«A colaboração premiada continua,
qual maré negra, a fazer no Brasil as suas vítimas. Mas já tem, na sua cauda, a
sombra do que poderá ser-lhe fatal: o risco de transformar-se de meio de
obtenção da prova, tal como prevê o artigo 3º da lei que a regula – a 12.850/13
– em meio de prova em si e os tribunais condenarem, não como base na prova que
o arguido delator permite encontrar com a sua denúncia – com isso beneficiando-se
na pena e até dela se livrando – mas sim na mera delação em si, sem mais; e os
tribunais, em recurso, virem depois a anular o julgado.
A este risco, que foi claramente
enunciado pelo juiz (ministro como ali se designa) Dias Toffoli na recente
decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro, julgando em plenário, segue-se
um outro, o facto de a delação poder permitir a manipulação das regras de
competência dos tribunais, gerando, em suma, através da suposta conexão de
processos, que causas diversas se vão somando como da jurisdição do mesmo juiz.
O tema, gerando aceso debate
público em terras brasileiras, é ali encarado não como uma fria problemática
estritamente jurídica – saber qual o tribunal competente para conhecer cada um
dos casos delatados, se o mesmo juiz, se juízes diferentes conforme o lugar dos
acontecimentos – mas como tórrida questão política e fulanizada.
É como se o «fatiamento» da
operação significasse não só o “desaforamento” do juiz que até agora tudo
centralizava na sua pessoa – o qual assim ficava privado de jurisdição quanto a
estes novos casos – mas o perigo de os novos alegados crimes sob investigação –
agora distribuídos por outros tribunais – «caírem no esquecimento», como
argumentou o juiz Sérgio Moro, prevenindo publicamente quanto ao risco que a
operação corre se atribuída doravante a outras mãos que não as suas. E cita
sintomaticamente as «mãos limpas» italianas.
Em Portugal tudo isto é conhecido
nas suas várias vertentes, mas – terra de “brandos costumes” – ainda que com
impacto menos luxuriante.
Menos exuberante, o estatuto de
“arrependido” tem feito aqui também as suas “vítimas”: se bem que, como o
próprio nome o sugere, ainda se pressuponha da parte daquele que supostamente
se arrependeu uma pelo menos aparente contrição de alma e a denúncia de outros
surja assim como espécie de purga interior e o colaboracionismo expressão de
alinhamento com as forças do Direito – trazendo para o sistema judiciário
recônditos religiosos do pecado, sua culpa e expiação – na prática, o requisito
torna-se formal e, assim, o próprio rancor vingativo ou a ânsia de “safar a
própria pele” a troco de “dar outros à morte” são relevados como se de virtude
teologal estivéssemos a falar, aceitando Deus negociar com o próprio Diabo.
E, por igual, as regras de
conexão processual foram também usadas quer no sentido de multiplicar processos
sob o mesmo sujeito – fazendo-o sujeitar-se a julgamentos sucessivos e a
sucessivas condenações que, ao limite, podem equivaler a prisão perpétua, como,
ao invés, no sentido de autuar num só processo casos diferenciados em que o
ponto de referência comum, por mais ténue que seja, traz o benefício ilusório
de um megaprocesso, mastodôntico e, por isso, amplamente mediático sujeito
sempre ao mesmo tribunal.
Em ambos os casos o legislador
teve de intervir já para introduzir alguma disciplina no sector porque, em
recurso, os tribunais superiores tinham transformado os megaprocessos em mega
absolvições, fazendo fracassar o que parecia ser uma promissora “barrela”
jurídico-criminal e a “salamização” processual ia para além do tolerado em
termos de garantias constitucionais de um processo justo.
O mesmo sucedeu no que se refere
à extensão indefinida dos prazos de inquérito e à prorrogação indeterminada do
segredo de justiça. Quando o legislador português, para evitar a primeira,
legislou no sentido de que a publicidade do processo penal ocorreria, com
excepções, a partir de certo prazo razoável de inquérito secreto – retomando o
que era, aliás, uma garantia do Código de Processo Penal de 1929, promulgado
pela Ditadura Nacional – logo surgiu uma interpretação jurisprudencial em
primeira instância no sentido de que no caso das excepções poderia chegar-se ao
limite de perpetuar o secretismo contra os direitos do arguido. O caso é por
demais conhecido porque mediático, assim como a decisão da segunda instância
que a invalidou.
E está aqui a questão essencial.
Os tempos correm hoje na Justiça a
favor do pragmatismo como critério da validação: bom é o que se revela eficaz.
Princípios como o direito dos arguidos ao silêncio – que estavam adquiridos
como regras de decência processual e pedra basilar do Estado de Direito –
tornam-se, como no caso da colaboração premiada brasileira, em obrigação de
prestar declarações, assim o arguido em causa tenha negociado com as
autoridades judiciárias que, em troca de favor para si, denunciará outros mais
apetitosos. E há quem, entre nós, esteja sugestionado já pelos seus resultados
estatístico-punitivos.
Mais: são tempos de chumbo de apoucamento
dos direitos dos arguidos, tidos por privilégios passadista de uma justiça elitista
que não cuida suficientemente das anónimas vítimas: por causa do pouquíssimo
para estas há quem promova o muitíssimo menos para aqueles.
Centremo-nos, porém, no tema que
me traz aqui: regras como a do “juiz natural”, segundo a qual o juiz tem de
estar predisposto antes do processo entrar em juízo e ser escolhido para ele segundo
regras gerais e abstractas e por sorteio, tornaram-se no “juiz pré-determinado”,
cumulando competências e somando casos sob a sua jurisdição. E no caso
brasileiro, como já foi no nosso antigo Direito, com competência para instruir
e julgar.
Os séculos somados de anos de
cadeia das suas condenações, sendo notícia, tornam-se a medida da excelência do
sistema; as absolvições em recurso, quando ocorrem, não merecem sequer uma
linha no espaço mediático, nem como discreta necrologia processual.
Em suma: «a prorrogação de
competência do juiz processante» com fundamento não na conexão material dos casos
mas sim no «mero encontro furtivo da prova» - e ademais da prova por delação –
foi agora barrada pelo Supremo brasileiro. É um sinal de que os tribunais
superiores, tanto lá como cá, começam a intervir, mesmo em território sensível,
e evidência, sobretudo, de na dialética judiciária, o respeito pela legalidade
do processo ainda condicionar a eficácia do processado. O que se regista com
aplauso.
A concentração de competência
judiciária dá poder. Todo o poder é, porém, por populares que sejam os seus
resultados, ilusório e precário.
Tudo passa, mesmo a vã glória de
mandar.»
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Artigo originariamente publicado no jornal "Público".
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