Foi ontem no Salão Nobre do Supremo Tribunal de Justiça. Em homenagem a José Maria Barbosa de Magalhães li este texto. Será publicado em livro com os demais que na ocasião foram apresentados respeitantes a Figuras do Judiciário, uma iniciativa conjunta daquele Tribunal e da Associação Sindical dos Juízes Portugueses. Prosseguirei a investigação porque quero editar sobre o homenagem um livro biográfico.
No dia 14 de Outubro de 1933 um homem, jurista eminente, advogado distinto e professor de reconhecido mérito, discursou nesta mesma sala, a partir desta mesma tribuna, unindo a sua voz à comemoração dos 100 anos do Supremo Tribunal de Justiça. Da mesa faziam parte, entre tantos outros, o então Vice-Reitor da Universidade de Lisboa, António Faria Carneiro Pacheco, o ministro da Justiça, Manuel Rodrigues, presidindo António de Oliveira Salazar, que em 1941 firmaria a exoneração desse homem do ensino jurídico por motivos políticos.
Eis, pois, o cenário que é o pano de fundo à viagem que me proponho fazer sobre a vida de uma tal pessoa.
Um Homem não se resume à sua função. Ele é sempre mais do que o Homo Faber, primitivo, produtor de objectos, prestador de serviços, fabricante de ideias.
Nenhum Homem se circunscreve à sua ascendência, mesmo quando lhe é impossível escapar à hereditariedade, ainda quando o meio e a educação pesam na gestação do seu Ser.
Mesmo que, no plano intelectual, seja de uma irrequietude filha da irrequietude, como é o caso de José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães, filho de José Maria Barbosa de Magalhães, ambos quase homónimos, ambos advogados, ambos políticos, ambos aveirenses, empenhados na vida social e moral da sua Terra e do seu País. Ambos a terem vencido, com dignidade, a ingratidão e o desapontamento, antecâmaras do triunfo final.
De Barbosa de Magalhães pai realçou Egas Moniz, prémio Nobel da Medicina, numa rememoração feita em 1955, quando do centenário do seu nascimento, o nervosimo e a audácia. O mesmo se poderia dizer do filho, nascido a 31 de Dezembro de 1879, fruto do casamento com D. Maria de José de Vilhena d’Almeida Maia Magalhães.
Eis o primeiro exterior da Pessoa de quem me proponho falar. A sua vida é a intranquilidade fazedora tornada acção.
Logo na instrução com que se dotou se pressente essa pressa de existir, de quem vive contra a inexorabilidade da breve vida, ao ter visto o Pai apagar-se-lhe, pouco depois dos cinquenta anos.
Num ritmo infrene termina o Liceu aos catorze anos e meio.
Ao contrário do que se passou com a sua progenitura, a passagem enquanto estudante pela Faculdade de Direito de Coimbra, onde se licenciou em Direito no ano de 1899, deixou pouco rasto e nenhum brado. Parecia que aquele ambiente, que muitos prolongaram, durante gerações, num prorrogar do tempo da juventude, lhe era alheio, local, afinal, para mero rito de iniciação no aprendizado do que, motu proprio, edificaria na vida prática. Alcançou o grau de bacharel aos dezanove anos.
Como o referiu com ironia o seu amoroso discípulo, Adelino da Palma «tendo ido para Coimbra estudar Direito, foi isso que fez, sem se escandalizar por os lentes darem aulas e terem a impertinência de interrogar os alunos». Isso porque estava nele, enquanto estudante, já a alma de professor, a do eterno aluno, a que nasce daquilo que aquele seu biógrafo lembrou: «é facto comum que os que amam o Direito se comprazem a ensiná-lo».
Ali chegara também, à “cidade do conhecimento” como agora se apoda, em 1874, seu pai, este então com modestíssimos haveres, a estudar com a garantia de que, se não encontrasse como sustentar-se, e encontrou, seria socorrido por uma bolsa de boas vontades de alguns beneméritos de Viseu, de onde proviera.
De notável então apenas se conhece, de facto, a fundação em 1897, por ele e outros condiscípulos, da revista bimensal Argus: ideal e verdade, cujo director era Alexandre de Albuquerque.
Visto do exterior da obra feita, o meu biografado resume-se a três facetas, a de Advogado, Bastonário que foi da sua Ordem, a de professor, missão que lhe foi interrompida por saneamento político, estadista, deputado e por três vezes chamado ao desempenho de funções ministeriais ao serviço da República.
Não se lhe conhecem estados de alma na poética ou sentimentalidade na escrita. Que sejam do domínio público nem versos nem ficção. A cidadania parece ser a cacterística essencial do seu ser. Mas irei investigar, porque a esta conferência seguirá um livro sobre o Homem integral.
Comecemos pela alma da toga, a mesma em que o Bastonário Adelino da Palma Carlos, Presidente Honorário da Ordem dos Advogados, o surpreendeu, colega «verdadeiro, leal e justo», como o designou, advogado, esse «esgrimista espiritual» para usar a expressão de quem, estando tão longe de si nas ideias, estava tão perto pelo coração, o académico Luís da Cunha Gonçalves.
E para isso a pergunta metodológica que enuncia o tema: o que é a vida de um Advogado que fique como História? Afinal, lenda apenas a mitificar os factos, e escritos para o esquecimento de arquivos judiciais, poesia efémera que os coevos recordam pela pública fama e prosa provisória que só os biógrafos vão exumar à arqueologia das suas existências.
Dos grandes Advogados fica, de facto, para memória, a fantasia que se cria em torno dos casos em que intervieram. É uma simbiose de mito e representação.
Os biógrafos, sem excepção, deles ressaltam, como testemunho da figura, a pose, o gesto e a frase, a grandiloquência e o efeito. É um mundo cénico, de ribaltas e máscaras, em que o espectador se empolga, seduzido pela fantasia do enredo e do seu cenário. A substância do que patrocinaram perde-se, assim como o peso opressivo das derrotas sobre as vitórias. Do duelo judiciário fica o trocar de golpes.
Assim também com ele. Tendo sido efemeramente Notário e Conservador do Registo Civil na vila de Sintra, no ano de 1900, essa sua passagem pelo Cartório não contaria para a imagem pública. Seria sim, a de Advogado que pesaria.
Dois casos forenses ficaram célebres pela importância em si e por aquilo em que a sua actuação neles se projectou, um, o do Banco Angola e Metrópole, conhecido como o processo Alves dos Reis, outro, o caso do crime de Serrazes, um homicídio passional que ultrapassou as fronteiras do confinado local onde ocorreu.
O caso de Serrazes não tinha aptidão para extravasar o âmbito local. Mas a imprensa incendiou as paixões em torno dele. Tratava-se de um homicídio de um jovem de 26 anos, morto a tiros de pistola no seu escritório doméstico. Realizado em São Pedro do Sul, o julgamento seria anulado pelo Supremo Tribunal de Justiça e mandado repetir na comarca de Coimbra.
Ocorrência banal, tornara-se, porém, naquilo a que a Gazeta de Coimbra chamava um «caso sensacional». Barbosa de Magalhães contribuiria para essa sensação, com uma atitude insólita. Advogado nos autos, havia sido, entretanto, nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros, o que o impedia de assumir o mandato na fase de julgamento. Não hesitou, porém, em suspender-se do cargo governamental para assegurar, ao lado do seu Colega Francisco Fernandes, representação no processo, em defesa dos acusados, o genro do assassinado, sua mulher e uma criada.
O acto, que a lei não proibia, foi entretanto aproveitado pela acusação particular, a cargos dos advogados Cunha e Costa e Menezes e Castro, como uma forma de pressão sobre o poder judicial.
Foi, no entanto, na Alma Mater que os ânimos de incendiaram com tais acontecimentos em torno do caso, provindos da própria Universidade que esta, por nota emitida a 30 de Março de 1922, proclamaria o seu protesto:
«Tendo-se praticado em Coimbra, depois do julgamento do crime de Serrazes, factos que, representando a subversão dos mais elementares princípios da ordem, e de desacato às decisões judiciais, constituem ao mesmo tempo uma ofensa à dignidade de homens que cumpriram honradamente um dever de consciência, os abaixo assinados exprimem o seu protesto contra esses excessos, sem que isto signifique de modo algum uma censura ao gesto daqueles que tenham assinado o pedido de indulto, movidos unicamente por um sentimento de piedade.»
Assinavam Eugénio de Castro, Mendes dos Remédios, Oliveira Guimarães, Gonçalves Cerejeira, Guilherme Moreira, Álvaro Villela, Alberto dos Reis, Paulo Merêa, Fézas Vital, Magalhães Collaço, Oliveira Salazar, Beleza dos Santos, Manuel Rodrigues, Cabral Moncada, Mário de Figueiredo, Adelino Vieira de Campos, Serras e Silva, Elísio de Moura, Álvaro de Mattos, Novaes de Sousa, Souto Rodrigues, Bernardo Ayres, Euzebio Tamagnini, Egas Pinto Basto, Luiz Carrisso, Pereira Dias.
Já o caso do «homem que roubou Portugal», o perfil foi diverso. Tratava-se de uma emissão duplicada de notas do Banco de Portugal, encomendada em Dezembro de 1924 à casa impressora britânica Waterloo & Sons pela superior inteligência de Artur Virgílio Alves dos Reis e seus co-autores através de um mandato secreto falso alegadamente firmado por Inocêncio Camacho, cuja assinatura fora copiada pelo génio criminal daquele que já havia iniciado a sua carreira na contrafacção ao ter produzido uma licenciatura de engenharia em Oxford, Universidade que nunca frequentou.
Barbosa de Magalhães foi chamado pelo Banco de Portugal para assegurar a defesa dos interesses ofendidos pelo crime. O caso apresentava-se juridicamente complexo sobretudo pela questão da tipificação do ilícito como moeda falsa e até pela concorrência de locais de ocorrência dos factos. O procurador, Jerónimo de Sousa, teria dificuldade em sustentar o seu caso.
Pormenor curioso: em 1948, Reis envolver-se-ia em outro negócio, pelo qual seria condenado a mais quatro anos de prisão maior em 1953, após julgamento a que não compareceu, por doença grave. Faltou a este último encontro com a Justiça. Foi seu advogado Luís Infante de Lacerda Monteiro, o mesmo que, em 1960, se iniciou nas letras, assinando como Luís de Sttau Monteiro, escrevendo um livro que se chama Um Homem Não Chora.
Não se ficou por aí a sua participação em casos de nomeada. Entre outros o meu biografado participou no processo que os obrigacionistas franceses da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses propuseram em Paris contra esta, no processo que correu termos ante a Sociedade das Nações propostos pelos optantes húngaros face à reforma agrária decretada na Roménia e no processo que correu termos em Bruxelas sobre a responsabilidade dos bens dotais da viúva de Francisco Rodrigues Gomes, o qual foi proprietário da Quinta das Canas em Coimbra.