Não há apenas a contemporaneidade, também aquilo que o tempo soterrou mas permite reflectir. Isso torna-se imperioso num tempo, como o que vivemos, em que às novas gerações falta consciência histórica e sobretudo vontade de compreenderem que aquilo que hoje está na lei, ou no sentir da jurisprudência, resulta de um sedimentar histórico até se chegar aqui ou, quantas vezes, de tumultuosa luta jurídica por um outro Direito.
Entre o muito que encontrei em alfarrabista, esta pequena separata do Doutor Adelino da Palma Carlos, breve alegação de recurso para a Relação de Lisboa, merece ser revisitada, como excursão a um Direito que foi para que ganhe sentido o Direito que está e a vida como hoje se vive.
Era tempo em que os advogados publicavam as suas peças processuais. O hábito decaiu porque se considerou que era uma forma indevida de publicidade. Olhando para o mundo actual, em que a incessante publicitação ocupa todo o espaço disponível, é irónico.
Era tempo em que as peças processuais eram publicadas com os nomes dos envolvidos e o mesmo sucedia quanto à jurisprudência, pois não se via então gravame à honra das pessoas nem lesão do seu direito à privacidade.
Era tempo em que a alegação era breve [esta tem 29 páginas em oitavo] e não careciam de conclusões.
No caso, a alegação responde a um recurso interposto pelo Ministério Público.
O caso envolvida um funcionário, que fora condenado pelo crime que então se chamava de suborno e estava tipificado no artigo 318º do Código Penal.
Ao tempo, a matéria de facto dada como provada pelo colectivo era definitiva «ainda que não corresponda à prova produzida, como, neste caso, infelizmente aconteceu, na opinião de quantos acompanharam o julgamento», refere o alegante.
O núcleo do argumento da alegação é que a norma incriminadora em causa exigia ao agente «fazer» um acto de suas funções » e no caso aquilo que era imputado ao alegante era, numa parte da condenação, ter-se abstido de fiscalizar [na outra já a conduta era comissiva na forma de inutilizar ou extraviar processos].
Para além disso [precisamente em função deste segundo segmento da condenação, a conduta positiva] alegava-se que a mesma estava prevista em outro preceito do Código Penal, o artigo 312º e não o referido artigo 318º sendo «inadmissível que se conceba a existência, no Código de duas normas punindo a mesma infracção».
Lendo o argumentário, não ficam por aqui os motivos de reflexão.
Curioso [face aos parâmetros actuais] é que se pudesse argumentar que «um empregado dos serviços de fiscalização corporativa, no caso da Intendência Geral dos Abastecimentos] não fosse funcionário público e que para fins penais essa distinção [que tinha colhimento no Decreto-Lei n.º 35809, de 16 de Agosto de 1946, por curiosidade ver aqui] relevasse [e assim o considerou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Fevereiro de 1948, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, ano V, página 165]. Hoje, ante a noção amplíssima de funcionário público para efeitos criminais o argumento cairia por terra.
Igualmente interessante que outro tema da alegação haja sido o colocar em crise que, no caso, se tenha tratado de «acto de suas funções» [assim se referia o artigo incriminador em apreço] com fundamento na ideia que tal implicaria tratar-se de acto da competência legal do funcionário. ~
Em prol desta tese o ilustre professor de Direito mobiliza toda a sua erudição: desde a origem histórica do preceito [o Código Criminal «intentado pela Rainha D. Maria I, de Pascoal de Melo, aos Códigos Penais Francês de 1810 e Brasileiro de 1830 e o comentário do próprio Pascoal de Melo e de Levy Maria Jordão, os tratadistas franceses então em voga Chaveau & Hélie e Garraud, bem como o argumento histórico nacional, desde as Ordenações, das Afonsinas às Filipinas, o Direito Romano expresso na Lex Julia repetundarum, e, enfim, a opinião do alemão von Lizt].
Ciente da necessidade de reforçar a razão que tentava sustentar, Palma Carlos convoca por igual o Dicionário de Cândido de Figueiredo para o qual o «de», enquanto preposição, «exprime restricção da palavra que precede». Assim, o extravio de processos não seria acto «de» função.
No centro do tema, pressente-se, já está, porém, aquilo que viria a ditar a formulação actual da norma sobre corrupção. E, em honestidade intelectual, o alegante reconheco-o: «[...] há hoje quem sustente que na repressão do suborno deve punir-se não só a prática do acto da função, mas também a de todos os actos contrários aos deveres de função; e é possível que a defesa social justifique esta orientação, em face da onda de imoralidade que cobre o mundo».
Ao tempo, o alegante ainda poderia invocar, em lógica política, como o fez já na parte decisiva da sua peça processual: que o artigo 177º do Código Penal Francês era idêntico ao nosso mas quando «em França, como entre nós, a onda de corrupção alastrou, quando as liberdades individuais foram cerceadas e o livre direito de crítica ficou sufocado», então, o Governo de Vichy [de colaboracionismo ao invasor nazi] havia acrescentado em 16 de Março de 1943, ao mencionado artigo do Código Penal uma alínea que passara a abranger o caso de se tratar de acto que «ainda que fora das atribuições pessoais da pessoa corrompida, foi ou teria sido facilitado pela sua função ou pelo serviço que assegurava», modificação que seria mantida por Ordenança de 8 de Fevereiro de 1945, ainda a guerra não havia terminado.
Veja-se a honradez da conclusão. Fiel ao seu papel de advogado [o de defender o acusado de suborno] mas não abdicando da sua condição de cidadão, Adelino da Palma Carlos [professor de Direito, que era então Bastonário da Ordem dos Advogados e viria a ser o primeiro-ministro da Democracia] escreve: «É mau o sistema? Decerto! Mas a culpa não é dos juízes; nem a deficiência da lei lhes dá o direito de passarem a criar direito, ou a punir, por preceito inaplicáveis que a lei não contempla».