Hesitei se o deveria aprimorar antes da publicação, mas manda a coerência que o texto desta minha intervenção surja tal como foi lido na conferência sobre Direitos Fundamentais no Processo Penal, que teve lugar no passado dia 21 de Novembro no Salão Nobre da Academia das Ciências, organizada pelo Supremo Tribunal de Justiça e em que me foi dada a honra de participar com o tema recurso: impugnação da matéria de facto, vícios da decisão e in dubio pro reo.
Há momentos em que urge regredir no
tempo para, através do passado, tentar o conforto de compreender o presente, com risco de terminarmos, porventura, ante aquilo
em que o mesmo se tornou, num sentimento frustrante de desilusão. Eis o trajecto
que me proponho fazer.
Os que trabalharam sob sistema do Código de Processo Penal de 1929,
ou o estudaram depois de ter terminado a sua vigência, lembram que os recursos
penais corriam nele sob a forma de agravo; aqueles que têm presente o que se
consagrou na versão inicial do Código de Processo Penal de 1987, recordar-se-ão
que, de modo claro, a Lei de Autorização Legislativa n.º 43/86, de 26 de
Setembro, que viabilizou a aprovação de tal diploma, estatuía que ao tribunal
da relação era atribuída competência para conhecer «em apelação» dos recursos
interpostos de decisões interlocutórias e finais do juiz singular e de decisões
interlocutórias emitidas pelo tribunal colectivo» [n.º 72].
Não se tratava então de mera mudança
de etiquetas na designação da espécie de recursos, sim, implantar uma outra filosofia,
segundo a qual nos recursos haveria de privilegiar-se o mérito das questões e
não apenas os temas do procedimento.
Ora, conferindo o que mostra a
prática dos tribunais e a mentalidade que se formou em matéria do tema, conclui-se
que a lógica subjacente ao princípio da apelação entrou em necrose e subiste
hoje com escassa projecção: é, de facto, sentimento de quem pratica nos
tribunais, que as questões processuais têm mais probabilidade de serem
acolhidas em recurso do que a discussão substancial dos factos provados e não
provados, pois quanto a estas, entre a lei e a jurisprudência, foram-se
acumulando entolhos a essa possibilidade.
O tempo histórico correu,
pois, no sentido do desaparecimento da apelação penal, não só como palavra, mas
como realidade jurídica, pois ela sumiu do sistema processual como termo e como
ideia.
E, no entanto, o
Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira, no seu Curso de Processo Penal, [impresso
em 1986], concluía:
«[…] a
apelação é o recurso que verdadeiramente constitui um segundo julgamento;
substitui, ao juízo da 1ª instância, um novo juízo, em matéria de facto e de
direito, de 2ª instância».
Eis o que se tornou
evanescente do universo da Justiça criminal, a ideia de que o recurso é essencialmente
um novo exame, uma revisão do visto, uma segunda oportunidade de avaliação do
decidido em todos os ângulos em que ocorreu decisão recorrida: hoje o recurso
tornou-se uma pálida imagem dessa noção.
Tudo isso surgiu de
um progressivo gotejar histórico que foi sedimentando. O Código de Processo
Penal tentou criar um modelo com isso fracturante, mas estava à vista que não
teria futuro. A História explica porquê.
Admitiam-na, à
apelação penal, as Ordenações. Mas em 1892, uma Lei, de 15 de Setembro,
determinava já que as apelações e as revistas eram julgadas como agravos.
Era o ponto
sintomático da desvalorização das nomenclaturas, miscigenando-as todas,
desvalorizando assim cada uma. Citando Alves de
Sá, coevo do que se passava:
«Assisto
aterrorizado desde 1892 a esta confusão tumultuosa em que caiu o foro nesta
matéria».
Ao chegar-se do
Código de Processo Penal de 1929 já o conceito de apelação penal tinha sido,
entretanto, varrido da terminologia da lei adjectiva criminal e encontrávamos
apenas um princípio, que nos acompanhou a todos quantos, como é o meu caso,
tivemos esse código como companhia profissional - já retalhado, acrescentado,
parcialmente revogado e derrogado - segundo o qual - e eis o seu artigo 649º:
«Os
recursos em processo penal serão interpostos, processados e julgados como os
agravos de petição em matéria cível,
salvas as disposições em contrário deste código».
Não era esta, a que
citamos, uma simples norma jurídica sobre tramitação, era, sim, um normativo
sobre a natureza das coisas em matéria de recursos, a dar-lhes uma semântica e
sobretudo uma direcção interpretativa em via reduzida: dizia-se «agravo» para
que ficasse entendido que não se queria dizer «apelação». E dizia-se, aliás,
«agravo de petição» categoria jurídica que havia, aliás, já caído em desuso.
É que natureza do
agravo era determinada sobre a incidência do seu objecto, a circunstância de
recair sobre tema processual, que não sobre o mérito da causa, afastando assim
o território natural da apelação.
No enunciado da lei
subsidiária, e como tal aplicável em regime de integração, determinava já o
Código de Processo Civil de então [o de 1876] que:
«[…] das
decisões de que não pode apelar-se e que excedam a alçada do juiz compete
agravo».
E quanto ao critério
pelo qual se encontravam os casos de que cabia apelação, resumia-o o Professor
Alberto dos Reis, no seu livro Breve Estudo sobre a Reforma do Processo
Civil e Comercial ao escrever que o legislador havia reservado a apelação
«para as sentenças que conhecem do mérito ou do fundo da causa, compreendendo-se
na palavra causa certos e determinados incidentes».
Em suma, o
desaparecimento a partir de 1929 da
categoria das apelações penais significou como única ilação possível, uma
indicação legislativa no sentido da incognoscibilidade tendencial do mérito das
causas penais. Era, assim, a restrição dos recursos no que se refere à
sindicabilidade efectiva das causas penais julgadas em primeira instância.
É que esse Código
de Processo Penal de 1929 havia determinado, no seu artigo 665º, que:
«As
Relações conhecerão de facto e de direito nas causas que julguem em primeira
instância e nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1ª
instância, e conhecerão só de direito, nos recursos interpostos das decisões
finais nos tribunais colectivos e das proferidas em processos em que intervenha
o júri (…)» [salvo o caso de anulação da decisão do júri em caso específico].
Quer dizer: o
mérito da causa, a partir da reforma processual penal de 1929, e em função
daquele citado preceito, passou a ser matéria cognoscível pela Relação apenas
quando a decisão recorrida fosse oriunda de juiz singular, desde que não se
prescindisse de recurso, caso em que [artigo 532º]:
«[…] escrever-se-ão
resumidamente na acta da audiência as respostas do réu, os depoimentos das
testemunhas e as declarações dos ofendidos e outras pessoas que devam
prestá-las».
Estava consagrada, com força de
lei, a intangibilidade das decisões do colectivo sobre o mérito da
causa, o fim da apelação penal nas causas relevantes, as que eram julgadas em
processo de querela, puníveis com penas mais graves.
O sistema, na sua
natureza imanente, já era suficientemente explícito, mas uma vertente prática
do mesmo demonstraria a sua verdadeira essência e sobretudo os propósitos que
animavam os seus autores.
Assim, como o
clarificou um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1932, mesmo depois da
alteração do CPP em 1931 «[…] os
depoimentos das testemunhas perante o tribunal colectivo não são escritos».
Era impossível a
Relação sindicar a prova produzida em audiência devido à ausência de registo da
mesma. Assim, a substância, os factos, uma vez adquiridos em primeira instância,
fixados estavam, pois não havia hipótese de o tribunal de recurso achar modo
de pôr em crise.
Mas o refinamento agravante
do sistema ainda estaria para vir.
Em 1934, um Assento
de 29 de Junho enunciaria uma jurisprudência que, de acordo com o sistema de
então, valia como lei, e assim obrigatória, segundo a qual a alteração pelas
Relações das decisões dos colectivos só poderiam ocorrer:
«[…] em
face dos elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova
apreciada em julgamento e que haja determinado as respostas aos quesitos».
Como explicaria o
Conselheiro Maia Gonçalves, usando linguagem mais clara para traduzir esta
formulação esfíngica, em nota ao artigo 665º do Código de Processo Penal de
1929:
«[…] em
face do Assento de 29 de Junho de 1934, a competência das Relações em matéria de
facto, nos processos julgados pelo tribunal colectivo, é muito restrita, só
lhes sendo lícito alterar as decisões da primeira instância quando do processo
constem todos os elementos de prova que lhes serviram de base ou quando se
trate de factos plenamente provados por meio de documentos autênticos. Qualquer
elemento de prova produzido perante o colectivo impede que as Relações alterem
as respostas aos quesitos».
Era, em suma, o que
se popularizou como a «ditadura dos colectivos» em matéria de facto, sistema do
qual decorria que o julgamento ante juiz singular era paradoxalmente mais
garantístico em termos de recursos do que o ocorrido diante tribunal colectivo,
por admitir aquele o seu reexame, com efectivos meios, em sede recurso quanto
às questão de facto, a conhecer pelas Relações.
Como o resumiam
Borges de Araújo e Gomes da Costa - compilando as lições proferidas pelo
professor Manuel Cavaleiro de Ferreira de 1940:
«[…] as
Relações só tomam conhecimento da matéria de direito, pelo menos nos processos
de querela [a julgar pelo colectivo], pois quando o tribunal colectivo é
chamado a julgar a prova não é escrita».
Eram tempos
difíceis esses, os da intangibilidade do veredicto de facto nos casos penais
graves, tempos de chumbo em que, já agora será interessante lembrar, vingava
lei que permitia o entendimento segundo o qual:
«[…] em
recurso penal, embora só interposto pelo réu, pode o tribunal agravar a pena» [Assento
do STJ de 4 de Maio de 1950].
É que esquecem
porventura os mais novos ou os menos estudiosos, a proibição da reformatio
in peius - no que significa de impedimento de agravação da pena em caso de
recurso interposto pelo arguido - só foi lei a partir de 1969 [com a alteração
do artigo 667º do Código de Processo Penal de 1929 pela Lei nº 2139, de 14 de
Março, sendo primeiro-ministro o professor Marcelo Caetano].
Os colectivos
recebiam da lei o benefício da intangibilidade das suas decisões sobre os
factos, tal como a mesma havia sido concedida na matéria ao julgamento pelo
júri.
A inapelabilidade
do julgamento da matéria de facto surgira em Portugal com a introdução do júri,
figura que fomos importar ao modelo estrangeiro, sem tradições entre nós e que
faleceria de morte natural pela década de quarenta do século vinte, para ser ressuscitado
em 1975, tendo vindo a viver desde então, embora recomposto, hiatos de
sobrevivência sem grande esperança de prestígio e sobretudo com duvidosos
resultados em termos de acerto, expediente apenas quando a acusação pública não
se quer comprometer com certos processos cuja responsabilidade é assim alijada
nos jurados, pseudo-representantes do povo, afinal apenas cidadãos mobilizados
por sorteio para intervirem no julgamento penal e sua sentença.
É com o júri que
mingua a apelação penal. Mas - e cito de novo o professor Cavaleiro de Ferreira
no seu texto pedagógico, agora de 1986:
«[…] posteriormente,
e já neste século, com a criação dos tribunais colectivos que substituíram o
júri, insinuou-se sub-repticiamente a ideia de que o tribunal colectivo devia
herdar não só a competência em matéria de facto do júri, mas de igual modo a
presunção de infalibilidade. Foi um erro que as circunstâncias em que se
processaram as sucessivas reformas processuais tornaram possível».
Morta a apelação
criminal, implantado o sistema do agravo penal, estava aberta a porta para a
infabilidade dos tribunais colectivos em matéria de facto.
Havia, no entanto,
urge reconhecer, uma lógica imanente ao sistema da inapelabilidade dos acórdão
do tribunal colectivo e do tribunal de júri: a sua colegialidade e com ela a
noção de que uma pluralidade de pessoas haviam, após atenta observação e por
deliberação, convergido no elenco do provado e do não provado: ora, antecipando
o que se dirá adiante, hoje esse privilégio de infalibilidade foi estendido aos
tribunais singulares pois as restrições que existem ao conhecimento da matéria
de facto estendem-se também a eles.
Foi neste ambiente
que se chegou ao Código de Processo Penal de 1987 e com ele à ânsia de reforma,
ingénuo, conclui-se hoje.
Dele decorreram
várias ideias discursivamente novas e candidatas esperançadas a terem futuro. O
problema foi a pragmática do sistema e a cultura que o caracterizava e se
formara antecedentemente, as quais lhes neutralizaram, logo no ovo, a ambição
de perdurabilidade.
Enunciemo-las para
que o pessimismo realista, de que faço aliás cultura e mundivisão, o possam
demonstrar.
Em primeiro lugar,
verteu o legislador em lei a ideia liberal de que todas as espécies de recurso,
mesmo os atinentes à temática meramente jurídica - e inclusivamente aqueles
outros em que os poderes cognitivos do tribunal fossem, circunscritos à matéria
de Direito - admitiam [artigo 410º, n.º 2 do CPP] a hipótese de serem
conhecidas certas questões, afinal factuais - tarifadas em três casos
paradigmáticos - (i) insuficiência para a decisão da matéria de facto
provada (ii) contradição insanável na fundamentação (iii) erro
notório na apreciação da prova, ou isto é, tudo matérias em que está em causa a
factualidade adquirida na primeira instância.
Ou seja,
expressamente pretendeu o legislador que se consagrasse um sistema pelo qual,
mesmo ante tribunais que por lei limitam o seu conhecimento a temas de Direito,
sempre a ponderação da factualidade tinha de ser relevada, em termos de se
prosseguir Justiça, naqueles casos em que, ou o Direito não pudesse ser
convocado por insuficiência dos factos provados, ou a explicitação dos achados
de facto fosse entre si contraditória ou, enfim, se estivesse ante erro notório
na apreciação da prova.
A consagração deste
conceito não se alcançaria, porém, sem resistência, porquanto certa
jurisprudência cedo se encarregou de determinar que tal possibilidade de
alargamento dos poderes cognitivos - digamos, do Supremo Tribunal de Justiça -
não poderia ser suscitada como tema de recurso, mas apenas ser operada
oficiosamente pelo tribunal de recurso ao conhecer o tema jurídico em causa, o
que transpunha para a discricionariedade do tribunal o que se previra ser um
direito dos recorrentes.
Esta limitação -
que a lei no seu enunciado expresso não previa - o da cognoscibilidade apenas ex
officio, viria obviamente a reduzir o alcance daquilo que era o primitivo
escopo do legislador.
Para além disso, a interpretação
do conceito de «erro notório» na apreciação da prova foi de tal modo tornada
exigente, que se tornou de quase impossível invocação, reduzido aos casos em
que a ostensividade do erro fosse gritante, quase igual ao erro grosseiro, de
insólita aparição em avaliações judiciais da prova, quase incompatível com a
pessoa de um magistrado.
Para além disso, com
o Código de Processo Penal de 1987, retornou para a lei processual penal a
categoria conceptual da «apelação», quando a Lei da autorização legislativa da
qual emergiu o novo Código consagrou [Lei nº 43/86, de 26 de Setembro, artigo
2º, n.º 2, ponto 72] que ocorreria no novo Código a:
«atribuição
ao tribunal da relação de competência para conhecer, em apelação, dos
recursos interpostos de decisões interlocutórias e finais do juiz singular e de
decisões interlocutórias emitidas pelo tribunal colectiva, e para, em certos
casos, renovar a prova, caso não reenvie o processo para o tribunal colectivo»
[itálico meu].
Mas feito o balanço
ao escopo e âmbito das audiências nos tribunais superiores e ao modo como
funcionam, nomeadamente no que respeita a essa «máxima oralidade» e essa
proclamada «apelação», conclui-se que tais novidades acabaram por entrar numa
tal caducidade por não uso, que o legislador teve, misericordioso, de torná-las
opcionais, donde aparição raríssima para
possível desaparecimento, também aqui pelo não uso.
Em terceiro lugar,
como acabamos de ver, tentou-se, com este novo Código de Processo Penal, a
consagração de um sistema de renovação da prova [artigo 430º, pelo qual a
segunda instância, mais do que um tribunal de rescisão, funcionaria como um
tribunal de segundo julgamento, até porque ocorreria também [ponto 71, do
preceito citado], a:
«[…] consagração,
para todas as espécies de recurso ordinário, interposto da decisão final, da
garantia do contraditório […]».
Tratava-se de pôr
em marcha uma ideia que o preâmbulo do Código, ingénuo porque confiante, assim
exprimia:
«Com o
mesmo propósito de emprestar ao recurso maior consistência, procura
contrariar-se a tendência para fazer dele um labor meramente rotineiro
executado sobre papéis, convertendo-o num conhecimento autêntico de problemas e
conflitos reais, mediatizado pela intervenção real de pessoas. Por isso se
submetem os recursos ao princípio geral - aliás jurídico-constitucionalmente
imposto! - da estrutura acusatória, com a consequente exigência de uma
audiência onde seja respeitada a máxima da oralidade».
Ora considerando o
número de vezes em que ocorreu até hoje a renovação da prova - a meu conhecer
nunca [durante a conferência tive conhecimento de dois casos] - viu-se em que medida tal novidade se tornou candidata à morte anunciada
logo no acto de nascer.
A renovação da
prova tornou-se, pois, previsão não praticada, porquanto impraticável.
Paulo Pinto de
Albuquerque diz, aliás, com ironia, quea disposição que a prevê é «a menos
compreendida em todo o Código», dado o «equívoco em que tem estado enredada».
O Supremo Tribunal
de Justiça, num seu Acórdão de 21.01.04, havia delineado, aliás, já um critério
que a tornaria excepcional:
«[…] a
renovação da prova só será de decretar quando não seja possível aferir-se da
sua correcção a partir da prova já produzida».
E a atentar na
configuração do que a nível jurisprudencial se entende por renovação da prova,
logo dali se conclui que nunca ela ocorrerá, pois é considerada como algo
apenas circunscrito ao caso de ocorrência de algum dos vícios do artigo 410º,
n.º 2 do Código de Processo Penal e relativo à mesma prova já produzida e não a
uma outra prova que não aquela.
Acórdãos como um da
Relação de Lisboa, esse então, proferido a 21.12.00, acharam modo de obviar à
sua efectivação, aniquilando o valor semântico do conceito de renovação, este
ao determinar:
«[…] quando
a prova esteja documentada, a sua renovação não é admissível, sob qualquer
fundamento».
Ora, como o recurso
sobre a matéria de facto pressupõe a documentação da prova, o mesmo é dizer,
ante tal entendimento, que nunca há lugar à renovação da prova, pois há sempre
documentação que a tanto obsta.
Faltava decidir a
opção de fundo entre os dois sistemas admissíveis de recurso: o recurso por
substituição e o recurso por cassação: o Código de Processo Penal sonhou a
praticabilidade do primeiro, mas acabou por ter de se render ao triunfo do
segundo, o sonho legislativo fruto de princípios, a realidade produto da
prática, o legislador a querer amarrar a perna à jurisprudência, esta a
libertar-se do laço do legislador.
Através da lógica
da substituição, o tribunal de recurso profere ele próprio a decisão que
deveria ter sido a emitida pelo tribunal recorrido; pelo segundo, o da
cassação, o tribunal de recurso limita-se a anular a decisão prolatada pelo
tribunal do qual se recorre, reenviando o processo a este para que profira nova
decisão ou efective, se for o caso, novo julgamento.
Ora na mecânica
prática das coisas, o sistema revogatório é mais tentador, pois menos exigente
de esforço e assim triunfaria.
Enfim, a lei de
autorização legislativa dera indicação segura [n.º 72] de que o reenvio só
ocorreria, nos recursos para a Relação, quando se não verificasse a renovação
da prova; ora, uma vez que a renovação da prova passou a ser uma não
existência, tudo se transformou, em matéria de recursos de mérito para a Relação,
num sistema de anulação e reenvio.
Neste panorama de
realismo desolador, bem tentou a reforma do Código de Processo Penal de 1998
[por alteração ao seu artigo 431º] uma viragem de rumo, com abertura controlada
à modificabilidade pelo tribunal da Relação do veredicto de facto constante da
decisão recorrida, isso a suceder em três casos.
Em primeiro lugar,
e em aparente inovação, «se do processo constarem todos os elementos de prova
que lhe serviram de base», fórmula aparentemente liberal, mas que redunda,
afinal, numa revivescência do espírito do Assento de 1934, acima visto, que a
jurisprudência redutoramente logo aplicou, considerando tratar-se de
circunstância excepcional.
Em segundo lugar,
reiterando-se que isso ocorre no caso de ter havido impugnação da prova, com o
cumprimento, nas conclusões da motivação do recurso, de ónus de indicação não
só dos pontos de facto tidos por incorrectamente julgados, menção a qual o
facto probando que pretende fazer triunfar em substituição do provado ou não
provado e bem como indicação do lugar onde a prova se encontra registada nos
suportes magnéticos áudio em que esteja gravada a produzida oralmente.
O alcance desta
inovação ficou, porém, à mercê da interpretação que acabou por se formar quanto
às exigências da motivação de recurso e respectivas conclusões, o que se tornou
uma floresta de incertezas e caminhos perigosos para os recorrentes, ao que já
voltaremos.
Enfim, insistência na ilusão funesta, em terceiro lugar, «se tiver havido renovação da
prova», invocação, afinal, ousemos dizê-lo de um nado morto.
Ora na verdade, por
via destas delimitações, a questão do recurso da matéria de facto, a partir da
reforma em 1998, passou a ser, no imediato, o triunfo não só da arte de
escrita, em que se privilegiam formalidades narrativas sobre substâncias, em
que a probabilidade de se acertar no modo de configurar o recurso e sobretudo
as suas conclusões, raramente ocorre, com a consequente rejeição do mesmo.
Logo na origem tudo
anunciava o que aí viria, um sistema com pouca sorte.
O legislador havia
pensado um sistema pelo qual em primeira instância se faria recurso a meios de
registo da prova que iam, ao limite aos videográficos, para que, numa expressão
que se popularizou, o tribunal de recurso pudesse captar não só quanto fora
dito mas igualmente o modo como fora dito e assim a imediação fosse viável ante
a total oralidade, dois princípios reitores do sistema de justiça recursória:
era a ilusão tecnológica de que a prova seria reponderada.
Breve tempo durou a
fantasia em torno da novidade, pois jurisprudência logo surgiu a determinar
que, gravando-se embora, todo o dito teria de ser transcrito, assim se pondo em
causa, desde logo, a espontaneidade do discurso oral, reduzido em
expressividade, face ao copiado para o registo escrito.
Foi depois o tema
de saber a quem incumbiria o encargo da transcrição, se ao sempre anémico erário
público para fins de Justiça ou se aos sujeitos privados, aquela primeiro
alternativa tida por inviável por falta de verba para tanto, esta outra
indesejada por suspeição de que tais sujeitos transcrevessem sem fidedignidade
a prova que lhes interessava.
O tema acabou por
implicar uma definição em sede de fixação de jurisprudência pelo Assento n.º
2/2003, de 16 de Janeiro, segundo o qual:
«Sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, em conformidade com o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, a transcrição ali referida incumbe ao tribunal.»
Só em 2007, com a
Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto se pôs termo a tal «ónus» do tribunal [como
impropriamente lhe chamava alguma jurisprudência] e o tribunal passou a ficar
adstrito apenas à entrega de cópia dos suportes das gravações áudio, sem que
isso implicasse inconstitucionalidade material da norma respectiva [ nova
redacção conferida ao n.º 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal], como
foi decidido pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 473/2007.
Faltava o critério
que se firmou na jurisprudência quanto à exasperação da exigência na formulação
das conclusões que, devendo ser breves por imposição da lei, não poderiam
conter tudo aquilo que a mesma lei exigia: não só os concretos pontos de facto
que se consideram incorrectamente julgados [o que já de per si pode ser longo]
como as concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida [o que pode
tornar muitíssimo mais longo] sobretudo quando, por imposição a mesma lei, estando
a prova gravada [e em regra está] por referência ao consignado na acta com
indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, o que tudo junto
alonga ainda mais o que era suposto ser breve e pode ser [e tem sido] rejeitado
se o não for.
Candidatos a
estarem sempre mal redigidos, os recursos sobre a matéria de facto tornaram-se
candidatos a serem rejeitados. Isto sem ponderar quanto se legislou depois em
matéria de rejeição sumária, matando à nascença o que se entenderia não ter
viabilidade de vida.
Tudo isto marca o
destino que tem, no presente, o exame em recurso da matéria de facto: não é,
afinal, um recurso do já julgado apenas do modo como foi julgado: da substância
ao procedimento, da apelação ao gravo, afinal.
Citando este explícito
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Maio de 2007 [relator Simas
Santos]:
«Como vem entendendo, sem
discrepância, este Supremo Tribunal de Justiça, o recurso em matéria de facto
(«quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto»)
não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos
elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida,
mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo
tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o
recorrente considere incorrectamente julgados […].»
Claro que, visto
sob este ângulo restritivo, não se trata, afinal, de uma verdadeira
reapreciação da matéria de facto, mas apenas de uma análise da razoabilidade do
modo como foi apreciada tal matéria, o que é totalmente distinto e está muito
longe do que tem sido pensado desde 1987.
Tudo isto está viabilizado pelo
Tribunal Constitucional, o qual entende que a garantia constitucional de reexame da matéria
de facto não implica necessariamente um novo
julgamento da matéria de facto, podendo o tribunal de recurso limitar-se
a verificar se existiu algum erro de julgamento.
Aqui chegados, eis a recta final desta minha
intervenção.
Assinalaram-me como
tema o problema dos reflexos deste sistema no que se refere aos direitos de
defesa, mas permitam-me que transmita uma sensação de incómodo em abordar esta
perspectiva da questão.
Era outrora ponto
de honra que um advogado assumisse, por natureza, o tema dos direitos
fundamentais, nomeadamente os da defesa. Uma profunda mutação cultural intimida
hoje quando se entra por esse ângulo, pois impera actualmente a diabolização do
proclamado excesso de garantismo, que logo é invocado sempre contra quem
pretenda fazer valer, em nome da presunção de inocência, o direito ao um
processo justo através do esgotamento legítimo das vias de recurso, em nome da
defesa.
Uma ostensiva pressão psicológica é também hoje exercida
através dos media sobre alguns dos
que pretendem fazer apelo aos meios processuais ao seu dispor; assim se argua
uma nulidade de um processo com anos de inquérito e eis em cima do autor de tal
proeza a fama deprimente de visar, ele agora, o entorpecimento da justiça, o
triunfo da criminalidade.
Vivemos hoje uma
época em que, para além disso, a jurisdicionalização é tida como atentatória da
eficácia, em que a celeridade processual e a estatística do número de decisões
é critério universal da boa justiça.
Mais: vivemos um
mundo em que uma defesa penal consequente, uma perícia que seja contraditória,
enfim o direito aos recursos, são apodados privilégio de abastados, os que
podem suportar os elevados custos de advogados, capazes de os conceber como
demora pelo diferimento do trânsito e caminho até à prescrição.
Neste contexto,
direi que do que se trata, pois, não é dos reflexos que o descrito sistema possa
ter no domínio dos direitos de defesa, até porque a jurisprudência do nosso
Tribunal Constitucional já relativizou, e de modo expressivo, a garantia do
direito ao recurso que a Constituição considera, no n.º 1 do seu artigo 32º,
como ínsita ao direito de defesa.
O que está em causa
é, outrossim, a questão da descoberta da verdade judiciária e sobre isto
termino.
Numa lógica
objectiva e sistémica, a impugnação é instrumento de segurança, apto a gerar
uma confirmação do decidido e também garantia de independência para quem julga,
pois, por um lado, sabe que julgará em penúltima decisão, por outro, porque não
deve obediência hierárquica à jurisprudência firmada em tribunais superiores,
antes respeito à doutrina que deles dimane e se possa aceitar.
Para além disso, o
recurso é direito a um melhor exame do decidido, o qual é concedido, como
garantia constitucional expressa, a quem é afectado pela decisão, isto por se supor
que uma deliberação em ulterior instância por colégios de três juízes é mais apta
a uma ponderação mais apropriada do que estiver em causa.
Ora um sistema
legal que reduziu os colectivos de recurso de três juízes a dois, pois o
presidente só intervém em caso de empate [artigo 419º, n.º 2 do Código de
Processo Penal], é apto a reduzir a pluralidade que é suposta exigir-se para
uma ponderação multifacetada dos temas.
Um sistema legal
que já ofereceu de si a pior da sua imagem que é admitir que, inerte o
presidente, o relator seja o dono da decisão [eis a expressão que
correu] em termos de o segundo membro do colectivo poder assinar sem ter de ler
mais do que o decidido, é a mais límpida evidência de que estamos reduzidos à mera
singularização, o colectivo passado de três a dois e de dois a um.
Um sistema legal em
que, podendo ter ocorrido erro na primeira instância, cerceia as vias de
recurso a casos cada vez mais apertados de irrecorribilidade, abre a
possibilidade da irremediabilidade desse erro.
Um sistema legal em
que, inexistindo renovação da prova, sendo de conhecimento oficioso os vícios
da decisão que estão previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo
Penal, e o conhecimento das questões de prova exijam, sine qua non, o
cumprimento exasperante de ónus de redacção das conclusões de recurso, é um
modelo que definitivamente restringe o direito ao recurso a uma mera
expectativa de se poder efectivamente recorrer.
Tudo isto some-se
aos casos em que o recurso está vedado por imposição da lei: aqueles em que há
uma pronúncia conforme à acusação do Ministério Público, o referente às
indeferidas diligências de instrução, e tantos mais, em que a dosimetria da
condenação não o permite quanto às penas parcelares.
Vedando-se o
recurso, cerceando-o com dificuldades de formulário, privilegiando-se a
revogação sobre a substituição, mais do que atentar-se contra a defesa, põe-se
em causa a busca da verdade.
E se não vejamos
quanto à verdade, na forma de uma pergunta: em quantos casos em que, tendo
havido, por via da anulação, repetição do julgamento, não se obteve neste afinal
uma outra versão dos factos, quando não mesmo uma outra história, diversa
da que resultou do antecedente julgamento?
Do ponto de vista
gnoseológico, o sistema de recursos deveria permitir, reexaminando o julgado,
uma melhor, uma mais rigorosa e mais exacta reconstituição do real, como se
numa epistemologia genética, o conhecer se alcançasse pela reiteração da
observação.
Infelizmente não é
este o balanço que se extrai.
No que se refere aos recursos para o
Supremo Tribunal de Justiça penso que esta expressão extraída de um Acórdão
deste Tribunal proferida a 31 de Outubro do corrente [relator Nuno Gomes da
Silva] traduz do que se trata:
«A ideia que atravessa o
sistema na parte dos recursos é a de que o STJ é um tribunal de “fim de linha”
– passe a expressão em benefício da clarificação da ideia – cuja competência no
tocante aos recursos ordinários está reservada para situações sobre a
apreciação do mérito, a justiça da condenação – e mesmo assim com constrições
várias – ou em que o acto decisório ponha termo definitivo ao processo, que
encerre a relação jurídica entre os sujeitos processuais, seja por razões de
natureza adjectiva, seja por razões de natureza substantiva. Por isso se lhe
atribui a função de tribunal de revista, como inequivocamente ressalta do art.
434º, do CPP.»
Assim sendo, e vista a limitação
colocada ao juízo sobre o mérito nos recursos em ulterior instância, a juntar a
esta configuração da competência do Supremo Tribunal de Justiça, não será de
estranhar a pressão que existe sobre os recursos de constitucionalidade para o
Tribunal Constitucional.
Termino agora, enfim.
Fiz parte da Comissão de cujo labor
saiu o Projecto que se transformou no Código de Processo Penal de 1987. O que
vi pretender-se com esse Código ficou acima expresso. Aquilo em que tudo se
tornou é de todos conhecido e aflora nesta minha intervenção.
Encontro-me, pois, com as palavras do
presidente dessa Comissão, Jorge Figueiredo Dias quando, sob o título Por
onde vai o processo penal português, afirmou ante o facto de a revisão
constitucional ter aditado ao n.º 1 do artigo 32º da Lei Fundamenta, além das
garantias de defesa, a expressão «incluindo o recurso»:
«Isto
significa que o direito a um recurso é manifestação
jurídico-constitucionalmente vinculante de um direito, liberdade e garantia de
defesa. Ela não pode ser posta em causa em hipótese alguma, mesmo sob a
alegação de que se verifica in concreto uma qualquer outra garantia de
defesa sucedânea legalmente admissível. Sempre que, num concreto caso judicial
de qualquer espécie, a lei denegue ao arguido condenado o direito a um recurso,
a lei é materialmente inconstitucional e não pode como tal ser aplicada».
Ora esse vedar o direito a um recurso
pode resultar de lei que o impeça; mas pode também decorrer de exigências de
entendimento processual que o torne afinal inviável. Eis quanto procurei demonstrar.
Mas num sistema em que a prisão
preventiva é amiúde, por antecipação, a prisão, a sujeição a processo, em
miscigenação com a comunicação social, a condenação, em que afinal o mal
do processo se substituiu, em retroacção, ao mal da pena, em que o
processo em si passou a ser a realidade relevante no domínio
jurlídico-criminal, espanta que, em matéria de recursos, a justiça cuide mais
do procedimento que levou à decisão do que, afinal, do próprio decidido?
Não, não espanta.
A partir daqui, estando em dúvida o
bom Direito, talvez um preceito moral nos salve a má consciência: não
julgues os outros como não gostarias que te julgassem a ti. Assim seja lei
e jurisprudência, assim encontraremos mais justiça.