Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Inconstitucional, o Fisco bifronte


Com um voto de vencido o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 298/2019 julgou «inconstitucional a interpretação normativa dos artigos 61.º, n.º 1, alínea d), 125.º e 126.º, n.º 2, alínea a), todos do Código de Processo Penal, segundo a qual os documentos fiscalmente relevantes obtidos ao abrigo do dever de cooperação previsto no artigo 9.º, n.º 1, do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira e no artigo 59.º, n.º 4, da lei geral tributária por uma inspeção tributária realizada a um contribuinte, durante a fase de inquérito de um processo criminal pela prática de crime fiscal movido contra o contribuinte inspecionado e sem o prévio conhecimento ou decisão da autoridade judiciária competente, podem ser utilizados como prova no mesmo processo» [ver o extracto aqui e o texto integral aqui].
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A solução achada foi fundada na ponderação da regra do nemo tenetur [direito ao silêncio e à não auto-incriminação], configurada, porém, ante as circunstâncias específicas do caso e não como decorreria de uma leitura apressada e superficial do extracto acima referido, com uma valia genérica para todas as situações. Efectivamente o acórdão reconheceu que:

«A aludida «compressão do princípio nemo tenetur se ipsum accusare» e a consequente admissibilidade da utilização como prova em processo penal fiscal dos documentos obtidos em resultado da inspeção tributária foi considerada constitucionalmente admissível, atento um juízo positivo quanto à verificação dos requisitos de legitimidade das restrições a direitos, liberdades e garantias.»

Mas a situação do caso em apreço era porém específica, como o consignou a decisão a que nos reportamos, pois está-se ante um fisco bifronte, autoridade tributária e órgão de polícia criminal:

«É evidente que, numa situação como a dos presentes autos em que está em causa a inspeção ao contribuinte realizada quando já corre contra ele um inquérito criminal tendo em vista a comprovação de factos que consubstanciam um crime fiscal, a própria ideia de mecanismos flanqueadores é, em si mesma, muito discutível. Com efeito, encontrando-se pendente o processo criminal, é no respetivo quadro que as respostas para a utilização no mesmo de documentos previamente obtidos ao abrigo do dever de colaboração têm de ser encontradas. Com referência a tais documentos, já nada há para flanquear: a única questão a esclarecer é a de saber se os mesmos podem ser utilizados ou não.»

E nesta dimensão concreta entendeu o Tribunal ser de ponderar o tema de modo próprio:

«Com efeito, a exigência de entrega de documentos é feita pela Administração fiscal num momento em que a mesma já desempenha um duplo papel, como inspeção tributária e como órgão de polícia criminal. Ora, dada a diversidade de regimes aplicáveis a cada um desses papéis, não é indiferente para determinar as possibilidades de atuação, seja da Administração aquilo que esta pode exigir , seja do contribuinte aquilo que ele está obrigado a fazer , saber qual a função concretamente em causa numa dada situação. Deste modo, utilizar no processo penal documentos obtidos coativamente do contribuinte por via da inspeção, que não poderiam ser obtidos do mesmo modo seguindo a via do processo penal, significa transformar a colaboração do contribuinte num meio de obtenção de prova contra si próprio. Do ponto de vista deste último, e nessa medida, há uma atuação objetivamente enganosa porque camuflada por parte da Administração fiscal, suscetível de relevar nos termos do artigo 126.º, n.º 2, alínea a), do CPP: o contribuinte é levado a pensar que fornece os documentos estritamente para os fins específicos da inspeção, uma vez que é interpelado ao abrigo do dever de cooperação previsto na LGT e no RCPITA, apurando-se depois que, afinal, os mesmos documentos são utilizados num processo criminal já existente à data da solicitação da entrega dos documentos e no âmbito do qual tal solicitação não poderia ser feita sob a ameaça de sanções.A instrumentalização do dever de colaboração decorrente da utilização dos documentos para um fim diferente daquele para o qual foram entregues e, portanto, o abuso do mesmo dever, é patente


[...]

«Verifica-se, por conseguinte, uma relação desequilibrada entre os custos e os benefícios da restrição em análise, uma vez que inexiste uma articulação racional suficiente entre os custos ou desvantagens a suportar pelo titular do direito o contribuinte, suspeito ou arguido e os benefícios ou vantagens que a mesma permite alcançar para o interesse público. Por isso, tal restrição do direito à não autoincriminação ínsito no princípio nemo tenetur se ipsum accusare mostra-se desproporcionada e, como tal, constitucionalmente ilegítima.»

Foi assim que o Tribunal considerou existir inconstitucionalidade na «interpretação» [fórmula interessante porque no passado o mesmo Tribunal rechaçou tal configuração ao clausular que não lhe cabia sindicar interpretações inconstitucionais mas sim normas eventualmente inconstitucionais].

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Interessante, por isso, e a ganhar assim compreensão, a perspectiva expressa pelo Presidente da Tribunal na sua declaração de voto:

«Votei o acórdão por concordar inteiramente com a decisão: julgar inconstitucional a norma por violação do princípio nemo tenetur si ipsum accusare.  Segundo o qual, em processo penal, ninguém pode ser coercivamente obrigado a contribuir ativamente para a sua condenação.
Isto sem prejuízo de entender que este mesmo resultado final poderia e deveria alcançar-se no contexto de um outro paradigma de compreensão e conjugação dos dispositivos constitucionais pertinentes e aplicáveis. Um paradigma alternativo que reputo mais consistente doutrinalmente e mais ajustado normativamente. E, como tal, capaz de oferecer resposta à generalidade dos problemas emergentes nas áreas de concorrência, convergência e conflitualidade entre o direito tributário e o direito processual penal de étimo acusatório. Isto é, um paradigma que, para além de satisfazer integralmente os valores, os interesses e as reivindicações legítimas do direito tributário (tanto material-substantivo como adjetivo-procedimental), assegure ao mesmo tempo a satisfação irrestrita das exigências do privilege against self-incrimination.
Importa, nesta linha e em primeiro lugar, perspectivar o nemo tenetur como uma figura ou instituto do processo penal e operados os ajustamentos devidos, dos demais processos sancionatórios que em nada é tocado pelo cumprimento das obrigações de colaboração/verdade que o moderno direito tributário faz impender sobre o contribuinte. Não fazendo, a meu ver, sentido levar à balança da ponderação e da proporcionalidade os valores/interesses inerentes ao sistema tributário como contrapostos aos valores/interesses da justiça criminal mediatrizados pelo nemo tenetur. E a ditar, sendo caso disso, o recuo ou o sacrifício das exigências do nemo tenetur. Os problemas associados ao privilégio contra a auto-incriminação são problemas de índole exclusivamente processual-penal. Só se colocam quando, num segundo e ulterior momento, se opera uma mudança de fim. Isto é, quando os meios de prova obtidos no procedimento tributário à custa das obrigações tributárias de colaboração/verdade chegam ao processo penal e aí reivindicam a valoração como meios de prova. Provocando, como resposta, uma inultrapassável proibição de valoração, ditada precisamente pelo nemo tenetur. A haver ponderação aqui, ela só poderia ocorrer entre os valores/interesses servidos pelo nemo tenetur e outros (contra-)valores/interesses subjetivados por uma justiça criminal eficaz.
Em segundo lugar e em conformidade, é minha convicção que as relações de assincronia e arritmia que medeiam entre os cursos do processo penal e dos procedimentos tributários não têm que ditar uma resposta diferenciada às constelações típicas de que aqui curamos. E que o juízo de conformidade/desconformidade constitucional não tem de ser diferente consoante o processo penal corra à frente ou atrás do processo tributário.»