Para além de livros novos, que, quantos deles, logo se desactualizam assim uma penada do legislador ou um novo entendimento da jurisprudência, tenho também uma razoável biblioteca de antiqualhas. São estes que dão a ironia do carácter precário de muito do Direito e do esforço hercúleo da alguns que o querem servir.
No caso foi este formulário, breve nas suas 82 páginas, dedicado ao Ilustríssimo Senhor José Lopes Xisto, bacharel em Leis, e escrito por quem assinou J. M. P. Coelho. A assinatura esconde a modéstia, a amabilidade identifica aquele a quem o opúsculo vai dedicado. Um mundo de boas maneiras, o apagamento do autor em troca daquele que com a obra quer honrar.
Em advertência sob a forma de "Declaração" o autor diz que escolheu a comarca de Silves por ser aquela em que começou a «servir o officio de escrivão» mas tudo é imaginário, incluindo os nomes e o caso. Caso sinistro diga-se que termina com uma condenação à pena de morte.
Velho dirão, mas afinal, actual, quer pelas reflexões que proporciona, quer pela actualidade de alguns dos problemas.
Na altura, e o livro foi publicado em 1851, a dispersão do Direito Criminal era chaga, pois, descontadas as Leis, as Portarias, as Circulares e os Acórdãos só a Novíssima Reforma Judiciária de 1841 contava 1272 artigos, tendência de hipertrofia legislativa que já então mostrava a sua pegada e veio para ficar.
Para além disso, a moléstia da processualite, doença jurisprudencial mais apta a conhecer da formalidade que não da substância, já havia infectado o sistema de justiça. E eis que o amável escrivão tentou achar remédio que prevenisse o mal do vício de forma, através deste seu formulário. E escreve [respeitando eu a linguagem da época]: «O desgosto de vermos um processo anullado que de ordinário traz comsigo a perda de tempo - a impossibilidade de se reproduzirem certas provas - a multa - a suspensão - o descrédito, e outros damnos, foi o incitivo que nos animou a este trabalho».
Acompanhando o processo desde o seu início até à remessa à Relação, em apelação, o livro de fórmulas inaugura-se com o auto de notícia, por ele escrivão lavrado «por estar de semana», no qual narra que ao «anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesu-Christo de mil e oitocentos e cinquenta no primeiro de Janeiro do dito anno» e em «casas da residencia do Juiz de Direito da comarca» foi presente o lavrador Antonio Côrrea Pinto, solteiro, que relatou que no último dia do ano seu, pai fora surpreendido e agredido por um tal Antonio de Oliveira Fagundes, proprietário, «o qual lhe descarregára uma forte pancada na cebeça de que resultou cahir e ferido, picando-o depois com uma navalha, e que aos gritos do ferido fugira».
Ante a notícia, mandara o juiz que se procedesse a «corpo de delicto» sendo para tal intimados o Ministério Público e os facultativos, aquele para o procedimento estes para o exame. E assim, por acto do escrivão fora intimado o Procurador Régio», bem como os cirurgiões. Ajuramentados estes, ante os Santos Evangelhos, conforme determinava o artigo 903º da NRJ, examinaram o ferido, após o que o juiz ordenou a comparência do filho deste, pois o agredido estava sem sentidos, o qual relatou que, antes de perder o conhecimento, «cahindo em uma profunda languidez» o pai lhe referira que o acto haveria sido praticado por um embuçado «que lhe pareceu ser o Fagundes».
Prosseguiram as averiguações sob a forma de exame do fato do queixoso [fato então era roupa de gente e não, como hoje seria com o Novo Acordo Ortográfico, ocorrência da vida], para o que foram convocados dois alfaiates, com nomeação de depositário para o chapéu de seda preta redondo, a camisa de paninho, o colete azul de lã e a jaqueta de pano azul quase forrada de baeta azul clara, o qual assinou ato ficando adstrito ao cargo «com as penas de fiel depositario».
E em suma porquanto bastava, requereu o Delegado «que se tome querella» contra o Fagundes «por ser o author e prepetrador do atroz crime de ferimentos».
E eis que «nesta cidade de Silves, e casas da residência do Juiz de Direito o Dr. José Maria de Mello, onde eu escrivão vim, ahi foi presente o Delegado Regio nesta comarca, o Dr. José Maria Ferreira, e por elle foi ddito que vinha a Juizo dar sua perfeita querella contra Antonio d' Oliveira Fagundes», o que fez indicando testemunhas.
Ouvida a prova testemunha e lavrada "assentada" da audição, foi o sumário dado como conclusão de determinado pelo juiz, segundo o qual «As testemunhas do presente summario até aqui inquiridas obrigam à prisão, e livramento a Antonio de Oliveira Fagundes», por crime previsto do livro quinto das Ordenações Filipinas [título 35, § 4º, 5º «e outras Leis», despacho de pronúncia que foi logo comunicado.
E assim termina a primeira parte deste episódio que o formulário acompanha, com toda a tramitação subsequente até à sentença capital, a qual é referida na sentença como excepcional por força de Decreto de 12 de 1801 - «que ordena que os Juizes apliquem a pena e morte só em último caso» - mas que no caso ele juiz decretava «na pena de morte natural para sempre na forca: que será levantada no mesmo sitio onde de cometteo o crime».
Cruel decisão, esta, mereceu, no entanto, ao magistrado esta nota de aparte: «[...] Tal é o desgraçado mister d' um Juiz que devendo ligar-se à Lei, não encontra nesta, senão a morte fulminada contra os homicidas». E isto porque, no seu entender: «é de esperar que quando entre nos se organize um Codigo Criminal se ilimine inteiramente aquella pena, substituindo-a ou pela prisão perpetua, ou milhor ainda pelo degredo [...]