Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Advogados em Angola

Segundo a imprensa angolana, «o membro do conselho provincial da Ordem dos Advogados de Angola, Rufino Narciso, considerou nesta quinta-feira, em Benguela, insuficiente o número de profissionais ao exercício da advocacia, para atender a demanda dos nove municípios da província (...) Adiantou que no tempo colonial nos municípios do interior de Benguela, nos chamados julgados de primeira classe, existiam tribunais, procuradores e juízes, bem como dois ou três advogados para cada região, que segundo ele eram maioritariamente estrangeiros, que mais tarde abandonaram o país, ficando os não profissionais que estudavam direito, que lhes foram atribuídos a qualificação média, actualmente terminado o curso, integram a Ordem dos advogados».
A Ordem dos Advogados de Angola, afilhado de Advogado que ali exerceu, comemora o seu 11º ano de existência. Nascido em Malanje, muitos anos de vida!

Os «onorevole»!

«Os peritos são escolhidos de entre indivíduos constantes de lista, com vínculo à Administração Pública, de reconhecida honorabilidade e experiência, detentores dos conhecimentos necessários sobre a natureza e as características dos bens a avaliar», diz a Portaria n.º n.º 1215/2007, de 20 de Setembro, que «estabelece os termos em que deve ser efectuada a nomeação de peritos de bens apreendidos pelos órgãos de polícia criminal no âmbito de processos crime e contra -ordenacionais, conforme disposto no Decreto -Lei n.º 11/2007, de 19 de Janeiro, definindo ainda o respectivo estatuto e procedimentos».
É fantástico que por lei se diga, numa interpretação a contrario que há indivíduos «com vínculo à Administração Pública» e sem «reconhecida honorabilidade». Pensava eu que, em relação a esses, o Estado de Direito, pessoa de bem, tinha meios imediatos para os pôr na rua pelo que nem sequer a questão da sua nomeação para o quer que fosse se colocasse! Pelos vistos não!
Outra coisa extraordinária: o OPC apreende um bem - um automóvel, um barco, o que for - usa-o, dá-lhe estrago e chega ao fim e devolve-o ao seu dono, pagando uma indemnização pela deterioração causada pelo uso. É justo. Mas quem fixa o valor? Segundo esta portaria, quem o OPC, que usou e estragou, indicar! Diz o artigo 5º da lei que a «avaliação visa determinar o valor de indemnização a pagar ao proprietário caso o bem não venha a final ser declarado perdido a favor do Estado» e acrescenta o artigo 3º, n.º 2 que «cada órgão de polícia criminal organiza uma lista de peritos nomeados nos termos da presente portaria, que, anualmente, remeterá para conhecimento da respectiva tutela».
Extraordinário não é? É isto a moralidade em vigor. Assim, com as coisas dos outros, a usar à farta e a pagar ao preço da casa também eu equipo as minhas polícias!

Quero o meu direito de volta!

Se eu estou sob o domínio de uma lei processual penal que me dá um direito e vem o legislador e, rasteirando-me, me amputa o direito, para que se cumpra o Direito há que fazer sobreviver a lei revogada, ultractivamente.
Aprende-se isto quando se estuda Direito Processual Penal. Vem logo nas primeiras folhas de qualquer Manual.
O país jurídico vai ter de conviver com isto à força, no meio dos escombros do que será a aplicação deste novo Código de Processo Penal aos processos pendentes.
Vai ser grande maravilha de se ver esta de saber qual a lei mais favorável, qual o Direito em vigor, o que vale e o que vai ser invalidado.
O Governo arranjou, enfim, o ariete legislativo que arromba os muros do próprio caso julgado judicial. Há advogados contentes sem saber a sorte que os espera.

Advogados: o horror dos prazos!

Lê-se na imprensa brasileira: «Com o argumento de que já sofreu com as conseqüências da perda de um prazo processual, que estava sob responsabilidade de seu advogado, e de ver amigos próximos e familiares passarem pelo mesmo problema, o deputado federal e pecuarista Ernandes Amorim (PTB-RO) propôs um projeto de lei. A idéia é punir com suspensão os profissionais que forem negligentes com o prazo processual. Ao propor a inclusão de um dispositivo no Estatuto dos Advogados, o deputado diz que “não existe uma punição exemplar para o mau profissional, que age com desídia, desleixo ou incúria, no trato de uma demanda judicial”. O projeto não ressalva a eventualidade de motivo justificado para a perda do prazo da parte do advogado, nem prevê modificações nas leis que tratam da observância de prazos por parte dos cartórios, de juízes ou do Ministério Público. Os advogados defendem que um novo dispositivo no Estatuto dos Advogados para prever a punição é desnecessário. Motivo: a lei e também o regimento interno da OAB prevêem sanção para os profissionais que desistem da ação sem motivo para tanto ou àqueles que realmente não tratam o processo com a merecida dedicação. “A OAB já tem entendido que a má defesa gera falta disciplinar”, afirmou o presidente do Conselho Federal da OAB, Cezar Britto. Além disso, constatada a ineficiência do advogado, a OAB pode submetê-lo a novo Exame de Ordem, conta Britto. Segundo ele, já houve casos de aplicação de novos exames, quando o advogado teve várias petições ineptas e o juiz chamou a atenção da entidade para o assunto. Mas o presidente da OAB nacional observa que “não há relação de consumo em que o advogado é obrigado a ganhar a causa. Até porque a aplicação do direito é tarefa do juiz, não do advogado.” Para o advogado Reginaldo Castro, que também já presidiu o Conselho Federal, a proposta é uma extravagância, além de desnecessária e ineficaz. Ele reconhece a responsabilidade do advogado, mas reafirma que os casos de desídia já estão previstos no Estatuto da profissão. Segundo Castro, o cliente que se sentir prejudicado pela perda de prazo pode processar o advogado e ser ressarcido pelas perdas e danos sofridos.
A juíza Maria Lúcia Pizzotti Mendes, coordenadora do setor de Conciliação do Fórum João Mendes, acha excelente a proposta. Segundo ela, a freqüência com que a perda de prazos acontece é tão alta que justifica uma medida como essa, que serviria para intimidar e educar o mau advogado. “São graves os atos de desídia, que prejudicam o direito da parte”, alerta. E ressalta que, por mais que o juiz veja que a falha do advogado, não tem como reverter a situação, porque iria contra a lei. “Temos muitos advogados e muitos não têm condições de advogar. Quando a pessoa é mal representada, acha que a culpa é do Judiciário”, observa».

CPP: mais sobre a coacção

Artigo 204.º

Nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida: (...) c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.



Comentário: comparando com a formulação anterior [«perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa»] conclui-se que o legislador quis, através do advérbio «gravemente», tornar mais exigente este requisito. Mas como já vimos entender que ele se verifica quando certos arguidos presos protestam nos autos, através dos seus advogados, contra o facto de outros, seus comparticipantes, estarem em liberdade, verificamos que, na prática, ele pode continuar a aplicar-se com alguma latitude discricionária. Isto para não mencionar na geração deliberada da intranquilidade, através de campanhas de imprensa manipuladas através de violação de segredo de justiça e destinadas a diabolizar certos arguidos e tornando-os assim candidatos à prisão preventiva para satisfação das fabricadas expectativas punitivas da comunidade.
O paradoxal é que a aplicação do novo regime do CPP acabou por gerar, na psicologia colectiva, uma profunda intranquilidade, ante a notícia da libertação de casos em que a comunidade sentiu poder haver perigosidade à vista. Um CPP que só releva a grave intranquilidade, gerou-a como seu efeito!



Artigo 212º



«(...) 4 - A revogação e a substituição previstas neste artigo têm lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, devendo estes ser ouvidos, salvo nos casos de impossibilidade devidamente fundamentada. Se, porém, o juiz julgar o requerimento do arguido manifestamente infundado, condena-o ao pagamento de uma soma entre 6 UC e 20 UC».



Comentário: a lei anterior previa uma norma de audiência do arguido e do MP assim formulada: «devendo estes, sempre que necessário, ser ouvidos». Aqui alterou-se para a fórmula já usada no artigo 194º, n.º 3, na expectativa de que isso alere a mentalidade ainda reinante em alguns magistrados e a audição se torne mais generalizada.

Como já vivi a situação de um ilustre desembargador que ouvia os detidos extraditandos directamente no estabelecimento prisional, nem se dignando mandar transportá-los ao tribunal, porque, no dizer explicativo do solícito senhor escrivão «assim já lá ficavam», não tenho excesso de esperanças nem grande reserva de ilusões. É só uma questão de se não fazer aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti!

Basta dar uma olhadela de relance pelos critérios jurisprudenciais em matéria de audição prévia quando da mutação de medidas coactivas para ver o sentir repressivo que por aí grassa.

Aliás a norma ameaçadora da condenação em UC's lá está para desencorajar os mais atrevidos e sobretudo os mais pobres.



Artigo 213.º



«1 - O juiz procede oficiosamente ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, decidindo se elas são de manter ou devem ser substituídas ou revogadas: a) No prazo máximo de três meses a contar da data da sua aplicação ou do último reexame; e b) Quando no processo forem proferidos despacho de acusação ou de pronúncia ou decisão que conheça, a final, do objecto do processo e não determine a extinção da medida aplicada.

2 - Na decisão a que se refere o número anterior, ou sempre que necessário, o juiz verifica os fundamentos da elevação dos prazos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.os 2, 3 e 5 do artigo 215.º e no n.º 3 do artigo 218.º

(...) 4 - A fim de fundamentar as decisões sobre a manutenção, substituição ou revogação da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, o juiz, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, pode solicitar a elaboração de perícia sobre a personalidade e de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, desde que o arguido consinta na sua realização.

5 - A decisão que mantenha a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação é susceptível de recurso nos termos gerais, mas não determina a inutilidade superveniente de recurso interposto de decisão prévia que haja aplicado ou mantido a medida em causa».



Comentário: em primeiro lugar torna-se claro [através da nova formulação dada paa o n.º 1 e 2] que o reexame se estende à medida de obrigação de permanência na habitação. Depois mantendo-se a regra da periodicidade do exame [trimestral], determina-se a obrigatoriedade de tal exame em certos momentos-chave do processo: «quando no processo forem proferidos despacho de acusação ou de pronúncia ou decisão que conheça, a final, do objecto do processo e não determine a extinção da medida aplicada».

Quanto à audição do arguido, garantia essencial do contrário e direito fundamental daquele [artigo 61º do CPP] manteve-se a fórmula da lei substituída: ela ocorre «sempre que necessário», ou seja, a talante de quem decide.

Finalmente e expressando que se legisla sob a inspiração de casos judiciais concretos que finalmente dão ênfase a problemas até aí desconsiderados, estatui-se que «a decisão que mantenha a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação é susceptível de recurso nos termos gerais, mas não determina a inutilidade superveniente de recurso interposto de decisão prévia que haja aplicado ou mantido a medida em causa». A primeira parte da norma quase seria desnecessária, ante a regra geral da recorribilidade prevista no artigo 399º do CPP, não fosse certa jurisprudência ávida de encontrar razões de tolher as vias de recurso, suspeitas por uma certa cultura, de serem «excessos de garantismos» e meios dilatórios e de chicana, empecilhos ao bom despacho processual. A segunda parte visou pôr termo ao sistema pelo qual a retenção ilegal dos recursos para além do prazo em que deveriam ser conhecidos abria a porta à possibilidade de os inutilizar: era a inércia como expediente de rejeição liminar!

Comentário ao novo CPP: ainda a liberdade (2)

Artigo 198º, n.º 2

«2 - A obrigação de apresentação periódica pode ser cumulada com qualquer outra medida de coacção, com a excepção da obrigação de permanência na habitação e da prisão preventiva».

Comentário: concretiza a regra da cumulação que o artigo 205º consagrava quanto à caução. Que se tenha previsto a impossibilidade de cumular a apresentação periódica em posto policial com a obrigação de apresentação parte do pressuposto de que esta medida é controlada por vigilância electrónica, o que nem sempre resulta. Casos houve em que o arguido conseguiu libertar-se da pulseira que apôs num gato! Contaram-ma como verdadeira. E eu acredito na imaginação criadora!

Artigo 199.º

«1 - Se o crime imputado for punível com pena de prisão de máximo superior a 2 anos, o juiz pode impor ao arguido, cumulativamente, se disso for caso, com qualquer outra medida de coacção, a suspensão do exercício: a) De profissão, função ou actividade, públicas ou privadas; b) [Anterior alínea c).] sempre que a interdição do respectivo exercício possa vir a ser decretada como efeito do crime imputado.
«2 - Quando se referir a função pública, a profissão ou actividade cujo exercício dependa de um título público ou de uma autorização ou homologação da autoridade pública, ou ao exercício dos direitos previstos na alínea b) do número anterior, a suspensão é comunicada à autoridade administrativa, civil ou judiciária normalmente competente para decretar a suspensão ou a interdição respectivas».

Comentário: estende-se a possibilidade de suspensão a «função ou actividade» privada, enquanto que na formulação antecedente a possibilidade era circunscrita a «profissão ou actividade cujo exercício dependa de um título público ou de uma autorização ou homologação da autoridade pública».
Ora tratando-se de meio de obtenção de sustento, como compatibilizar o regime com as regras constitucionais?

Artigo 200º, ns.º 1 e 4

«1 - Se houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, o juiz pode impor ao arguido, cumulativa ou separadamente, as obrigações de: a) ... b) ... c) ... d) Não contactar, por qualquer meio, com determinadas pessoas ou não frequentar certos lugares ou certos meios; e) Não adquirir, não usar ou, no prazo que lhe for fixado, entregar armas ou outros objectos e utensílios que detiver, capazes de facilitar a prática de outro crime; f) Se sujeitar, mediante prévio consentimento, a tratamento de dependência de que padeça e haja favorecido a prática do crime, em instituição adequada».
(...)
«4 - A aplicação das medidas previstas neste artigo é cumulável com a da medida contida no artigo 198.º».

Comentário: reformulou-se no n.º 1 a alínea d) [eliminando a expressão «por qualquer meio» que ali constava, visando o contacto indirecto, por interposta pessoa, que assim fica desguarnecido] e aditam-se duas alíneas, a e) e a f). Quanto à primeira, imaginando que uma faca é um dos meios «capazes de facilitar a prática de outro crime», eis os arguidos proibidos de comer à mesa de garfo e faca? Ironia? Talvez! Mas poderia ter havido melhor redacção? Seguramente.
Quanto ao n.º 4 estipulou-se a cumulação possível desta regra com a medida de obrigação de apresentação periódica. De acordo.

Artigo 201º

«1 - Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a obrigação de não se ausentar, ou de não se ausentar sem autorização, da habitação própria ou de outra em que de momento resida ou, nomeadamente, quando tal se justifique, em instituição adequada a prestar-lhe apoio social e de saúde, se houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos.
2 - A obrigação de permanência na habitação é cumulável com a obrigação de não contactar, por qualquer meio, com determinadas pessoas.
3 - Para fiscalização do cumprimento das obrigações referidas nos números anteriores podem ser utilizados meios técnicos de controlo à distância, nos termos previstos na lei».

Comentário: estende-se a obrigação de permanência [que é aliás uma variante da proibição de ausência] «nomeadamente, quando tal se justifique, em instituição adequada a prestar-lhe apoio social e de saúde», o que é uma forma de internamento compulsivo ditado por outra forma. E por o ser tal regime pode gerar conflitos com normas em vigor sobre a legislação sobre a matéria.
O n.º 2 ao estabelecer que «a obrigação de permanência na habitação é cumulável com a obrigação de não contactar, por qualquer meio, com determinadas pessoas», expressa uma regra de cumulação de umas medidas coactivas com outras em que, nesse aspecto, o Código inovou.

Artigo 202.º
«1 - Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando: a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos; b) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos; ou (...)».

Comentário: é uma das inovações mais polémicas, mas já resultava, consensualmente [na aparência das coisas, descontando mesmo a maioria então silenciosa dos hoje críticos], do Congresso da Justiça.
A alínea b), quando articulada com a noção do que seja criminalidade violenta ou altamente organizada cobre muitos dos casos em que a prisão preventiva [devido à benigna dosimetria abstracta da pena] seria inaplicável.

Artigo 203º

«2 - O juiz pode impor a prisão preventiva nos termos do número anterior, quando o arguido não cumpra a obrigação de permanência na habitação, mesmo que ao crime caiba pena de prisão de máximo igual ou inferior a 5 e superior a 3 anos».

Comentário: clausulou-se a prisão preventiva/sanção para os casos em que, pela medida abstracta da pena ela não seria aplicável, havendo incumprimento de obrigação de permanência na habitação.

Comentando o novo CPP: a Santa Liberdade (1)

Artigo 193º, n.º 3

«3 - Quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares».

Comentário: a formulação nova traduz um critério de favor à liberdade, louvável, mas que pode levar à mesma situação em que caíu a regra generosa prevista e mantida no n.º 2, segundo a qual «a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção».
É que esta excepcionalidade da prisão preventiva, que o legislador de 1987 clausulou, com ingénua expectativa, deu numa prática inversa da pretendida. Ora, visto o histórico, esta proclamação amável para com os arguidos, poderá ser mais uma ilusão, a juntar a outras, em que a jurisprudência real não acompanhará a reforma virtual.

Artigo 194º, n.º 2

«2 - Durante o inquérito, o juiz não pode aplicar medida de coacção ou de garantia patrimonial mais grave que a requerida pelo Ministério Público, sob pena de nulidade».

Comentário: ante a polémica jurisprudencial sobre se o juiz poderia aplicar medida coactiva ou de garantia patrimonial diversa ou mais grave do que a proposta pelo MP, o legislador limita-se a impedir o agravamento judicial, deixando em aberto a possibilidade de convolação para medida diversa daquela que lhe houver sido requerida.
Consagra-se a lógica do juiz de instrução como mero fiscal da legalidade formal em matérias atinentes com a liberdade, como se o estatuto de liberdade individual fosse algo cuja aferição concreta coubesse ao MP, pois que mero instrumento ao serviço da investigação. É a filosofia do ao MP é que cabe dizer se lhe «interessa» um arguido em liberdade ou preso, tão presente na mentalidade de alguns.
O sistema agora consagrado é, ademais, equívoco, pois, por exemplo, ante uma medida de tiplogia aberta como a prevista no artigo 200º [proibição de permanência, de ausência e de contactos] fica por resolver se o juiz pode decretar medida tipificada em alínea diversa daquela outra que o MP houver requerido. Conflitos de entendimento jurisprudencial à vista!

Artigo 194º, n.º 3

«3 - A aplicação referida no n.º 1 é precedida de audição do arguido, ressalvados os casos de impossibilidade devidamente fundamentada, e pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial, aplicando-se sempre à audição o disposto no n.º 4 do artigo 141.º»

Comentário: ao sistema pelo qual a aplicação de uma medida de coacção é «precedida, sempre que possível e conveniente, de audição do arguido», segue-se um outro em que a regra é o contraditório, só excepcionado em casos de «impossibilidade devidamente fundamentada». Na aparência, excelente.
O problema grave da não audição prévia não surge, porém, a propósito a propósito da aplicação de uma medida, pois, em regra, esta é precedida de detenção com subsequente sujeição do detido ao primeiro interrogatório judicial.
A questão coloca-se quando se trata do reexame dos pressupostos da prisão preventiva [artigo 213º], em que se manteve o insuportável regime segundo o qual «sempre que necessário, o juiz ouve o Ministério Público e o arguido», porta aberta para a lesão à audiência.
Ou seja, estando o arguido privado da liberdade, tratando-se de controlar a legalidade do acto de mantutenção da prisão, o preso só é ouvido quando «necessário»!
O caricatural é que, dispensando-se ouvir o interessado numa matéria com este relevo, mantem-se uma regra geral de pura aparência liberal segundo a qual o arguido goza do direito de «ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoamente o afecte» [alínea b) do n.º 1 do artigo 61º do CPP]. Rever a manutenção da prisão só pode ser algo que não afecta o arguido pessoalmente, para que tudo isto tenha lógica!

Artigo 194º, ns.º 4 e 5

«4 - A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade: a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo; b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime; c) A qualificação jurídica dos factos imputados; d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º
«5 - Sem prejuízo do disposto na alínea b) do número anterior, não podem ser considerados para fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o n.º 3.

Comentário: é louvável este afã de fazer fundamentar a decisão sobre medidas coactivas e de garantia patrimonial e de taxar como nulidade a violação respectiva.
A alínea b) do n.º 4 parece pressupor uma regra que o legislador se esqueceu de enunciar - a de que a «descrição dos factos concretamente imputados» pressupõe uma referência aos «elementos do processo» que os indiciam.
Abre-se, assim, uma excepção a uma regra inexistente. E, se regra existisse, aliás, o conteúdo da excepção esvaziava o seu alcance, permitindo entorses ao dever de fundamentar que, enunciados que estão através de conceitos abertos [«puser gravemente em causa a investigação»] são essencialmente insindicáveis em recurso, dada a sua amplitude discricionária.
Além disso a alínea d) deveria ter sido unificada com a alínea a), até porque, a não o ter sido, legitima-se a ideia de que a excepção prevista na alínea b), já referida, aplica-se à situação tipificada na segunda e não na primeira, o que é ilógico.

Artigos 194º, n.º 6

6 - Sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 4, o arguido e o seu defensor podem consultar os elementos do processo determinantes da aplicação da medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, durante o interrogatório judicial e no prazo previsto para a interposição de recurso.

Comentário: uma vez mais a excepção liquida a regra. O direito de acesso a auto pode ser negado de modo insindicável, pois que negável discricionariamente.
Além disso, a lei prevê que o acesso pelo arguido e seu defensor seja aos «elementos do pocesso determinantes da apliação da medida de coacção ou de garantia patrimonial» e como o legislador, como vimos, se esqueceu de prever uma regra pela qual o juiz deve mencionar quais os elementos do processo relevantes, fica-se sem saber de que acesso estamos a falar. Ao limite, pois que tudo é relevante para indiciar o crime, e é em função do tipo de crime que se decreta uma medida como as que estão em causa, o arguido e o seu defensor podem ter acesso a todo o processo. Duvido que o legislador tenha querido isso ou a jurisprudência aceite um tal desventramento dos autos em favor do investigado.

Vacatio e carneiros

O Governo está a conseguir fazer passar a mensagem de que o novo CPP traz coisas tão boas que tem de entrar em vigor depressa. O Bastonário Rogério Alves, dizendo embora que o hiato entre a publicação e a entrada em vigor devia ser maior, opina também assim pois «considera a reforma do Código do Processo Penal "muito positiva e inovadora" em matéria de direitos, liberdades e garantias». O Governo deve estar feliz com ele e ele contente com o Governo.
Só o Bastonário Pires de Lima, no seu estilo peculiar, introduz uma nota dissonante, ao considerar que «a atitude dos advogados é de um “carneirismo terrível”».
Vamos a ver se marram!

Procuradores fora de jogo

Entendo que haja procuradores mais aptos a investigar do que a sustentar um caso na barra do tribunal e vice-versa. Como os advogados é o mesmo.
Mas o que não entendo é que no Ministério Público, por sistema, quem investiga não vá dar a cara pelo trabalho que fez e com base no qual foi deduzida a acusação em julgamento e quem tem a tarefa de vestir no campo da audiência a camisola da acusação não a tenho redigido e seja a ela alheio.
Que o sistema seja eficaz, duvido muito! Que o sistema serve para um passa-culpas, entendo, quando as coisas saem mal à Procuradoria: o procurador em julgamento sempre pode dizer que o caso já vinha moribundo, e o procurador que escreveu a acusação pode dizer que foi o colega de julgamento quem o matou. Disse o que agora disse no último Congresso do MP.
Agora há uma variante num processo que tem todos os tiques de um processo especial: é o quem investiga já saber a priori que não vai ter de enfrentar o produto do investigado quando for sindicado em julgamento e sabê-lo por definição ao mais alto nível, contra a opinião da «hierarquia» que parece ter deixado de o ser Pelo menos é o que li hoje.
Ora ante tão alto colocar do problema, que se imputa a uma opção pessoal do próprio Procurador-Geral da República, será que não temos o direito de perguntar: porquê? Ou talvez: o que se passa? Então apita-se assim um off side e nem uma explicação capaz há?

Resolver e punir

A noção de que o «número de incendiários detidos não acompanha descida de fogos», como li hoje, devia iluminar o espírito dos legisladores. O sobrepunir é sempre um expediente fácil, demagógico e que serve para os políticos mostrarem à população que o problema está resolvido. No mais, basta uns rudimentos de saber criminológico, como os meus, para saber que não é por aumentar as penas que diminuem os crimes. Sobretudo porque o fosso entre as penas abstractas e as punições concretas aplicadas pelos tribunais é enorme. Ao excesso legislativo corresponde a temperança judicial. No mais, o país continua a arder.