirme, assim
podem os tribunais superiores entender que se transpôs a linha do admissível.
O problema é que, se no Brasil,
tudo isto é muito rápido – e as condenações estão já a surgir e pesadas – em
Portugal tudo pode levar anos. E, anos depois, surgirem as anulações decretadas
em recurso. Com as consequências e as inconsequências do costume.
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Fonte da imagem aqui. O original do texto foi publicado no jornal Sol.