Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Violência doméstica

A propósito do conceito de violência doméstica o Acórdão da Relação do Porto de 19.09.12 [proferido no processo n.º 901/11.0PAPVZ.P1, relator Ernesto Nascimento e publicado aqui] definiu que: «não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.
Reclamações.»

Segundo o aresto:

«I – A conduta típica da violência doméstica é descrita através do conceito de “maus-tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
«II – Da actual descrição do tipo do artigo 152°, resultante da Lei 59/2007, de 4SET, resulta:
a) a ampliação do âmbito subjectivo do crime, que passa a incluir as situações de violência doméstica envolvendo ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges;
b) o recurso, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, com a consolidação do entendimento de que, condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, desde que se revistam de gravidade suficiente, podem ali ser enquadradas e,
c) que, por outro lado, não são, todas as ofensas corporais entre cônjuges que ali cabem, mas só aquelas que se revistam de uma certa gravidade, só aquelas que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou até vingança desnecessária, da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação.
«II - Como a própria expressão legal sugere, a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da vítima, tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de “maus tratos”. E estes só se verificam quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima.
«III - Se os maus tratos constituem ofensa do corpo ou da saúde de outrem, contudo, nem toda a ofensa inserida no seio da vida familiar/doméstica representa, imediatamente, maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável.»

Com interesse para a temática, permito-me citar da sua extensa fundamentação:

«O objectivo desta incriminação é a de prevenir as frequentes e, por vezes, tão subtis, quão perniciosas, formas de violência no âmbito da família, quer para a saúde física e psíquica e ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem estar.
A necessidade prática desta neo-criminalização, resultou, por um lado, do facto de muitos destes comportamentos não configurarem em si, crime de ofensas corporais simples e, por outro, resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos, consagrando-se a ideia de que a família não mais podia ser vista como um feudo sagrado, onde o direito penal se tinha de abster de intervir.
A razão de ser deste tipo legal, no entanto não é a protecção da comunidade familiar ou conjugal, antes a protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana.
Com esta incriminação visa-se assegurar uma “tutela especial e reforçada da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pela sua caracterização e motivação - geralmente associada a comportamentos obsessivos e manipuladores - constituam uma situação de maus tratos, que é por si mesma indiciadora do perigo e da ameaça de prejuízo sério frequentemente irreversível”. [5]
Pode-se dizer que os bens jurídicos protegidos pela incriminação deste tipo, são, em geral, os da dignidade humana, particularmente a saúde, compreendendo-se aqui o bem estar físico, psíquico e mental, podendo a sua violação ocorrer por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade do cônjuge e seja susceptível de pôr em causa qualquer dos bens acima mencionados.
O relevante é que os factos praticados, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter para a vida comum, sejam susceptíveis de colocar a vítima na situação de, mais ou menos permanentemente, sofrer um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade no seio da sociedade conjugal. [6]
A conduta típica da violência doméstica é descrita através do conceito de “maus-tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
Da actual descrição do tipo do artigo 152º, resultante da Lei 59/2007, de 4SET, resulta,
a ampliação do âmbito subjectivo do crime, que passa a incluir as situações de violência doméstica envolvendo ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges;
o recurso, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, com a consolidação do entendimento de que, condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, desde que se revistam de gravidade suficiente, podem ali ser enquadradas e,
que, por outro lado, não são, todas as ofensas corporais entre cônjuges que ali cabem, mas só aquelas que se revistam de uma certa gravidade, só aquelas que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou até vingança desnecessária, da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação.
“O desvalor potencial fundamentalmente tomado em consideração para justificar esta específica modalidade de incriminação se prende com os sérios riscos para a integridade psíquica da vítima que podem advir da sujeição a maus tratos físicos e/ou psíquicos, sobremaneira quando se prolongam no tempo”. [7]
“A panóplia de acções que integram o tipo de crime em causa, analisadas à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetradas, constituem-se em maus tratos quando, por exemplo, revelam uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente”. [8]
“Neste sentido, o crime de violência doméstica assume não a natureza de crime de dano mas de crime de perigo, nomeadamente de crime de perigo abstracto. É, com efeito, o perigo para a saúde do objecto de acção alvo da conduta agressora que constitui motivo de criminalização, pretendendo-se deste modo oferecer uma tutela antecipada ao bem jurídico em apreço, própria dos crimes de perigo abstracto”. [9]
“O importante é, pois, analisar e caracterizar o quadro global da agressão física de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, que, por si, constitui um “risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima”. [10]
Só em tal situação se impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.
Como a própria expressão legal sugere, a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da vítima, tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de “maus tratos”. E estes só se verificam quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima.
Se os maus tratos constituem ofensa do corpo ou da saúde de outrem, contudo, nem toda a ofensa inserida no seio da vida familiar/doméstica representa, imediatamente, maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável.
“Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal”. [11]»


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5] Cfr. Nuno Brandão, in “A Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Julgar, 12º, 18.
[6] Cfr. Ac . deste Tribunal de 29.9.2004, in CJ, IV, 210.
[7] Cfr. Nuno Brandão, 18.
[8] Cfr. Plácido Conde Fernandes, in “Violência doméstica – Novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, Jornadas sobre a revisão do Código Penal, 2009, Número especial, 307.
[9] Cfr. Nuno Brandão, 17.
[10] Cfr. Nuno Brandão, pág. 21.
[11] Cfr. Ac. RC de 28JAN2010. 

Gravações e prazo para recorrer

Haver matérias que deveriam ser mais do que claras mas que ainda continuam a ser controversas é a evidente demonstração da insegurança do Direito. 
A lei admite que quando em matéria penal o recorrente queira discutir os factos provados tenha de se habilitar com os suportes magnéticos - no caso CD's - onde está registada a prova oralmente produzida na audiência de julgamento. Sem isso, como conseguirá ele citar a prova que justificaria decisão contrária?
A partir daqui é uma miríade de problemas.
Primeiro, porque muitas vezes, mau grado o aparentemente sofisticado sistema de registo audio, há problemas de audibilidade, excertos que não ficaram gravados, pedaços em que o microfone estava desligado ou demasiadamente longe. 
Ante isso, os tribunais entendem que quando o interessado der por ela - o que sucederá quando, tendo decidido recorrer obteve os ditos suportes e os ouviu, sendo que por vezes se reportam a sessões de julgamento que levaram meses - já é tarde demais, pois que...deveria ter-se apercebido da irregularidade da falha até três dias depois do dia em que a gravação foi feita, o que quer dizer que, ao terminar o seu dia em tribunal tem de pedir logo a gravação dessa sessão, ouvi-la depois toda - duplicando o tempo de envolvimento com o que sucedeu - para aquilatar se ficou tudo gravado ou não! 
Em suma: uma falha do tribunal na cuidadosa gravação transforma-se num modo de prejudicar gravemente o interessado, amiúde o arguido, amputando-lhe o direito a recorrer. Fantástico não é? 
E mais fantástico porque isto tudo pressupõe que a audição do gravado seja feita quando  quem se der ao trabalho de pedir os registos e proceder à sua audição ainda não sabe se vai ou não recorrer, pelo que de esforço inútil e despesa inútil se tratará! Não me digam que não é igualmente fantástico!
Mas não se fica por aqui o admirável mundo novo que as novas tecnologias introduziram nos tribunais. É que há a questão de saber quando começa a correr o prazo de trinta dias que há para recorrer em matéria penal quando se discutir a matéria de facto e não apenas questões de Direito: quando a sentença é depositada? Quando o interessado tem, enfim, em seu poder os suportes da prova gravada que lhe permitem então recorrer sabendo do que faz? Eis o que um acórdão da Relação de Évora de 25.09.12 veio decidir [processo n.º 5/10.3TAFTR.E1, relator Sénio Alves, texto integral aqui], por esta forma: 
« Diz a arguida – e a Magistrada do MºPº na 1ª instância acompanha esse entendimento – que em caso de impugnação da matéria de facto o prazo para interposição de recurso se conta a partir da disponibilização das cópias dos suportes informáticos.
Não cremos que assim seja.
Nada na lei permite, salvo o devido respeito, o entendimento de que o pedido de cópia da gravação dos depoimentos inutiliza o período de tempo até aí decorrido, fazendo com que a contagem do prazo se inicie a partir da recepção da citada cópia.
A elevação de 20 para 30 dias do prazo para recorrer, quando o recurso tenha por objecto a reapreciação da prova gravada, já salvaguarda de forma suficiente o esforço acrescido que o recorrente irá ter com a audição das gravações e com o cumprimento das injunções previstas no artº 412º, nºs 3 e 4 do CPP. Entender que o prazo para interposição de recurso, em caso de pedido de reapreciação de prova gravada, se inicia com a entrega das cópias das gravações pode, no limite, levar à duplicação do prazo legal, bastando para tal que o interessado formule o pedido de cópias no último dia do prazo de que legalmente dispõe.
A assim ser, estaríamos perante o premiar da negligência, beneficiando aquele que só no último dia do prazo (ou a 3, 4 dias do mesmo, pouco importa) vem a tribunal requerer as cópias das gravações, em detrimento daquele que, com a diligência normal, vem requerer tais cópias no momento em que as mesmas estão presumivelmente disponíveis, isto é, no dia imediato ao depósito da sentença.
É verdade que o Tribunal Constitucional decidiu, no seu Ac. nº 545/2006 (citado pela arguida no seu requerimento de interposição de recurso), “julgar inconstitucional, por violação do artº 32º, nº 1 da CRP, a norma constante do artº 411º, nº 1 do CPP, interpretado no sentido de o prazo para a interposição de recurso em que se impugne a decisão da matéria de facto e as provas produzidas em audiência tenham sido gravadas, se conta a partir da data do depósito da sentença na secretaria, e não da data da disponibilização das cópias dos suportes magnéticos, tempestivamente requeridas pelo arguido recorrente, por as considerar essenciais para o exercício do direito de recurso”. Como é verdade, aliás, que o mesmo Tribunal, agora no seu Ac. nº 194/2007 (também citado pela arguida no seu requerimento de interposição de recurso), reafirmou esse entendimento, aliás reproduzindo integralmente a fundamentação do Ac. 545/2006.
Porém, havia uma razão para o Tribunal Constitucional assim ter decidido naquele Ac. nº 545/2006 e que, aparentemente, não terá sido devidamente ponderada em acórdãos posteriores dos nossos tribunais superiores, que o vêm citando. É que na situação em análise naquele aresto as cópias das gravações foram pedidas antes de iniciado, sequer, o prazo para interposição do recurso, porquanto a sentença foi lida e depositada no dia 19/7/2005, em plenas férias judiciais do Verão [1]. Assim, o prazo para interpor recurso iniciar-se-ia em 15/9/2005, sendo certo que 3 dias antes, 12/9/2005, o arguido requereu as cópias das gravações. Não fazia sentido aqui, pois, falar em suspensão de um prazo que ainda se não havia iniciado. E daí, cremos, a redacção do sumário desse aresto.
Note-se, aliás, que naquele Ac. nº 545/2006 o TC começa a sua apreciação de mérito salientando duas notas preliminares, a primeira das quais é, precisamente, uma chamada de atenção para o facto de “a questão colocada pelo recorrente não foi a da extensão aos recursos penais do regime do alargamento do prazo de interposição de recurso previsto no artigo 698º, nº 6 do Código de Processo Civil (…) mas antes a da suspensão desse prazo enquanto não lhe forem disponibilizadas as cópias das cassetes contendo a gravação da prova produzida em audiência de julgamento” (subl. nosso) [2].
O TC, no seu Ac. nº 17/2006 [3], considerando que “não tendo o recorrente solicitado, podendo tê-lo feito, o acesso à gravação da prova logo após a notificação da sentença, e considerando-se que com a possibilidade desse acesso o arguido ficava em condições de exercitar – consciente, fundada e eficazmente – o seu direito de recurso” decidiu “não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 411.º, n.º 1, e 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que o prazo de interpo­sição de recurso penal em que se questione a decisão da matéria de facto e em que se proce­deu a gravação da prova produzida em audiência se conta da data em que o arguido, agindo com a diligência devida, podia ter acesso ao suporte material da prova gravada, e não da data em que foi disponibilizada a transcrição dessa gravação”.
E a verdade é que o Tribunal Constitucional, no seu Ac. 546/2006 (também citado pela arguida, no seu requerimento de interposição de recurso), desenvolvendo a tese sustentada naquele Ac. nº 17/2006, acabaria por “julgar inconstitucional a norma do artigo 411º, nº 1, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição, interpretado no sentido de ao prazo de 15 dias referido nesse preceito não acrescer o período de tempo em que o arguido não pôde ter acesso às gravações da audiência, desde que se pretenda impugnar a matéria de facto e desde que o arguido actue com a diligência devida” (subl. nosso).
Em suma: Estando as gravações dos depoimentos prestados em audiência disponíveis (como é regra e a arguida/recorrente nada alegou em contrário) no final de cada sessão de prova, no momento em que a sentença é depositada na secretaria a recorrente tinha, seguramente, acesso ao suporte material da prova gravada.
É, pois, a partir desse momento (depósito da sentença) que, em obediência à regra prevista no artº 411º, nº 1, al. b) do CPP, se deve contar o prazo para interposição do recurso.
Ao prazo assim contado deve acrescer o período em que o arguido não pôde ter acesso às gravações, isto é, o período entre a formulação do pedido de cópias com fornecimento do suporte técnico (artº 101º, nº 3 do CPP) e a entrega, pelo tribunal, das ditas cópias.
Ou, como se afirma no Ac. RC de 9/1/2008 (proc. 423/05.9 PBVIS.C1), «Quando o recorrente pretende impugnar a matéria de facto e, logo no primeiro dia, do prazo de 15 dias a que alude o art.411.º, n.º 1 do C.P.P., se apresenta ao Tribunal a solicitar o suporte material da prova gravada, com entrega do suporte para a realização da cópia, o prazo de recurso não deverá iniciar-se sem que o recorrente tenha acesso efectivo àquele suporte material com a entrega das cópias pelo Tribunal. Se o recorrente não se apresenta logo no primeiro dia, do prazo de 15 dias a que alude o art.411.º, n.º 1 do C.P.P., a solicitar o suporte material da prova gravada, aquele prazo de interposição do recurso inicia-se, mas deverá suspender-se entre o momento em que o recorrente solicita a gravação e entrega o suporte para a realização da cópia e o momento da entrega da cópia ao recorrente pelo Tribunal ou em que, actuando diligentemente, podia ter ficado em condições de ter acesso a essa cópia. Por outras palavras, aos 15 dias de prazo para a interposição do recurso deverão ser “descontados” os dias em que o recorrente, depois de ter solicitado a prova gravada em audiência não pôde ter acesso à mesma prova por o Tribunal não lha ter disponibilizado» [4].
Temos, então e na situação em apreço, que o prazo (de 30 dias, no caso) para interposição do recurso se iniciou em 15/3/2012.
A arguida requereu cópia das gravações por carta enviada em 28/3/2012; porém, só entregou o suporte técnico por carta enviada em 2/4/2012, razão pela qual só nesta data se suspenderia o prazo em curso, não fora dar-se o caso de estar o prazo suspenso desde o dia anterior, início do período de férias judiciais da Páscoa.
É que, como claramente resulta do artº 101º, nº 3 do CPP, pressuposto da entrega da cópia da gravação é que o sujeito processual a requeira e forneça ao tribunal o suporte técnico necessário. Admitir que a suspensão do prazo para interposição do recurso ocorre com o simples pedido de fornecimento da cópia da gravação levaria a que, em abstracto, o prazo ficasse indefinidamente suspenso, enquanto o interessado, depois de requerer a dita cópia, não entregasse o necessário suporte técnico. E que a interpretação que defendemos (isto é, que a suspensão do prazo para interposição do recurso só ocorre com a verificação conjunta dos dois requisitos enunciados no nº 3 do artº 101º do CPP – requerimento do interessado e entrega do suporte técnico) tem conformidade constitucional, já o decidiu o TC no seu Ac. nº 293/2012: «Não julgar inconstitucionais as normas do artigos 101.º, n.° 3, 411.º, n.ºs 1 e 4, 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, interpretadas conjugadamente no sentido de o prazo para o exercício do direito ao recurso em que se impugne a matéria de facto só se suspender quando, simultaneamente com o requerimento de solicitação das gravações, for entregue no tribunal o suporte técnico necessário à execução da cópia, mesmo que à data o tribunal não possua os meios técnicos necessários à gravação e só em momento posterior venha a deferir, por despacho judicial, o fornecimento das pretendidas cópias».
No caso em apreço, o prazo estava, porém, suspenso desde dia 1/4/2012, início das férias judiciais. Terminou a suspensão com a entrega da cópia da gravação, enviada à arguida em 3/4/2012, como se vê de fls. 956, e por ela – rectius, pelo seu il. mandatário – presumivelmente recebida em 9/4/2012, posto que dia 6 coincidiu com um dia feriado e dias 7 e 8 com sábado e domingo, respectivamente.
Curiosamente, foi precisamente nesse dia 9/4/2012 que terminou o período de férias judiciais durante o qual, em qualquer dos casos, o prazo não correria.
Reiniciado o prazo no dia 10/4/2012, terminou o mesmo em 23/4/2012 (ou em 27/4/2012, se acrescido de 3 dias úteis).
O recurso da arguida foi enviado por carta com registo de 10/5/2012, esgotado que estava, há muito, o prazo de que dispunha para recorrer.
No caso, note-se, o recurso é intempestivo mesmo que se entenda (mal, em nossa opinião) que a notificação da arguida só tem lugar com a recepção da carta que lhe foi enviada, contendo cópia da sentença (fls. 950) e que o prazo para recorrer se deve contar desde essa notificação.
Na realidade, depositada a carta enviada à arguida em 19/3/2012 [5] (cfr. fls. 957), a notificação teria ocorrido no 5º dia posterior, como constava da carta que lhe foi enviada e, portanto, em 24/3/2012. Ainda que se entenda que, por se tratar de sábado, o dia correspondente à notificação se transfere para o 1º dia útil seguinte, então ter-se-ia a arguida por notificada em 26/3/2012. Consequentemente, o prazo de 30 dias (contados a partir desse dia) terminaria em 4/5/2012 (ou em 9/5/2012, se contarmos os 3 dias úteis posteriores). E a motivação de recurso só foi, como vimos, enviada no dia seguinte (10/5/2012), dando entrada em tribunal no dia 11/5/2012.
Em suma: o recurso interposto pela arguida é extemporâneo e, como tal, não devia ter sido admitido – artº 414º, nº 2 do CPP. Tendo-o sido, tal decisão não vincula este tribunal de recurso – nº 3 do mesmo dispositivo – sendo fundamento para a sua rejeição – artº 420º, nº 1, al. b) do CPP – a determinar em decisão sumária, neste exame preliminar – artº 417º, nº 6, al. b) do CPP.»

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[2] Seja como for, convém lembrar – como o faz a RL, no seu Ac. de 11/1/2011, proc. nº 629/04.8PASXL.L1-5, www.dgsi.pt – que “o panorama legal é agora muito diferente daquele que existia ao tempo em que foram proferidos (…) os acórdãos do TC n.º 545/2006 e n.º 194/2007. Então, o prazo de interposição de recurso era de 15 dias e era uniforme na jurisprudência do TC e do STJ (veja-se o acórdão n.º 9/2005 do Pleno das Secções Criminais deste tribunal supremo) o entendimento de que, mesmo em caso de impugnação da decisão sobre matéria de facto, não havia lugar a extensão (10 dias) do prazo, por ser inaplicável no processo penal o n.º 6 do art.º 698.º do Cód. Proc. Civil. Se o tribunal demorasse a fazer a entrega das cópias dos suportes magnéticos com a gravação das declarações oralmente prestadas na audiência, o prazo para elaborar e entregar, tempestivamente, o recurso ficava muito encurtado (isto, claro, sempre no pressuposto de que seria impugnada a decisão sobre matéria de facto). Então, sim, podia dizer-se que o direito de defesa, designadamente o direito ao recurso, ficava seriamente comprimido. Por isso se compreende que o TC tenha dito (no citado acórdão n.º 545/2006) que aquele prazo de 15 dias era desrazoável e inadequado uma vez que o suporte material da prova gravada não fosse disponibilizado desde o termo a quo desse prazo. Presentemente, a partir da reforma do Código de Processo Penal operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o prazo de interposição de recurso é o dobro daquele, se for impugnada a decisão sobre matéria de facto. Simultaneamente, foi alterado o art.º 101.º, n.º 3, do Código de Processo Penal para acelerar a entrega dos suportes das gravações da prova oralmente produzida para permitir o controlo, quase imediato, pelos sujeitos processuais, não só da regularidade da audiência, mas também do conteúdo das declarações nela prestadas e assim habilitá-los, desde logo, a ponderar uma eventual impugnação da decisão sobre matéria de facto. Agora, sempre que um sujeito processual lha solicite, o funcionário entrega, em 48 horas, uma cópia da gravação audiográfica (ou videográfica, quando a houver) da prova produzida em audiência. Basta que lhe forneça o suporte técnico necessário para a gravação”.

[3] Os acórdãos do Tribunal Constitucional aqui referidos podem ser, todos eles, consultados em www.tribunalconstitucional.pt.

[4] No mesmo sentido, cfr. Ac. RP de 17/1/2007, proc. nº 0615418.
 

A teoria do dominó


Não há dúvida que o Direito Processual Penal é o domínio por excelência dos alçapões, dos meios pelos quais as rejeições dos actos encontram o seu campo de legitimação por excelência. Se não vejamos um exemplo.
«Defende a Exma.Procuradora-Geral Adjunta que a arguida Mónica interpôs recurso no 21.º dia após o depósito do acórdão, discordando da forma como o tribunal valorou a prova produzida, mas sem indicar as provas concretas que pretende reapreciadas e que impunham uma decisão diversa da recorrida, pelo que apenas dispunha do prazo de 20 dias para recorrer.», considerou-se num recurso.
Ou seja, para impugnar a matéria de facto em processo penal o recorrente tem 30 dias e não apenas 20 que é o prazo para recorrer da matéria de Direito; só que, se o recurso sobre a matéria de facto vier mal desenhado, não é conhecido - o que é razoável - mas fica logo prejudicado o recurso da matéria de Direito! Não é admirável esta teoria do dominó, segundo a qual, caindo uma peça caem todas?.
Felizmente a Relação de Guimarães no seu Acórdão de 19.09.12 [proferido no processo 15/11.3PBBRG.G1, relatora Maria Luisa Arantes, texto integral aqui] entendeu que: «Nos termos do art. 411.º n.º1 al.b) do C.P.Penal, o prazo de recurso é de 20 dias, contando-se a partir do depósito da sentença na secretaria.
O prazo é elevado para 30 dias “se o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada” – n.º4 do citado art.411.º do C.P.Penal.
Concluímos, assim, que em processo penal o prazo geral de recurso é de 20 dias, sendo alargado para 30 dias se o recorrente impugnar a matéria de facto com base em meio de prova gravado em audiência. Aliás, este alargamento do prazo de recurso, em nossa opinião, justifica-se pela necessidade de audição da prova gravada, o que acarreta dispêndio de tempo.
Embora para a reapreciação da prova gravada pelo tribunal ad quem seja necessário que o recorrente dê cumprimento às exigências do art.412.º n.º3 e 4 do C.P.Penal, para efeitos de apreciação da tempestividade do recurso, não tem fundamento rejeitá-lo por não ter sido cumprido integralmente o referido art.412.º n.º3 e 4. O que releva, para efeitos de tempestividade do recurso, é o fim visado pelo recorrente: impugnação da matéria de facto fundada na reapreciação da prova gravada.
Exigir o devido e integral cumprimento do art.412.º n.º3 e 4 do C.P.Penal, para se apreciar se o recurso foi interposto em tempo, é confundir a tempestividade do recurso com a admissibilidade da apreciação do seu mérito.
No caso em apreço, analisando as conclusões do recurso, que delimitam o seu objeto, verifica-se que a recorrente impugna a sua comparticipação nos factos delituosos, invocando para tanto a prova produzida decorrente das suas declarações e do depoimento do ofendido em audiência de julgamento, que transcreve parcialmente, ou seja, a recorrente ao impugnar a matéria de facto pretende a reapreciação da prova gravada. Questão diferente é saber se cumpriu integralmente o disposto no art.412.º n.º 3 e 4 do C.P.Penal, mas tal questão tem de ser equacionada em termos de apreciação de mérito do recurso.Tendo o acórdão sido depositado em 15/12/2011 e o recurso interposto em 18/1/2012, ou seja, no 21º dia após o depósito daquele, concluímos que o recurso foi interposto tempestivamente, de harmonia com o disposto no art. 411.º n.º4 do C.P.Penal»

Espanha: revisão do Código Penal


O Ministério da Justiça de Espanha apresentou as novidades da reforma do Código Penal. Cito do comunicado que apresenta o Anteprojecto, o qual dentro de semanas será submetido a Conselho de Ministros:

-» Se introduce la prisión permanente revisable para los tipos agravados de asesinato

-» La custodia de seguridad se aplicará a los reincidentes en delitos peligrosos de especial gravedad

-» La detención ilegal con desaparición se castigará como homicidio

-» Los delitos sexuales serán computados individualmente y no como continuados

-» La libertad condicional será regulada como una suspensión de la pena

-» Se suprimen las faltas: se tipificarán como delitos leves o pasarán a ser sancionadas por la vía administrativa

-» Se agrava el delito de atentado cuando se utilicen objetos que conlleven peligro para la integridad del agente

-» Se endurecen las penas para los autores de incendios forestales

-» La administración desleal de fondos públicos se castigará como malversación

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Confissão e arrependimento

O que deve constar da sentença penal em matéria de confissão e arrependimento ou da sua ausência? A questão foi equacionada pelo Acórdão da Relação de Évora de 18.09.12 [proferido no processo n.º 980/11.0PCSTB.E1, relatora Ana Brito, texto integral aqui], segundo o qual:

«1. A confissão e o arrependimento devem constar dos factos provados, de modo a poderem ser positivamente valorados na pena.
«2. Mas a ausência de confissão, a ausência de arrependimento e o silêncio do arguido não devem ser incluídos nos factos, pois deles não pode retirar-se, positivamente, consequência negativa contra o arguido.
 «3. A não inclusão da confissão nos factos provados demonstra que o tribunal não considerou provado que o arguido tenha assumido os factos da acusação.»
 
Desenvolvendo o seu raciocínio argumentativo explica o aresto nesta problemática questão:

«A forma de impugnação da omissão de factos relevantes para a decisão é a arguição do vício previsto no art. 410º, nº2 do Código de Processo Penal, e não a impugnação da matéria de facto por via do art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal. “Só os factos que na sentença sob recurso foram julgados provados ou não provados podem ser impugnados” (TRE 17-01-2012, António João Latas).
Os factos em causa integram-se num dos núcleos enunciados no art. 124º do Código de Processo Penal e, a provarem-se, interessam para a decisão sobre a pena.
Na verdade, a generalidade dos factores relativos à personalidade do agente, as “qualidades da personalidade”, relevam para a medida da pena preventiva (assim, Anabela Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, 1995, pp. 665 a 678).
Assim, importa sempre conhecer e tratar na sentença o modo como o agente pessoalmente se posiciona em relação aos crimes por si cometidos, quando os confessa e/ou quando demonstra reconhecimento e interiorização do mal do crime.
Contudo, já não será um facto, a tratar como tal na sentença, a ausência de confissão, a ausência de arrependimento ou, no limite, o próprio silêncio do arguido acerca dos factos que lhe são imputados.
Se é juridicamente errado incluir nos factos provados, por exemplo, que o arguido “manteve o silêncio” – o silêncio do arguido não é um facto, no sentido de facto-com-conteúdo-normativo porque, como exercício de um direito, dele não pode ser retirada qualquer consequência jurídica (contra o titular desse mesmo direito) – também o será consequentemente a não confissão.
O arguido não presta declaração no exercício de um direito reconhecido nos arts. 61º, nº1, al. d), 132º, nº 2, 141º, nº 4, a), e 343º, n. 1, do CPP e considerado como de tutela constitucional implícita.
O silêncio, mesmo que não beneficie, não pode prejudicar.
Logo, estamos perante um não-facto que, como tal, não poderá constar dos factos provados na sentença. E do nemo tenetur se ipsum accusare, do privilégio da não auto-incriminação, resulta ainda que o arguido não é obrigado a assumir os factos, ou seja, a confessar.
Não descortinamos, assim, razão que justifique que “o silêncio do arguido” e “a negação do crime” mereçam, formalmente e para este efeito, tratamento diferenciador na forma como devem ser (ou não ser) factualmente tratados na sentença.
Mas já a confissão, a verificar-se (por livre opção do arguido), deverá constar dos factos provados, de modo a poder ser positivamente valorada na pena. Pode redundar num juízo atenuante das exigências de prevenção, particularmente a especial.
Assim, o recorrente tem razão quando diz que a confissão – a provar-se, acrescentamos nós – deve constar dos factos provados. Já não a tem quando acrescenta que, a não se provar, deverá então constar dos factos não provados – o que, como dissemos, só se justificaria se da negação do arguido pudessem retirar-se, positivamente, consequências negativas contra ele.
E não devendo incluir-se nos factos a ausência de confissão, a omissão total na sentença (da expressão “o arguido confessou os factos”) não pode deixar de revelar um juízo negativo, por parte do tribunal, relativamente à prova da confissão.
Ou seja, a não inclusão da confissão nos factos provados demonstra inequivocamente que o tribunal não considerou provado que o arguido tenha assumido os factos.
E assim, neste caso, embora se trate de um facto com relevo para a decisão de direito, e que formalmente não aparece tratado como tal na sentença, esta omissão não consubstancia uma insuficiência da matéria de facto para a decisão.
Tratando o art. 410º, nº 2 dos vícios da decisão, verificáveis pelo mero exame do próprio texto ou por esse exame conjugado com as regras da experiência comum, elementos estranhos à decisão não podem ser invocados ou chamados a fundamentar os vícios que, repete-se, têm de resultar do próprio texto, e apenas deste. A insuficiência da matéria de facto provada ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito.
Só existe quando o tribunal deixa de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídica, concluindo-se pela existência de factos não apurados que seriam relevantes para a decisão da causa. É uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 69).
Ora, devendo a confissão e o arrependimento, quando provados, ficar a constar dos factos provados, mas não o devendo a ausência de confissão e de arrependimento, a pretensão do recorrente não pode ser sindicável por via dos vícios do art. 410º, nº2 do Código de Processo Penal.
Como resulta de todo o exposto e da forma como o próprio recorrente apresentou o recurso, o que ele pretende é que se julgue provado um facto, que entende ter-se provado contrariamente ao que resulta do acórdão (em que a confissão não foi considerada provada).
Só que, para tanto, deveria ter impugnado a prova nos termos do art. 412º, nº3 do CPP, especificando as concretas provas que impunham decisão diversa da recorrida (no sentido de se dever ter considerado provados a confissão e o arrependimento), fazendo-o por referência ao consignado na acta, com indicação das passagens em que fundava a impugnação (art. art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP).
O que não fez.
E não revelando o acórdão qualquer vício do art. 410º, nº2 do Código de Processo Penal, como se viu, não poderá já haver lugar à eventual modificação da decisão quanto à matéria de facto no sentido pretendido pelo recorrente.»

Do CEJ para a TV: justiça e crise

É amanhã, um colóquio no CEJ sobre a crise, os juízes e a organização judiciária, a partir das 9 e trinta. O programa está aqui. Quem não puder estar presente pode assistir em directo aqui.

Fundamentação e decisão própria

Para que fique claro que pensou e não copiou, para que se evidencie pela letra que o espírito é o de uma pessoa independente da outra, quem decidiu sobre o que se promoveu «o juiz não pode usar apenas as acusações do Ministério Público como fundamento de sua decisão judicial. Ao fundamentar sua decisão no julgamento de uma acção penal, é sua obrigação expor fundamentação própria e transcrever ainda o trecho da peça processual usada como referência para a decisão.» Ver tudo aqui.
O entendimento vem do Brasil. Lá como cá necessário. A jurisdição é uma autonomia total da vontade, não o efeito de uma sugestão. Não pensa o pensado, pensa como tem de pensar. Não carimba, proclama. Não é um serviço de funcionários, é o Autoridade em acção. Não é o curador, sim o pretor.

Comparação e velocidade

Não é comparável o sistema de justiça civil italiano com o nosso, como, em rigor, nenhum sistema é comparável com outro, talvez idêntico, por mais que finjam ignorá-lo ou se esforcem por demonstrar o contrário os maníacos da citação, espécie de erudição sustentada no argumento da autoridade alheia.
Mas algo surge na Itália a braços com dificuldades financeiras que passou a fazer parte da cultura jurídica economicista dos tempos contemporâneos: a celeridade processual. Entra hoje em vigor, naquele País, uma lei para evitar os recursos em processo civil e para lhes reduzir o âmbito em nome do depressa, mais depressa, porque mais barato. Pode ler-se aqui.

As virtudes e os pecados da contra-instância

 
É uma arte a do cross-examination, o contra-interrogatório ou a contra-instância. Através dela aprende-se a virtude do contraditório, a demonstração de que nos aproximamos tanto mais da verdade quanto se garanta o direito de réplica, uma das vertentes do contraditório.
Quem teve experiência de vida forense sabe que é assim, aquele para quem a Justiça é uma função pública para o preenchimento de formulários rotineiros de acção, duvida, é claro, que não se esteja a perder tempo numa maçadoria. Ademais, há aqueles que pensam que o depoimento credível é só aquele que foi prestado ante si, e nem se dignam ouvir as respostas dadas a outros, a juntar àqueles que treplicam sempre ante o fruto das réplicas que alteraram o sentido obtido pela primitiva instância, os que teimam sempre em inutilizar a verdade que não lhes convém à tranquilidade do adquirido.
Vale por isso a pena passar os olhos por este artigo aqui. Escrito a pensar em advogados e a tentar poupá-los a tristes figuras no foro como se denota por esta máxima: «Nunca faça uma pergunta cuja resposta você não saiba com antecedência». Mas há para todos. São coisas simples, mas a vida é a complexidade de muitas coisas simples.

Os limites da sela curul

Ao ter começado a ler, tacteante, um extenso porque intenso livro sobre as instituições criminais romanas, solidamente edificado num saber profundo e rigoroso, lembrei o que pelo passar dos anos tinha esquecido porque, ao havê-lo estudado, fixara-o, infantil - imagine-se o ter-me envolvido nisto com dezassete anos ignaros, ó Universidade inconsciente ! - sem contexto nem vivência social suficiente. 
Foi pela instituição das quaestiones perpetuae, esse tribunal permanente, que, dois séculos antes de Cristo, que Roma investigava e julgava o crimen repetundarum, afinal os ilícitos que numa categorização ampla contemporânea situaríamos no círculo delineado pela concussão e pela corrupção e mais tarde outras espécies de crimes, entre os quais os peculatos. 
Curiosa a composição do tribunal: acusador privado, julgamento por cinquenta e um a setenta e cinco jurados populares, juiz pretor com simples poderes de presidência. 
Interessante que ao pretor, que administrava Justiça, sentado na sella curulis [ver foto], tenha sido subtraído neste domínio um tal poder. O Direito Romano subsistiu porque, afinal, está tudo lá.