Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Matéria de facto nos recursos penais: uma conferência



Hesitei se o deveria aprimorar antes da publicação, mas manda a coerência que o texto desta minha intervenção surja tal como foi lido na conferência sobre Direitos Fundamentais no Processo Penal, que teve lugar no passado dia 21 de Novembro no Salão Nobre da Academia das Ciências, organizada pelo Supremo Tribunal de Justiça e em que me foi dada a honra de participar com o tema recurso: impugnação da matéria de facto, vícios da decisão e in dubio pro reo. 


Há momentos em que urge regredir no tempo para, através do passado, tentar o conforto de compreender o presente,  com risco de terminarmos, porventura, ante aquilo em que o mesmo se tornou, num sentimento frustrante de desilusão. Eis o trajecto que me proponho fazer.
Os que trabalharam sob  sistema do Código de Processo Penal de 1929, ou o estudaram depois de ter terminado a sua vigência, lembram que os recursos penais corriam nele sob a forma de agravo; aqueles que têm presente o que se consagrou na versão inicial do Código de Processo Penal de 1987, recordar-se-ão que, de modo claro, a Lei de Autorização Legislativa n.º 43/86, de 26 de Setembro, que viabilizou a aprovação de tal diploma, estatuía que ao tribunal da relação era atribuída competência para conhecer «em apelação» dos recursos interpostos de decisões interlocutórias e finais do juiz singular e de decisões interlocutórias emitidas pelo tribunal colectivo» [n.º 72].
Não se tratava então de mera mudança de etiquetas na designação da espécie de recursos, sim, implantar uma outra filosofia, segundo a qual nos recursos haveria de privilegiar-se o mérito das questões e não apenas os temas do procedimento.
Ora, conferindo o que mostra a prática dos tribunais e a mentalidade que se formou em matéria do tema, conclui-se que a lógica subjacente ao princípio da apelação entrou em necrose e subiste hoje com escassa projecção: é, de facto, sentimento de quem pratica nos tribunais, que as questões processuais têm mais probabilidade de serem acolhidas em recurso do que a discussão substancial dos factos provados e não provados, pois quanto a estas, entre a lei e a jurisprudência, foram-se acumulando entolhos a essa possibilidade.
O tempo histórico correu, pois, no sentido do desaparecimento da apelação penal, não só como palavra, mas como realidade jurídica, pois ela sumiu do sistema processual como termo e como ideia.
E, no entanto, o Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira, no seu Curso de Processo Penal, [impresso em 1986], concluía:

«[…] a apelação é o recurso que verdadeiramente constitui um segundo julgamento; substitui, ao juízo da 1ª instância, um novo juízo, em matéria de facto e de direito, de 2ª instância».

Eis o que se tornou evanescente do universo da Justiça criminal, a ideia de que o recurso é essencialmente um novo exame, uma revisão do visto, uma segunda oportunidade de avaliação do decidido em todos os ângulos em que ocorreu decisão recorrida: hoje o recurso tornou-se uma pálida imagem dessa noção.
Tudo isso surgiu de um progressivo gotejar histórico que foi sedimentando. O Código de Processo Penal tentou criar um modelo com isso fracturante, mas estava à vista que não teria futuro. A História explica porquê.
Admitiam-na, à apelação penal, as Ordenações. Mas em 1892, uma Lei, de 15 de Setembro, determinava já que as apelações e as revistas eram julgadas como agravos.
Era o ponto sintomático da desvalorização das nomenclaturas, miscigenando-as todas, desvalorizando assim cada uma. Citando Alves de Sá, coevo do que se passava:

«Assisto aterrorizado desde 1892 a esta confusão tumultuosa em que caiu o foro nesta matéria».

Ao chegar-se do Código de Processo Penal de 1929 já o conceito de apelação penal tinha sido, entretanto, varrido da terminologia da lei adjectiva criminal e encontrávamos apenas um princípio, que nos acompanhou a todos quantos, como é o meu caso, tivemos esse código como companhia profissional - já retalhado, acrescentado, parcialmente revogado e derrogado - segundo o qual - e eis o seu artigo 649º:

«Os recursos em processo penal serão interpostos, processados e julgados como os agravos      de petição em matéria cível, salvas as disposições em contrário deste código».

Não era esta, a que citamos, uma simples norma jurídica sobre tramitação, era, sim, um normativo sobre a natureza das coisas em matéria de recursos, a dar-lhes uma semântica e sobretudo uma direcção interpretativa em via reduzida: dizia-se «agravo» para que ficasse entendido que não se queria dizer «apelação». E dizia-se, aliás, «agravo de petição» categoria jurídica que havia, aliás, já caído em desuso.
É que natureza do agravo era determinada sobre a incidência do seu objecto, a circunstância de recair sobre tema processual, que não sobre o mérito da causa, afastando assim o território natural da apelação.
No enunciado da lei subsidiária, e como tal aplicável em regime de integração, determinava já o Código de Processo Civil de então [o de 1876] que:

«[…] das decisões de que não pode apelar-se e que excedam a alçada do juiz compete agravo».

E quanto ao critério pelo qual se encontravam os casos de que cabia apelação, resumia-o o Professor Alberto dos Reis, no seu livro Breve Estudo sobre a Reforma do Processo Civil e Comercial ao escrever que o legislador havia reservado a apelação «para as sentenças que conhecem do mérito ou do fundo da causa, compreendendo-se na palavra causa certos e determinados incidentes».
Em suma, o desaparecimento a partir de 1929  da categoria das apelações penais significou como única ilação possível, uma indicação legislativa no sentido da incognoscibilidade tendencial do mérito das causas penais. Era, assim, a restrição dos recursos no que se refere à sindicabilidade efectiva das causas penais julgadas em primeira instância.
É que esse Código de Processo Penal de 1929 havia determinado, no seu artigo 665º, que:

«As Relações conhecerão de facto e de direito nas causas que julguem em primeira instância e nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1ª instância, e conhecerão só de direito, nos recursos interpostos das decisões finais nos tribunais colectivos e das proferidas em processos em que intervenha o júri (…)» [salvo o caso de anulação da decisão do júri em caso específico].

Quer dizer: o mérito da causa, a partir da reforma processual penal de 1929, e em função daquele citado preceito, passou a ser matéria cognoscível pela Relação apenas quando a decisão recorrida fosse oriunda de juiz singular, desde que não se prescindisse de recurso, caso em que [artigo 532º]:

«[…] escrever-se-ão resumidamente na acta da audiência as respostas do réu, os depoimentos das testemunhas e as declarações dos ofendidos e outras pessoas que devam prestá-las».

Estava consagrada, com força de lei, a intangibilidade das decisões do colectivo sobre o mérito da causa, o fim da apelação penal nas causas relevantes, as que eram julgadas em processo de querela, puníveis com penas mais graves.
O sistema, na sua natureza imanente, já era suficientemente explícito, mas uma vertente prática do mesmo demonstraria a sua verdadeira essência e sobretudo os propósitos que animavam os seus autores.
Assim, como o clarificou um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1932, mesmo depois da alteração do CPP em 1931 «[…] os depoimentos das testemunhas perante o tribunal colectivo não são escritos».
Era impossível a Relação sindicar a prova produzida em audiência devido à ausência de registo da mesma. Assim, a substância, os factos, uma vez adquiridos em primeira instância, fixados estavam, pois não havia hipótese de o tribunal de recurso achar modo de  pôr em crise.
Mas o refinamento agravante do sistema ainda estaria para vir.
Em 1934, um Assento de 29 de Junho enunciaria uma jurisprudência que, de acordo com o sistema de então, valia como lei, e assim obrigatória, segundo a qual a alteração pelas Relações das decisões dos colectivos só poderiam ocorrer:

«[…] em face dos elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada em julgamento e que haja determinado as respostas aos quesitos».

Como explicaria o Conselheiro Maia Gonçalves, usando linguagem mais clara para traduzir esta formulação esfíngica, em nota ao artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929:

«[…] em face do Assento de 29 de Junho de 1934, a competência das Relações em matéria de facto, nos processos julgados pelo tribunal colectivo, é muito restrita, só lhes sendo lícito alterar as decisões da primeira instância quando do processo constem todos os elementos de prova que lhes serviram de base ou quando se trate de factos plenamente provados por meio de documentos autênticos. Qualquer elemento de prova produzido perante o colectivo impede que as Relações alterem as respostas aos quesitos».

Era, em suma, o que se popularizou como a «ditadura dos colectivos» em matéria de facto, sistema do qual decorria que o julgamento ante juiz singular era paradoxalmente mais garantístico em termos de recursos do que o ocorrido diante tribunal colectivo, por admitir aquele o seu reexame, com efectivos meios, em sede recurso quanto às questão de facto, a conhecer pelas Relações.
Como o resumiam Borges de Araújo e Gomes da Costa - compilando as lições proferidas pelo professor Manuel Cavaleiro de Ferreira de 1940:

«[…] as Relações só tomam conhecimento da matéria de direito, pelo menos nos processos de querela [a julgar pelo colectivo], pois quando o tribunal colectivo é chamado a julgar a prova não é escrita».

Eram tempos difíceis esses, os da intangibilidade do veredicto de facto nos casos penais graves, tempos de chumbo em que, já agora será interessante lembrar, vingava lei que permitia o entendimento segundo o qual:

«[…] em recurso penal, embora só interposto pelo réu, pode o tribunal agravar a pena» [Assento do STJ de 4 de Maio de 1950].

É que esquecem porventura os mais novos ou os menos estudiosos, a proibição da reformatio in peius - no que significa de impedimento de agravação da pena em caso de recurso interposto pelo arguido - só foi lei a partir de 1969 [com a alteração do artigo 667º do Código de Processo Penal de 1929 pela Lei nº 2139, de 14 de Março, sendo primeiro-ministro o professor Marcelo Caetano].
Os colectivos recebiam da lei o benefício da intangibilidade das suas decisões sobre os factos, tal como a mesma havia sido concedida na matéria ao julgamento pelo júri.
A inapelabilidade do julgamento da matéria de facto surgira em Portugal com a introdução do júri, figura que fomos importar ao modelo estrangeiro, sem tradições entre nós e que faleceria de morte natural pela década de quarenta do século vinte, para ser ressuscitado em 1975, tendo vindo a viver desde então, embora recomposto, hiatos de sobrevivência sem grande esperança de prestígio e sobretudo com duvidosos resultados em termos de acerto, expediente apenas quando a acusação pública não se quer comprometer com certos processos cuja responsabilidade é assim alijada nos jurados, pseudo-representantes do povo, afinal apenas cidadãos mobilizados por sorteio para intervirem no julgamento penal e sua sentença.
É com o júri que mingua a apelação penal. Mas - e cito de novo o professor Cavaleiro de Ferreira no seu texto pedagógico, agora de 1986:

«[…] posteriormente, e já neste século, com a criação dos tribunais colectivos que substituíram o júri, insinuou-se sub-repticiamente a ideia de que o tribunal colectivo devia herdar não só a competência em matéria de facto do júri, mas de igual modo a presunção de infalibilidade. Foi um erro que as circunstâncias em que se processaram as sucessivas reformas processuais tornaram possível».

Morta a apelação criminal, implantado o sistema do agravo penal, estava aberta a porta para a infabilidade dos tribunais colectivos em matéria de facto.
Havia, no entanto, urge reconhecer, uma lógica imanente ao sistema da inapelabilidade dos acórdão do tribunal colectivo e do tribunal de júri: a sua colegialidade e com ela a noção de que uma pluralidade de pessoas haviam, após atenta observação e por deliberação, convergido no elenco do provado e do não provado: ora, antecipando o que se dirá adiante, hoje esse privilégio de infalibilidade foi estendido aos tribunais singulares pois as restrições que existem ao conhecimento da matéria de facto estendem-se também a eles.
Foi neste ambiente que se chegou ao Código de Processo Penal de 1987 e com ele à ânsia de reforma, ingénuo, conclui-se hoje.
Dele decorreram várias ideias discursivamente novas e candidatas esperançadas a terem futuro. O problema foi a pragmática do sistema e a cultura que o caracterizava e se formara antecedentemente, as quais lhes neutralizaram, logo no ovo, a ambição de perdurabilidade.
Enunciemo-las para que o pessimismo realista, de que faço aliás cultura e mundivisão, o possam demonstrar.
Em primeiro lugar, verteu o legislador em lei a ideia liberal de que todas as espécies de recurso, mesmo os atinentes à temática meramente jurídica - e inclusivamente aqueles outros em que os poderes cognitivos do tribunal fossem, circunscritos à matéria de Direito - admitiam [artigo 410º, n.º 2 do CPP] a hipótese de serem conhecidas certas questões, afinal factuais - tarifadas em três casos paradigmáticos - (i) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (ii) contradição insanável na fundamentação (iii) erro notório na apreciação da prova, ou isto é, tudo matérias em que está em causa a factualidade adquirida na primeira instância.
Ou seja, expressamente pretendeu o legislador que se consagrasse um sistema pelo qual, mesmo ante tribunais que por lei limitam o seu conhecimento a temas de Direito, sempre a ponderação da factualidade tinha de ser relevada, em termos de se prosseguir Justiça, naqueles casos em que, ou o Direito não pudesse ser convocado por insuficiência dos factos provados, ou a explicitação dos achados de facto fosse entre si contraditória ou, enfim, se estivesse ante erro notório na apreciação da prova.
A consagração deste conceito não se alcançaria, porém, sem resistência, porquanto certa jurisprudência cedo se encarregou de determinar que tal possibilidade de alargamento dos poderes cognitivos - digamos, do Supremo Tribunal de Justiça - não poderia ser suscitada como tema de recurso, mas apenas ser operada oficiosamente pelo tribunal de recurso ao conhecer o tema jurídico em causa, o que transpunha para a discricionariedade do tribunal o que se previra ser um direito dos recorrentes.
Esta limitação - que a lei no seu enunciado expresso não previa - o da cognoscibilidade apenas ex officio, viria obviamente a reduzir o alcance daquilo que era o primitivo escopo do legislador.
Para além disso, a interpretação do conceito de «erro notório» na apreciação da prova foi de tal modo tornada exigente, que se tornou de quase impossível invocação, reduzido aos casos em que a ostensividade do erro fosse gritante, quase igual ao erro grosseiro, de insólita aparição em avaliações judiciais da prova, quase incompatível com a pessoa de um magistrado.
Para além disso, com o Código de Processo Penal de 1987, retornou para a lei processual penal a categoria conceptual da «apelação», quando a Lei da autorização legislativa da qual emergiu o novo Código consagrou [Lei nº 43/86, de 26 de Setembro, artigo 2º, n.º 2, ponto 72] que ocorreria no novo Código a:

«atribuição ao tribunal da relação de competência para conhecer, em apelação, dos recursos interpostos de decisões interlocutórias e finais do juiz singular e de decisões interlocutórias emitidas pelo tribunal colectiva, e para, em certos casos, renovar a prova, caso não reenvie o processo para o tribunal colectivo» [itálico meu].

Mas feito o balanço ao escopo e âmbito das audiências nos tribunais superiores e ao modo como funcionam, nomeadamente no que respeita a essa «máxima oralidade» e essa proclamada «apelação», conclui-se que tais novidades acabaram por entrar numa tal caducidade por não uso, que o legislador teve, misericordioso, de torná-las opcionais, donde  aparição raríssima para possível desaparecimento, também aqui pelo não uso.
Em terceiro lugar, como acabamos de ver, tentou-se, com este novo Código de Processo Penal, a consagração de um sistema de renovação da prova [artigo 430º, pelo qual a segunda instância, mais do que um tribunal de rescisão, funcionaria como um tribunal de segundo julgamento, até porque ocorreria também [ponto 71, do preceito citado], a:

«[…] consagração, para todas as espécies de recurso ordinário, interposto da decisão final, da garantia do contraditório […]».

Tratava-se de pôr em marcha uma ideia que o preâmbulo do Código, ingénuo porque confiante, assim exprimia:

«Com o mesmo propósito de emprestar ao recurso maior consistência, procura contrariar-se a tendência para fazer dele um labor meramente rotineiro executado sobre papéis, convertendo-o num conhecimento autêntico de problemas e conflitos reais, mediatizado pela intervenção real de pessoas. Por isso se submetem os recursos ao princípio geral - aliás jurídico-constitucionalmente imposto! - da estrutura acusatória, com a consequente exigência de uma audiência onde seja respeitada a máxima da oralidade».

Ora considerando o número de vezes em que ocorreu até hoje a renovação da prova - a meu conhecer nunca [durante a conferência tive conhecimento de dois casos] - viu-se em que medida tal novidade se tornou candidata à morte anunciada logo no acto de nascer.
A renovação da prova tornou-se, pois, previsão não praticada, porquanto impraticável.
Paulo Pinto de Albuquerque diz, aliás, com ironia, quea disposição que a prevê é «a menos compreendida em todo o Código», dado o «equívoco em que tem estado enredada».
O Supremo Tribunal de Justiça, num seu Acórdão de 21.01.04, havia delineado, aliás, já um critério que a tornaria excepcional:

«[…] a renovação da prova só será de decretar quando não seja possível aferir-se da sua correcção a partir da prova já produzida».

E a atentar na configuração do que a nível jurisprudencial se entende por renovação da prova, logo dali se conclui que nunca ela ocorrerá, pois é considerada como algo apenas circunscrito ao caso de ocorrência de algum dos vícios do artigo 410º, n.º 2 do Código de Processo Penal e relativo à mesma prova já produzida e não a uma outra prova que não aquela.
Acórdãos como um da Relação de Lisboa, esse então, proferido a 21.12.00, acharam modo de obviar à sua efectivação, aniquilando o valor semântico do conceito de renovação, este ao determinar:

«[…] quando a prova esteja documentada, a sua renovação não é admissível, sob qualquer fundamento».

Ora, como o recurso sobre a matéria de facto pressupõe a documentação da prova, o mesmo é dizer, ante tal entendimento, que nunca há lugar à renovação da prova, pois há sempre documentação que a tanto obsta.

Faltava decidir a opção de fundo entre os dois sistemas admissíveis de recurso: o recurso por substituição e o recurso por cassação: o Código de Processo Penal sonhou a praticabilidade do primeiro, mas acabou por ter de se render ao triunfo do segundo, o sonho legislativo fruto de princípios, a realidade produto da prática, o legislador a querer amarrar a perna à jurisprudência, esta a libertar-se do laço do legislador.
Através da lógica da substituição, o tribunal de recurso profere ele próprio a decisão que deveria ter sido a emitida pelo tribunal recorrido; pelo segundo, o da cassação, o tribunal de recurso limita-se a anular a decisão prolatada pelo tribunal do qual se recorre, reenviando o processo a este para que profira nova decisão ou efective, se for o caso, novo julgamento.
Ora na mecânica prática das coisas, o sistema revogatório é mais tentador, pois menos exigente de esforço e assim triunfaria.
Enfim, a lei de autorização legislativa dera indicação segura [n.º 72] de que o reenvio só ocorreria, nos recursos para a Relação, quando se não verificasse a renovação da prova; ora, uma vez que a renovação da prova passou a ser uma não existência, tudo se transformou, em matéria de recursos de mérito para a Relação, num sistema de anulação e reenvio.
Neste panorama de realismo desolador, bem tentou a reforma do Código de Processo Penal de 1998 [por alteração ao seu artigo 431º] uma viragem de rumo, com abertura controlada à modificabilidade pelo tribunal da Relação do veredicto de facto constante da decisão recorrida, isso a suceder em três casos.
Em primeiro lugar, e em aparente inovação, «se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base», fórmula aparentemente liberal, mas que redunda, afinal, numa revivescência do espírito do Assento de 1934, acima visto, que a jurisprudência redutoramente logo aplicou, considerando tratar-se de circunstância excepcional.
Em segundo lugar, reiterando-se que isso ocorre no caso de ter havido impugnação da prova, com o cumprimento, nas conclusões da motivação do recurso, de ónus de indicação não só dos pontos de facto tidos por incorrectamente julgados, menção a qual o facto probando que pretende fazer triunfar em substituição do provado ou não provado e bem como indicação do lugar onde a prova se encontra registada nos suportes magnéticos áudio em que esteja gravada a produzida oralmente.
O alcance desta inovação ficou, porém, à mercê da interpretação que acabou por se formar quanto às exigências da motivação de recurso e respectivas conclusões, o que se tornou uma floresta de incertezas e caminhos perigosos para os recorrentes, ao que já voltaremos.
Enfim, insistência na ilusão funesta, em terceiro lugar, «se tiver havido renovação da prova», invocação, afinal, ousemos dizê-lo de um nado morto.
Ora na verdade, por via destas delimitações, a questão do recurso da matéria de facto, a partir da reforma em 1998, passou a ser, no imediato, o triunfo não só da arte de escrita, em que se privilegiam formalidades narrativas sobre substâncias, em que a probabilidade de se acertar no modo de configurar o recurso e sobretudo as suas conclusões, raramente ocorre, com a consequente rejeição do mesmo.
Logo na origem tudo anunciava o que aí viria, um sistema com pouca sorte.
O legislador havia pensado um sistema pelo qual em primeira instância se faria recurso a meios de registo da prova que iam, ao limite aos videográficos, para que, numa expressão que se popularizou, o tribunal de recurso pudesse captar não só quanto fora dito mas igualmente o modo como fora dito e assim a imediação fosse viável ante a total oralidade, dois princípios reitores do sistema de justiça recursória: era a ilusão tecnológica de que a prova seria reponderada.
Breve tempo durou a fantasia em torno da novidade, pois jurisprudência logo surgiu a determinar que, gravando-se embora, todo o dito teria de ser transcrito, assim se pondo em causa, desde logo, a espontaneidade do discurso oral, reduzido em expressividade, face ao copiado para o registo escrito.
Foi depois o tema de saber a quem incumbiria o encargo da transcrição, se ao sempre anémico erário público para fins de Justiça ou se aos sujeitos privados, aquela primeiro alternativa tida por inviável por falta de verba para tanto, esta outra indesejada por suspeição de que tais sujeitos transcrevessem sem fidedignidade a prova que lhes interessava.
O tema acabou por implicar uma definição em sede de fixação de jurisprudência pelo Assento n.º 2/2003, de 16 de Janeiro, segundo o qual:

«Sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, em conformidade com o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, a transcrição ali referida incumbe ao tribunal.»

Só em 2007, com a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto se pôs termo a tal «ónus» do tribunal [como impropriamente lhe chamava alguma jurisprudência] e o tribunal passou a ficar adstrito apenas à entrega de cópia dos suportes das gravações áudio, sem que isso implicasse inconstitucionalidade material da norma respectiva [ nova redacção conferida ao n.º 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal], como foi decidido pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 473/2007.
Faltava o critério que se firmou na jurisprudência quanto à exasperação da exigência na formulação das conclusões que, devendo ser breves por imposição da lei, não poderiam conter tudo aquilo que a mesma lei exigia: não só os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados [o que já de per si pode ser longo] como as concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida [o que pode tornar muitíssimo mais longo] sobretudo quando, por imposição a mesma lei, estando a prova gravada [e em regra está] por referência ao consignado na acta com indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, o que tudo junto alonga ainda mais o que era suposto ser breve e pode ser [e tem sido] rejeitado se o não for.
Candidatos a estarem sempre mal redigidos, os recursos sobre a matéria de facto tornaram-se candidatos a serem rejeitados. Isto sem ponderar quanto se legislou depois em matéria de rejeição sumária, matando à nascença o que se entenderia não ter viabilidade de vida.
Tudo isto marca o destino que tem, no presente, o exame em recurso da matéria de facto: não é, afinal, um recurso do já julgado apenas do modo como foi julgado: da substância ao procedimento, da apelação ao gravo, afinal.
Citando este explícito Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Maio de 2007 [relator Simas Santos]:

«Como vem entendendo, sem discrepância, este Supremo Tribunal de Justiça, o recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados […].»

Claro que, visto sob este ângulo restritivo, não se trata, afinal, de uma verdadeira reapreciação da matéria de facto, mas apenas de uma análise da razoabilidade do modo como foi apreciada tal matéria, o que é totalmente distinto e está muito longe do que tem sido pensado desde 1987.
Tudo isto está viabilizado pelo Tribunal Constitucional, o qual entende que a garantia constitucional de reexame da matéria de facto não implica necessariamente um novo  julgamento da matéria de facto, podendo o tribunal de recurso limitar-se a verificar se existiu algum erro de julgamento.
 Aqui chegados, eis a recta final desta minha intervenção.
Assinalaram-me como tema o problema dos reflexos deste sistema no que se refere aos direitos de defesa, mas permitam-me que transmita uma sensação de incómodo em abordar esta perspectiva da questão.
Era outrora ponto de honra que um advogado assumisse, por natureza, o tema dos direitos fundamentais, nomeadamente os da defesa. Uma profunda mutação cultural intimida hoje quando se entra por esse ângulo, pois impera actualmente a diabolização do proclamado excesso de garantismo, que logo é invocado sempre contra quem pretenda fazer valer, em nome da presunção de inocência, o direito ao um processo justo através do esgotamento legítimo das vias de recurso, em nome da defesa.
Uma ostensiva  pressão psicológica é também hoje exercida através dos media sobre alguns dos que pretendem fazer apelo aos meios processuais ao seu dispor; assim se argua uma nulidade de um processo com anos de inquérito e eis em cima do autor de tal proeza a fama deprimente de visar, ele agora, o entorpecimento da justiça, o triunfo da criminalidade.
Vivemos hoje uma época em que, para além disso, a jurisdicionalização é tida como atentatória da eficácia, em que a celeridade processual e a estatística do número de decisões é critério universal da boa justiça.
Mais: vivemos um mundo em que uma defesa penal consequente, uma perícia que seja contraditória, enfim o direito aos recursos, são apodados privilégio de abastados, os que podem suportar os elevados custos de advogados, capazes de os conceber como demora pelo diferimento do trânsito e caminho até à prescrição.
Neste contexto, direi que do que se trata, pois, não é dos reflexos que o descrito sistema possa ter no domínio dos direitos de defesa, até porque a jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional já relativizou, e de modo expressivo, a garantia do direito ao recurso que a Constituição considera, no n.º 1 do seu artigo 32º, como ínsita ao direito de defesa.
O que está em causa é, outrossim, a questão da descoberta da verdade judiciária e sobre isto termino.
Numa lógica objectiva e sistémica, a impugnação é instrumento de segurança, apto a gerar uma confirmação do decidido e também garantia de independência para quem julga, pois, por um lado, sabe que julgará em penúltima decisão, por outro, porque não deve obediência hierárquica à jurisprudência firmada em tribunais superiores, antes respeito à doutrina que deles dimane e se possa aceitar.
Para além disso, o recurso é direito a um melhor exame do decidido, o qual é concedido, como garantia constitucional expressa, a quem é afectado pela decisão, isto por se supor que uma deliberação em ulterior instância por colégios de três juízes é mais apta a uma ponderação mais apropriada do que estiver em causa.
Ora um sistema legal que reduziu os colectivos de recurso de três juízes a dois, pois o presidente só intervém em caso de empate [artigo 419º, n.º 2 do Código de Processo Penal], é apto a reduzir a pluralidade que é suposta exigir-se para uma ponderação multifacetada dos temas.
Um sistema legal que já ofereceu de si a pior da sua imagem que é admitir que, inerte o presidente, o relator seja o dono da decisão [eis a expressão que correu] em termos de o segundo membro do colectivo poder assinar sem ter de ler mais do que o decidido, é a mais límpida evidência de que estamos reduzidos à mera singularização, o colectivo passado de três a dois e de dois a um.
Um sistema legal em que, podendo ter ocorrido erro na primeira instância, cerceia as vias de recurso a casos cada vez mais apertados de irrecorribilidade, abre a possibilidade da irremediabilidade desse erro.
Um sistema legal em que, inexistindo renovação da prova, sendo de conhecimento oficioso os vícios da decisão que estão previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, e o conhecimento das questões de prova exijam, sine qua non, o cumprimento exasperante de ónus de redacção das conclusões de recurso, é um modelo que definitivamente restringe o direito ao recurso a uma mera expectativa de se poder efectivamente recorrer.
Tudo isto some-se aos casos em que o recurso está vedado por imposição da lei: aqueles em que há uma pronúncia conforme à acusação do Ministério Público, o referente às indeferidas diligências de instrução, e tantos mais, em que a dosimetria da condenação não o permite quanto às penas parcelares.
Vedando-se o recurso, cerceando-o com dificuldades de formulário, privilegiando-se a revogação sobre a substituição, mais do que atentar-se contra a defesa, põe-se em causa a busca da verdade.
E se não vejamos quanto à verdade, na forma de uma pergunta: em quantos casos em que, tendo havido, por via da anulação, repetição do julgamento, não se obteve neste afinal uma outra versão dos factos, quando não mesmo uma outra história, diversa da que resultou do antecedente julgamento?
Do ponto de vista gnoseológico, o sistema de recursos deveria permitir, reexaminando o julgado, uma melhor, uma mais rigorosa e mais exacta reconstituição do real, como se numa epistemologia genética, o conhecer se alcançasse pela reiteração da observação.
Infelizmente não é este o balanço que se extrai.
No que se refere aos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça penso que esta expressão extraída de um Acórdão deste Tribunal proferida a 31 de Outubro do corrente [relator Nuno Gomes da Silva] traduz do que se trata:

«A ideia que atravessa o sistema na parte dos recursos é a de que o STJ é um tribunal de “fim de linha” – passe a expressão em benefício da clarificação da ideia – cuja competência no tocante aos recursos ordinários está reservada para situações sobre a apreciação do mérito, a justiça da condenação – e mesmo assim com constrições várias – ou em que o acto decisório ponha termo definitivo ao processo, que encerre a relação jurídica entre os sujeitos processuais, seja por razões de natureza adjectiva, seja por razões de natureza substantiva. Por isso se lhe atribui a função de tribunal de revista, como inequivocamente ressalta do art. 434º, do CPP.»

Assim sendo, e vista a limitação colocada ao juízo sobre o mérito nos recursos em ulterior instância, a juntar a esta configuração da competência do Supremo Tribunal de Justiça, não será de estranhar a pressão que existe sobre os recursos de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional.
Termino agora, enfim.
Fiz parte da Comissão de cujo labor saiu o Projecto que se transformou no Código de Processo Penal de 1987. O que vi pretender-se com esse Código ficou acima expresso. Aquilo em que tudo se tornou é de todos conhecido e aflora nesta minha intervenção.
Encontro-me, pois, com as palavras do presidente dessa Comissão, Jorge Figueiredo Dias quando, sob o título Por onde vai o processo penal português, afirmou ante o facto de a revisão constitucional ter aditado ao n.º 1 do artigo 32º da Lei Fundamenta, além das garantias de defesa, a expressão «incluindo o recurso»:

«Isto significa que o direito a um recurso é manifestação jurídico-constitucionalmente vinculante de um direito, liberdade e garantia de defesa. Ela não pode ser posta em causa em hipótese alguma, mesmo sob a alegação de que se verifica in concreto uma qualquer outra garantia de defesa sucedânea legalmente admissível. Sempre que, num concreto caso judicial de qualquer espécie, a lei denegue ao arguido condenado o direito a um recurso, a lei é materialmente inconstitucional e não pode como tal ser aplicada».

Ora esse vedar o direito a um recurso pode resultar de lei que o impeça; mas pode também decorrer de exigências de entendimento processual que o torne afinal inviável. Eis quanto procurei demonstrar.
Mas num sistema em que a prisão preventiva é amiúde, por antecipação, a prisão, a sujeição a processo, em miscigenação com a comunicação social, a condenação, em que afinal o mal do processo se substituiu, em retroacção, ao mal da pena, em que o processo em si passou a ser a realidade relevante no domínio jurlídico-criminal, espanta que, em matéria de recursos, a justiça cuide mais do procedimento que levou à decisão do que, afinal, do próprio decidido? Não, não espanta.

A partir daqui, estando em dúvida o bom Direito, talvez um preceito moral nos salve a má consciência: não julgues os outros como não gostarias que te julgassem a ti. Assim seja lei e jurisprudência, assim encontraremos mais justiça.

CEJ: e-book sobre processo penal


Pelo seu interesse, permitimo-nos chamar a atenção para este e-book, publicado pelo Centro de Estudos Judiciários e que se encontra assinalado no portal da Procuradoria-Geral da República. O texto integral pode ser lido aqui. Eis o resumo do índice:

1. Gestão processual de processos penais

Filipe Preces

António Gomes

Raul Cordeiro

2. Do prazo de 48h a que se alude no nº 1, do art.º 28.º, da CRP, e no art.º 141.º, do CPP, e dos limites que o MP deve observar quando ordena a detenção para interrogatório

Cruz Bucho

3. Juiz de instrução/juiz de garantias: dificuldades na identificação de um sujeito processual

Mouraz Lopes

4. Vícios das sentenças e vícios do julgamento

Francisco Mota Ribeiro


5. Dosimetria da pena: fundamentos, critérios e limites

Manuel José Carilho de Simas Santos

Pedro Freitas

Anexo

Estado da Doutrina das Consequências Jurídicas em Portugal (separata do livro “A Coerência na Aplicação das Penas”)*

Manuel José Carilho de Simas Santos

Pedro Freitas

* Para complementar o texto "Dosimetria da pena: fundamentos, critérios e limites", e com autorização dos seus autores, pela relevância do estudo e pela sua utilidade publica-se também o presente texto, inicialmente publicado em “O Estado da Doutrina das Consequências Jurídicas em Portugal”, em separata.

Assembleia da República: iniciativas


Baixou à 1ª CACDLG a primeira proposta de lei e deste a última actualização que aqui fiz a 26 de Novembro apenas mais um projecto de lei está registado com relevo para o tema deste blog, ainda que indirecto.

[126/XIV, L]: Nona alteração à Lei n.º 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade)

A proposta de lei é esta:

[1/XIV] Aprova o novo regime jurídico da constituição e do funcionamento dos fundos de pensões e das entidades gestoras de fundos de pensões, transpondo a Diretiva (UE) n.º 2016/2341


Concorrência: ECN+


Está em discussão pública até ao próximo dia 26 de Dezembro, a «proposta de anteprojeto de diploma de transposição da Diretiva 2019/1/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, que visa atribuir às autoridades da concorrência dos Estados-Membros competência para aplicarem a lei de forma mais eficaz e garantir o bom funcionamento do mercado interno (Diretiva ECN+)». O proposto significa alterar o  regime geral da concorrência, incluindo regras sobre transacção, regime de clemência e derrogação ao segredo profissional da advocacia, tudo no quadro do reforço dos poderes da AdC.


Citando do anúncio feito no portal da Autoridade da Concorrência [quanto à exposição de motivos, ver aqui, no que se refere à totalidade da documentação em discussão, ver aqui]; :

«A Diretiva 2019/1/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, que visa atribuir às autoridades da concorrência dos Estados-Membros competência para aplicarem a lei de forma mais eficaz e garantir o bom funcionamento do mercado interno (de ora em diante, “Diretiva”) foi publicada no dia 14 de janeiro de 2019, entrou em vigor no dia 4 de fevereiro de 2019 e deverá ser transposta até ao dia 4 de fevereiro de 2021.

A Autoridade da Concorrência (“AdC”) foi nomeada pelo Ministério da Economia como “serviço responsável” pela apresentação de uma proposta de transposição da Diretiva. A Diretiva é um instrumento legislativo de enorme relevância no âmbito do direito da concorrência. Da qualidade da transposição da Diretiva dependerá em grande medida o sucesso da prossecução dos seus principais objetivos: por um lado, garantir a aplicação efetiva da política de concorrência da União Europeia (“UE”) e, por outro lado, o bom funcionamento do mercado interno.

Com efeito, nas jurisdições onde a eficácia do direito da concorrência é inferior, por exemplo atentas as dificuldades registadas pelas autoridades de concorrência na recolha de meios de prova ou na aplicação célere de sanções dissuasoras, tende a criar-se uma perceção de impunidade que afeta particularmente os consumidores e empresas desses Estados-Membros. Estes ficam mais vulneráveis a práticas anticoncorrenciais e deixam de poder beneficiar das vantagens do processo competitivo em termos de preços, qualidade, escolha e inovação, já que as empresas perdem incentivos para aí concorrer pelo mérito. Acresce que novas empresas são desencorajadas de entrar nesses mercados. Portanto, esse cenário também desencoraja o investimento e o empreendedorismo.

A Diretiva visa assim permitir que as autoridades nacionais da concorrência dos Estados-Membros da UE apliquem de forma mais eficaz as regras de concorrência da UE, assegurando que dispõem das garantias de independência, dos meios e das competências de investigação e decisão necessárias, nomeadamente em matéria de aplicação de coimas.

A resposta ao desafio da transposição deverá ser construída sobre quatro pilares fundamentais:

i) Prossecução dos objetivos que presidiram à aprovação da Diretiva;

ii) Respeito pelos princípios da efetividade e da equivalência;

iii) Adaptação das normas da Diretiva às regras, princípios e cultura jurídica do ordenamento jurídico nacional;

iv) Diálogo com os stakeholders.

Em coerência com o que tem sido a sua postura, a AdC entendeu dever promover um processo de transposição aberto, transparente e participado. Assim, para além da constituição de um grupo de trabalho externo para acompanhamento dos trabalhos e da organização de um workshop consultivo sobre o tema, com a participação de representantes dos mais variados quadrantes da sociedade, a AdC decidiu lançar uma consulta pública sobre o anteprojeto de diploma de transposição da Diretiva.

A AdC está certa de que destas iniciativas e da presente consulta pública resultará uma proposta legislativa de maior qualidade e, a final, um diploma que contribua de forma efetiva para uma mais ampla e eficaz promoção e defesa da concorrência em Portugal.

Nestes termos, a AdC convida todos os interessados a, até ao dia 26 de dezembro de 2019, enviarem as suas observações sobre o anteprojeto de diploma de transposição da Diretiva ECN+ que, juntamente com a respetiva exposição de motivos, se encontra em anexo.

Para efeitos de eventual publicação das observações remetidas no presente âmbito, deverá ser indicado se existe alguma objeção a essa publicação.

As observações, indicando a referência “Consulta Pública sobre o anteprojeto de diploma de transposição da Diretiva ECN+”, devem ser enviadas por escrito para os seguintes contactos:

• Endereço postal: Av. de Berna, 19, 1050-037 Lisboa

• Endereço Eletrónico: consultapublica@concorrencia.pt»

Parlamento/1ª CACDLG: pareceres para 4 de Dezembro

Está em agenda, para a sessão do próximo dia 4 de Dezembro, na 1ª CACDLG da Assembleia da República,  a discussão e votação dos pareceres parlamentares relativos às seguintes iniciativas legislativas em matéria de advocacia, penhora de habitação própria, crimes violentos em ambiente escolar

-» Projeto de Lei n.º 88/XIV/1.ª (PS) - "Reforçando a proteção de advogados em matéria de parentalidade ou doença grave, alterando o Código do Processo Civil e o Código do Processo Penal"  [ver aqui]e do Projeto de Lei n.º 113/XIV/1.ª (PAN) - "Confere aos advogados a prerrogativa de suspensão de processos judiciais nos quais sejam mandatários ou defensores oficiosos em caso de doença grave ou exercício de direitos de parentalidade" [ver aqui]; Relatora: Deputada Mónica Quintela (PSD) 

-» Projeto de Lei n.º 6/XIV/1.ª (PCP) - "Altera o Código do Processo Civil estabelecendo um regime de impenhorabilidade da habitação própria e permanente e fixando restrições à penhora e à execução de hipoteca" [ver aqui]; Relatora: Deputada Emília Cerqueira (PSD) 

-» Projeto de Lei n.º 28/XIV/1.ª (CDS-PP) - "Agravamento da moldura penal para crimes, praticados com violência, nas escolas e suas imediações ou contra a comunidade escolar (50.ª alteração ao Código Penal)" [ver aqui] Relatora: Deputada Mónica Quintela (PSD) 

-» Projeto de Lei n.º 109/XIV/1.ª (BE) - "Regula as relações laborais na advocacia" [ver aqui] Relator: Deputado Francisco Oliveira (PS)

Maratona parlamentar

Com o Parlamento a estrear-se, estão agendadas para discussão e votação no plenário da Assembleia da República a realizar nos próximos dia 11 e 12 de Dezembro, para além de outras matérias, dezassete iniciativas legislativas em matéria de advocacia, nacionalidade, responsabilidades parentais e violência doméstica. A pergunta é legítima, ante esta maratona parlamentar: haverá tempo para discutir, com a profundidade que os temas exigem, tudo o que está previsto? Ou será tudo pela máxima generalidade a benefício de o essencial ser remetido para a 1ª Comissão?

Começando pelo dia 11, são estes os projectos de lei em matéria de advocacia:


Reforçando a proteção de advogados em matéria de parentalidade ou doença grave, alterando o Código do Processo Civil e o Código do Processo Penal


Regula as relações laborais na advocacia


Confere aos advogados a prerrogativa de suspensão de processos judiciais nos quais sejam mandatários ou defensores oficiosos em caso de doença grave ou exercício de direitos de parentalidade


Estão igualmente agendadas para esse dia as seguintes iniciativas legislativas quanto a nacionalidade:


Altera a Lei da Nacionalidade e o Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado (9.ª alteração à Lei n.º 37/81, de 3 de outubro e 34.ª alteração ao Decreto-Lei n.º 322-a/2001, de 14 de dezembro)


Alarga o acesso à naturalização às pessoas nascidas em território português após o dia 25 de Abril de 1974 e antes da entrada em vigor da Lei da Nacionalidade (procede à 9.ª alteração à Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro)


Alarga a aplicação do princípio do jus soli na Lei da Nacionalidade Portuguesa (Nona alteração à Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, que aprova a Lei da Nacionalidade)


Nona alteração à Lei n.º 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade)

No domínio das responsabilidades parentais são estas, para esse mesmo dia, os projectos em agenda:


Privilegia o modelo de residência alternada sempre que tal corresponda ao superior interesse da criança, excepcionando-se o decretamento deste regime aos casos de abuso infantil, negligência e violência doméstica.


Altera o Código Civil, estabelecendo o princípio da residência alternada do filho em caso de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento dos progenitores


76.ª alteração ao Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966, alterando o regime do exercício das responsabilidades parentais em caso de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento, de forma a clarificar que o tribunal pode determinar a residência alternada do filho com cada um dos progenitores sempre que tal corresponda ao superior interesse do menor


Sobre o estabelecimento da residência alternada dos menores, em caso de divórcio separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento


Altera o Código Civil, prevendo o regime de residência alternada da criança na regulação do exercício das responsabilidades parentais em caso de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento.

Já para o dia 12 no que se refere a violência doméstica são estes os textos em discussão:

Projeto de Lei n.º 1/XIV/1.ª (BE)

BE - Reconhece as crianças que testemunhem ou vivam em contexto de violência doméstica enquanto vítimas desse crime (6.ª alteração ao regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas e 47.ª alteração ao Código Penal)

Projeto de Lei n.º 2/XIV/1.ª (BE)

Torna obrigatória, nos casos de violência doméstica, a recolha de declarações para memória futura das vítimas (6.ª alteração ao regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e à assistência das suas vítimas)

Projeto de Lei n.º 92/XIV/1.ª (PAN)

Reconhecimento do estatuto de vítima às crianças que testemunhem ou vivam em contexto de violência doméstica

Projeto de Lei n.º 93/XIV/1.ª (PAN)

Torna obrigatória a tomada de declarações para memória futura a pedido da vítima ou do Ministério Público

Projeto de Lei n.º 123/XIV/1.ª (PEV)

Criação de subsídio para vítimas de violência que são obrigadas a abandonar o seu lar



Liberdade condicional: efeitos da revogação

Ainda não mencionado no portal do Supremo Tribunal de Justiça [conferir aqui] foi hoje publicado no Diário da República [n.º 230/2019, Série I de 2019-11-29]o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2019, proferido a 4 de Julho de 2019, em sede de fixação de jurisprudência, segundo o qual: «Havendo lugar à execução sucessiva de várias penas pelo mesmo condenado, caso seja revogada a liberdade condicional de uma pena com fundamento na prática de um crime pelo qual o arguido foi condenado em pena de prisão, o arguido terá de cumprir o remanescente dessa pena por inteiro por força do disposto no artigo 63.º, n.º 4, do CP, não podendo quanto a ela beneficiar de nova liberdade condicional.»

Que a doutrina firmada é controversa decorre da existência de múltiplos votos de vencido:

António Pires Henriques da Graça (Relator) - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - Mário Belo Morgado - Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira - Nuno de Melo Gomes da Silva - Francisco Manuel Caetano - Manuel Pereira Augusto de Matos - Vinício Augusto Pereira Ribeiro - Maria da Conceição Simão Gomes - Nuno António Gonçalves - Manuel Joaquim Braz (Vencido de acordo com a declaração de voto do Conselheiro Carlos Almeida) - Carlos Manuel Rodrigues de Almeida (Vencido, de acordo com a declaração de voto que junto) - José Luís Lopes da Mota (Vencido, conforme declaração junta) - Júlio Alberto Carneiro Pereira (Vencido pelas razões constantes da declaração de voto do Conselheiro Carlos Almeida) - António Manuel Clemente Lima (Vencido, pelas razões constantes da declaração de vencido do Senhor Conselheiro Carlos Almeida) - Maria Margarida Blasco Martins Augusto (Vencida, pelas razões constantes da declaração de vencido do Senhor Conselheiro Carlos Almeida) - José António Henriques dos Santos Cabral (Vencido, revendo posição anterior e de acordo com declaração junta) - António Joaquim Piçarra (Presidente).

Uma outra oportunidade permitirá comentário relativamente à matéria nele ponderada.