A Associação Sindical dos Juízes Portugueses formulou uma proposta de
criminalização da ocultação da riqueza durante o período de exercício de altas funções públicas. O texto pode ser lido
aqui.
Trata-se de propostas de redacção relativamente à Lei 52/2019, de 31 de Julho [cujo texto pode ser consultado aqui], complementadas com considerações sobre a necessidade, oportunidade e constitucionalidade dos temas subjacentes à noção que visa ser alternativa à derrotada ideia da criminalização do enriquecimento ilícito, que fora reprovada pelo Tribunal Constitucional [Acórdão 377/2015], como se pode ler aqui.
O texto está estruturado numa linha de diálogo crítico ante a iniciativa governamental consubstanciada na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção [2020-2024, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 37/2021, RD nº 66, Série I, 6ABR2021], em cuja discussão pública a ASJP participou [mediante documento entre na Assembleia da República a 16 de Outubro de 2020], quer pela recuperação pública que o dito órgão associativo lançara em 2011 através de um jornal diário.
Clarificando a noção de «altas funções públicas», o documento refere que com ela se abrange os «sujeitos das obrigações declarativas da Lei 52/2019, de 31 de Julho», ou seja:
Artigo 2.º
Cargos políticos
1 - São cargos políticos para os efeitos da presente lei:
a) O Presidente da República;
b) O Presidente da Assembleia da República;
c) O Primeiro-Ministro;
d) Os Deputados à Assembleia da República;
e) Os membros do Governo;
f) O Representante da República nas Regiões Autónomas;
g) Os membros dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas;
h) O
s Deputados ao Parlamento Europeu;
i) Os membros dos órgãos executivos do poder local;
j) Os membros dos órgãos executivos das áreas metropolitanas e entidades intermunicipais.
2 - Para efeitos das obrigações declarativas previstas na presente lei, excecionam-se do disposto na alínea i) do número anterior os vogais das Juntas de Freguesia com menos de 10 000 eleitores, que se encontrem em regime de não permanência.
3 - Para efeitos das obrigações declarativas previstas na presente lei são equiparados a titulares de cargos políticos:
a) Membros dos órgãos executivos dos partidos políticos aos níveis nacional e das regiões autónomas;
b) Candidatos a Presidente da República;
c) Membros do Conselho de Estado;
d) Presidente do Conselho Económico-Social
Artigo 3.º
Altos cargos públicos
1 - Para efeitos da presente lei, são considerados titulares de altos cargos públicos:
a) Gestores públicos e membros de órgão de administração de sociedade anónima de capitais públicos, que exerçam funções executivas;
b) Titulares de órgão de gestão de empresa participada pelo Estado, quando designados por este;
c) Membros de órgãos de gestão das empresas que integram os sectores empresarial regional ou local;
d) Membros de órgãos diretivos dos institutos públicos;
e) Membros do conselho de administração de entidade administrativa independente;
f) Titulares de cargos de direção superior do 1.º grau e do 2.º grau, e equiparados, e dirigentes máximos dos serviços das câmaras municipais e dos serviços municipalizados, quando existam.
2 - Para efeitos das obrigações declarativas previstas na presente lei são equiparados a titulares de altos cargos públicos:
a) Os chefes de gabinete dos membros dos governos da República e regionais;
b) Os representantes ou consultores mandatados pelos governos da República e regionais em processos de concessão ou alienação de ativos públicos.
A intervenção da ASJP segue num caminho diverso daquele que vinha sendo proposto quando das precedentes iniciativas quanto à criminalização do então denominado enriquecimento ilícito, visando claramente evitar as questões de constitucionalidade que se haviam suscitado a propósito desta figura. A propósito consta do documento:
«Parece razoavelmente evidente que os comportamentos potencialmente corruptivos
relacionados com o exercício de altas funções públicas, independentemente da sua tipificação
penal, apresentam, em abstracto, um denominador comum: aquisição e ocultação de
património incongruente com os rendimentos conhecidos no período coincidente com o
exercício das funções. É do senso comum que as pessoas que adquirem rendimentos ou
património por via da prática de crimes, não o declaram às autoridades nem os colocam em
posição de serem facilmente detectados. Não é, por isso, temerário estabelecer uma relação
causal de alta probabilidade entre a ocultação intencional de riqueza adquirida naquele período
e a existência uma prévia acção ilícita.
Por outro lado, conhecem-se as dificuldades de investigar e provar a prática de crimes de
corrupção e conexos no exercício de altas funções públicas. É reduzido o número de casos
investigados e punidos, quando comparado com a percepção existente sobre a dimensão do
fenómeno. Daí resulta que as normas penais incriminadoras e a multiplicação dos tipos legais
para prevenir e reprimir comportamentos dessa natureza são reconhecidamente tidos como
ineficazes.
Foi precisamente para superar esta dificuldade que surgiram as tentativas anteriores de
criminalização do enriquecimento ilícito. Sendo razoável supor, com base nas evidências do
senso comum, a existência de um nexo causal entre os actos corruptivos e o enriquecimento
incongruente e não sendo viável, em muitas situações, punir o fenómeno pela efectiva
comprovação da ilicitude do acto causal, procurou-se fazê-lo através da incriminação do seu
resultado objectivo.
Essa não é, contudo, uma via constitucionalmente aceitável. O Tribunal Constitucional, através
dos acórdãos nºs 179/2012 e 377/2015, julgou inconstitucionais as normas que visavam criminalizar o enriquecimento ilícito ou injustificado, aprovadas, respectivamente, pelos
Decretos da Assembleia da República nºs 37/XII e 369/XII. Para o Tribunal Constitucional uma
norma dessa natureza (i) não respeita o princípio da proporcionalidade, por ausência de bem
jurídico definido na esfera de protecção da norma e por violação do princípio da
subsidiariedade do sistema penal; (ii) não respeita o princípio da legalidade, pois não identifica
a acção ou omissão proibida e (iii) não respeita a proibição da presunção de inocência, nos
segmentos da inversão do ónus da prova, do in dubio pro reo e do direito ao silêncio e à não
auto-incriminação.
Deve, pois, ter-se como adquirida e indiscutível a inconstitucionalidade de qualquer solução de
criminalização do enriquecimento ilícito ou injustificado, com o sentido das anteriores
tentativas legislativas.»
Perante tal perspectiva [a de não aceitar qualquer solução que assente na criminalização], sugere a Associação;
«O sentido da proposta da ASJP é, portanto, outro. Uma proposta que, a bem da necessidade
de clarificar conceitos e não inquinar a discussão pública, abandona de vez designações como
“enriquecimento ilícito”, “enriquecimento injustificado” “enriquecimento incongruente” ou
outras equivalentes.
O que está em causa, primordialmente, não é apontar o foco para o desvalor da ilicitude do
enriquecimento no exercício de altas funções públicas, mas sim reforçar a protecção do bem
jurídico da transparência no exercício dessas funções, aperfeiçoando os mecanismos previstos
na LOD de declaração da situação patrimonial dos titulares de altas funções públicas e de
responsabilização criminal em caso de incumprimento.
Consequentemente, por razões de coerência sistemática e de melhor identificação do bem
jurídico protegido, defende-se a alteração das normas pertinentes da LOD e não a criação de
qualquer tipo criminal autónomo, a inserir no Código Penal ou noutro diploma legal.»
E assim, eis o que vem proposto:
Artigo 14º (actualização da declaração)
Número 5 (novo):
Nas declarações previstas neste artigo deve constar também a
descrição de promessas de vantagens patrimoniais futuras que possam alterar os
valores declarados, referentes a alguma das alíneas do nº 2 do artigo anterior, em
montante superior a 50 salários mínimos mensais, cuja causa de aquisição ocorra
entre a data de início do exercício das respectivas funções e os três anos após o seu
termo.
Explicação: Visa-se incluir nas obrigações declarativas a que se refere o artigo 14º, que são
aquelas que permitem fiscalizar as variações ocorridas no período já considerado relevante por
lei, as promessas de obtenção de vantagens futuras com valor económico. Sem uma norma
como esta, a protecção do bem jurídico da transparência no exercício do cargo é incompleta,
na medida em que o recebimento da vantagem depois de 3 anos após a cessação de funções
pode traduzir-se num aumento significativo de riqueza não sujeita a qualquer tipo de
fiscalização ou sanção.
Número 6 (novo): Nas declarações previstas neste artigo deve constar também a
indicação dos factos geradores das alterações que deram origem ao aumento dos
rendimentos ou do activo patrimonial, à redução do passivo ou à promessa de
vantagens patrimoniais futuras.
Explicação: Na declaração correspondente ao início do cargo a indicação dos factores
geradores da riqueza não é relevante para a protecção do bem jurídico em causa na LOD.
Porém, nas declarações subsequentes, previstas no artigo 14º (60 dias após a cessação de
funções, 30 dias após as alterações patrimoniais relevantes e 3 anos após o fim do exercício de
funções), que permitem fiscalizar as variações ocorridas no período correspondente, considera-se que as declarações devem também indicar a fonte da riqueza adquirida, visando aumentar
a protecção do bem jurídico e tornar mais efectiva a possibilidade de fiscalização.
Artigo 18º (incumprimento das obrigações declarativas)
Números 4, 5, 6 e 7: Eliminar.
Explicação: A tipificação penal da omissão de entrega de declaração ou de ocultação de
rendimentos e património deve ser feita em norma autónoma.
Artigo 19º
(desobediência qualificada e ocultação intencional de riqueza)
1 – Sem prejuízo do disposto do artigo 18º, a não apresentação intencional das declarações
previstas nos artigos 13º e 14º, após notificação, é punida por crime de desobediência
qualificada, com pena de prisão até 3 anos.
2 – Quando a não apresentação intencional das declarações referidas no número anterior não
tenha sido acompanhada de qualquer omissão de declaração de rendimento ou elementos
patrimoniais perante a autoridade tributária durante o período do exercício de funções ou até
ao termo do prazo previsto no artigo 14º nº 4, a conduta é punida com pena de multa até
360 dias.
3 – Quem, fora dos casos previstos no º 1, com intenção de ocultar elementos
patrimoniais, rendimentos ou promessas de vantagens patrimoniais futuras que estava
obrigado a declarar em valor superior a 50 salários mínimos mensais, não apresentar a
declaração prevista no artigo 14º nº 2 ou omitir de qualquer das declarações
apresentadas a descrição ou justificação daqueles elementos patrimoniais ou rendimentos ou promessas de vantagens patrimoniais futuras nos termos do artigo
14º nºs 5 e 6, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
4 – Incorre na mesma pena prevista no número anterior quem, com intenção de os
ocultar, não apresentar no organismo ali previsto as ofertas de bens materiais ou
serviços a que se refere o artigo 16º, quando o seu valor for superior a 50 salários
mínimos mensais.
5 – Os acréscimos patrimoniais não justificados apurados ao abrigo do regime fiscal tributário,
de valor superior a 50 salários mínimos mensais, são tributados, para efeitos de IRS, à taxa
especial de 80%.
Explicação:
Nº 2: Visa-se aperfeiçoar a redacção por o período relevante para a fiscalização prevista na
LOD não ser apenas o correspondente ao exercício de funções, como erradamente parece
decorrer do actual nº 5 do artigo 18º, mas dever incluir também os 3 anos a que se refere o
artigoº 14º nº 4.
Nº 3: O nº 1 (correspondente ao actual nº 4 do artigo 18º) pune como desobediência a não
entrega da declaração devida após notificação para o efeito da entidade fiscalizadora.
Simplesmente, tratando-se da alteração patrimonial ocorrida no exercício de funções, prevista
no artigo 14º nº 2 al. a), a entidade fiscalizadora dificilmente notificará o titular do cargo para
apresentar a declaração em falta porque não terá, em regra, conhecimento dessa alteração.
Daí resulta que, no regime em vigor, o titular do cargo que não apresente a declaração de
alteração patrimonial superior a 50 salários mínimos mensais não é punido. Não comete crime
de desobediência porque não foi notificado previamente para a apresentar e não comete o
crime do actual artigo 18º nº 6 porque este não se refere à falta de entrega de declaração mas
sim à omissão de indicação de elementos patrimoniais ou rendimentos numa declaração
entregue. Ora, no caso de se verificar no decurso de funções uma alteração patrimonial
superior a 50 salários mínimos mensais, o que deve ser punido como ocultação intencional de
riqueza é a própria omissão de apresentação da respectiva declaração.
Nº 4: Com o regime em vigor, o titular do cargo que no período correspondente ao seu
exercício receba ofertas de bens ou serviços e não as apresente ao organismo competente, nos
termos do artigo 16º, não sofre qualquer consequência penal. Tratando-se de uma oferta com
valor superior a 50 salários mínimos mensais, a omissão dessa apresentação com intenção de a ocultar deve ser equiparada para efeitos penais à omissão de declaração de elementos
patrimoniais ou rendimentos.
No que respeita ao agravamento da pena proposto, ele resulta do facto de haver um aumento
de ilicitude da acção, resultante do maior desvalor da violação da obrigação não apenas de
declarar os rendimentos e património mas também de justificar a respectiva proveniência.
Por outro lado, mesmo com o regime actual, considera-se que existe uma desproporção nas
medidas das penas previstas nos números 4 e 6 do artigo 18º, que esta proposta também
elimina. É diferente e maior o desvalor da acção de ocultação intencional de riqueza adquirida
no período do exercício de altas funções públicas que relativamente ao desvalor da simples
omissão de entrega da declaração. No primeiro caso está em causa a falsidade de uma
declaração com intenção de ocultar riqueza, ao passo que no segundo se trata apenas da
desobediência a um comando legal, sem essa intenção.
A pena que se propõe, de 1 a 5 anos de prisão, é a que corresponde actualmente aos crimes
de falsificação de documentos por funcionários no exercício de funções, previstos nos artigos
256º nº 4 e 257º do Código Penal, que se consideram de desvalor jurídico equivalente.