Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




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Testemunho


Este blog tem como princípio não tratar do que tenha a ver com a minha vida como advogado. Refiro-me aos processos em que tive intervenção.
O vídeo que aqui arquivo é testemunho sobre parte do que tem sido a minha vida como advogado e na Ordem dos Advogados: são recordações dispersas, momentos desgarrados, mas talvez a vida seja isso apenas. 
A noção de tudo sistematizar e tudo reduzir a um fio condutor estruturado, é ilusão puramente intelectual e felizmente há mais do que intelecto no que, ao fim de cinco anos desde que inicie o meu estágio, me foi dado sentir.
 

A abstenção


Durante anos têm-se propiciado debates públicos sobre temas jurídicos que se suscitaram a propósito de processos em que tinha participação profissional como advogado. 

Adoptei, desde há muito, como critério não intervir por duas razões: por poder considerar-se que aquilo que exprimisse em termos de ideias gerais no plano legal fossem, afinal, formas indirectas de estar a discutir o que em concreto estivesse a defender nesses processos e por admitir que, até por isso, não se tratasse de opinião credível, antes instrumental de um interesse.

Durante anos têm-se propiciado debates públicos sobre temas jurídicos que se suscitaram a propósito de processos em que não tive intervenção profissional como advogado. Aí, a recusa assentou na noção de que não conhecendo os processos, não me caberia, por respeito a mim, falar sobre o que ignoro, por respeito aos colegas não iria opinar sobre os processos em que tinham eles intervenção.

Em ambos os casos, não esteve ausente das minhas razões um preceito legal que é expresso no Estatuto da Ordem dos Advogados segundo o qual, enquanto advogados, estamos adstritos ao dever de reserva.

Quando desempenhei funções na Ordem dos Advogados questionei-me sobre se uma tal norma legal não se tinha tornado obsoleta, ante o que é torrencialmente vertido no espaço mediático, mesmo em detrimento do segredo de justiça, em detrimento das pessoas envolvidas nesses processos, gerando suspeita condenatória a que os advogados, pela passividade a que estavam adstritos ante aquela norma, não podem obstar sem entrar em contravenção com o que nele se diz. Até hoje não se pensou em alterá-lo.

Em nome de tudo isto foi-se apagando conscientemente a minha intervenção pública. Mesmo no espaço virtual que é o meu blog jurídico, o "Patologia Social", segui o mesmo critério e fi-lo constar do pórtico do mesmo. 

Hoje, penso, está assente a ideia de que opinar sobre processos, ademais pendentes e ainda que de forma ínvia, é algo para o que não contribuo. Razão idêntica fez com que jamais tenha divulgado sucessos que tenho tido na profissão.

Digo isto, não como censura aos demais que surgem a fazer o que não faço, mas como declaração de princípio para justificar uma ausência. Sei que tudo isto é parte de um mundo que se tornou antiquado, mas prefiro assim. Sei que, num mundo de presenças, os ausentes parecem ter deixado de existir mas felizmente ainda há quem note a diferença.

Em tempos escrevi livros e artigos em que tentei exprimir, com distância, o que pensava sobre os temas jurídicos que nos mesmo se suscitavam.

Suponho que ainda possa voltar a escrevê-los, vencido o excesso de trabalho e o cansaço consequente que é hoje o meu mundo: o que me foi dado viver legitima-me a ter uma opinião, discutível seja, e a exprimi-la por essa forma, vencendo na minha consciência o equilíbrio entre o possível rigor e a necessária objectividade. Até lá, abstenho-me.

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A imagem é um quadro do pintor norte-americano Ben Will


A Assassina da Roda


«Sob o título "A Desordenada Paixão de Apetecer", escrevi este texto para a folha de sala da peça de teatro "A Assassina da Roda", baseada num romance escrito por Rute de Carvalho Serra, com encenação e interpretação de Maria Henrique. O contexto da narrativa, a condenação pela Casa da Suplicação, em 1772, de Luiza de Jesus, acusada de ter morto 33 crianças retirada da Roda dos Enjeitados de Coimbra. Assisti a noite passada ao espectáculo no Teatro da Trindade. Interpretação magistral. 

«Tudo se move num mundo de horror, o mundo dos expostos e dos enjeitados.
Horror, o dos enjeitados, «filhos da desgraça», frutos indesejados, tropeços à conveniência, sobrepesos à miséria de quem os deu à luz.
Horror, o do seu abandono, condenados à sorte logo no acto de terem nascido, a somarem aos que nem chegaram a ter vida própria.
Horror o que mostram os números sobre as taxas de mortalidade destes desgraçados, tomando como exemplo a cidade de Lisboa e, nesta, o Hospital Real de Todos os Santos, que D. João II mandara erigir em 1492, depois de autorização do Papa Sisto IV, e do qual fazia parte um “criandário” destinado precisamente a receber os enjeitados, incorporando o Hospital do Colégio dos Meninos Órfãos, criado pela mulher de D. Afonso III, e cuja gestão estava confiada, desde 1530, por édito de D. João III, à Congregação dos Cónegos Seculares dos Lóios:
«No ano de 1743 entraram no Hospital Real de todos os Santos desta cidade, pela roda e pelo portal da casa dela, 1.038 crianças expostas, a saber 545 meninos e 493 meninas; com 1.717 que no princípio se estavam criando, faz o número de 2.755. Faleceram das mesmas crianças, na casa da roda, e das que se tinham dado a criar, 778.»
Para tudo isto confluíam vários factores, desde logo a noção de legitimidade da filiação, apenas reconhecida quanto àqueles que fossem fruto de matrimónio legalmente reconhecido, o que logo escorraçava para fora da lei quem não tivesse essa origem tida por legítima.
Nasce aí o conceito de enjeitados, de que é espelho a lei máxima da época, concretamente as Ordenações Filipinas (Título 88, § 11), as quais, codificando a legislação antecedente, estavam em vigor desde 1603, sobrevivendo mesmo à Revolução de 1640. E que, nesta parte, reproduziam quanto constava já das Ordenações Manuelinas, suas antecedentes (Título 67, § 11), publicadas entre 1512 e 1514 e que em 1521 substituiriam aquelas.
Em tal corpo normativo provia-se sobre os enjeitados, sintomaticamente na parte em que tratava dos órfãos, como se de uma mesma categoria se tratasse, e de facto, pela antiga legislação, os expostos eram considerados órfãos e, terminada a sua criação nas Casas de Caridade, eram entregues aos Juízes do Órfãos para lhes dar tutor, o qual devia mandar-lhes ensinar qualquer ofício.
E assim rezava a lei sobre «as crianças, que não forem de legítimo matrimónio, forem filhos de alguns homens casados, ou de solteiros» provendo que: «[…] primeiro serão constrangidos seus pais que os criem, e não tendo eles por onde os criar, se criarão à custa das mães. E não tendo eles, nem elas, por onde os criar, sejam requeridos seus parentes, que os mandem criar. E não o querendo fazer, ou sendo filhos de religiosos, ou de mulheres casadas, os mandarão criar à custa dos hospitais, ou albergarias, que houver na cidade, vila, ou lugar, se tiver bens ordenados para a criação dos enjeitados; de modo que as crianças não morram por falta de criação. E não havendo aí tais hospitais e albergarias se criarão à custa das rendas do concelho. E não tendo o concelho rendas por que se possam criar, os Oficiais da Câmara lançarão finta pelas pessoas, que nas fintas e encarregos do concelho hão-de pagar».
É, pois, a norma legal o ponto interessante de observação relativamente a muitos dos conceitos da época.
Primeiro, o conceito de enjeitado, amálgama que abrangia, desde logo, a filiação fora de matrimónio, pelo que o enjeitamento era, antes de ser acto individual de repúdio, acto legal de exclusão.
Depois, a ideia de que homem casado poderia ser obrigado a sustentar seu filho ilegítimo, mas sendo filho de mulher casada já a lei não criava sobre elas tal dever, empurrando desde logo a obrigação de sustento e “criação” para as instituições públicas, tal como no caso de filhos de religiosos.
Mas não se ficava por aqui o preceituado legal, pois havia que levar em conta o estatuído nas leis que completavam as Ordenações Filipinas e muitas delas posteriores até à Revolução de 1820.
De acordo com as normas jurídicas de então, a criação dos expostos era entregue, como vimos, a Casas de Caridade, à custa do erário público, mas chegados aos sete anos eram entregues aos Juízos dos Órfãos que os encaminhavam ou para famílias de acolhimento ou para o mercado de trabalho, conforme o lanço que os abrangesse.
A prevalência do encaminhamento para o mercado de trabalho tornou-se clara, e de tal modo que determinação legal, promulgada pouco antes da data dos actos de Luiza de Jesus, determinaria que em relação a estas crianças, sendo difícil arranjar-lhes emprego, poderiam ser repartidas por entre os lavradores, que até aos 12 anos não lhe pagavam soldada, tendo assim o benefício desta mão de obra infantil gratuita, dando-lhes educação, sustento e vestido (Alvará de 10 de Maio de 1783 e posterior Decreto de 6 de Dezembro de 1802).
Relegados todos eles a serem criaturas de segunda, sujeitos à triste sina, «os de cor preta ou parda» eram, porém, declarados “ingénuos”, querendo isso dizer, considerados originariamente livres e não meramente “libertos” (Alvará citado § 7, o qual seria revisto mais tarde por provisões de 26 de Junho de 1815 e de 22 de Fevereiro de 1823), sendo que só em 1846 se definiu que os expostos filhos de africanos livres não seriam escravizados (Alvará de 11 de Fevereiro de 1846).
Institucionalizados, os enjeitados estavam à mercê de abusos e do aproveitamento das suas pessoas e de tal modo para fins tidos por «imorais» que um Alvará da Rainha D. Maria I, de 12 de Fevereiro de 1783, «dado em Salvaterra de Magos», determinou que os mordomos da Casa dos Expostos da cidade de Lisboa promovessem, admoestando ou mandando prender, pelo máximo de um mês, aqueles que procurando os internados «para o honesto trabalho e serviço», no entanto, «se apartam da honestidade e modéstia com que devem sempre proceder, sendo aliciadas por pessoas que as pervertam ou procuram perverter».
Subentende-se na contida linguagem legislativa do que se tratava, afinal.
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É neste universo de sordidez pavorosa que a “Roda” surge como caridade entendida à maneira da época: caridade, porque tentativa de combater o infanticídio e o aborto, abrindo porta a que fossem recebidos, de modo anónimo, em instituição que era suposta assumir o encargo de cuidar da sua sobrevivência.
Só que, na prática, efeitos perversos surgiam a tornar abjecção o que teria na origem outra intenção, sendo lancinante a situação que se vivia em meados do século dezoito.
Logo o comércio das amas, fornecedoras de «leite mercenário», como numa expressão dorida lhe chamou Júlio Dantas, neste seu trecho que é o retrato tremendo do que era a repelência feita sistema:
«A Mesa dos Inocentes era o último recurso para o leite mercenário das amas. Algumas delas, para dobrarem a pataca de prata da criação de cada ano, saíam do Hospital Real com duas crianças penduradas dos peitos, levando, para o canto hediondo da sua alfurja de miséria a flor das suas vidas. Se alguma das crianças morria, a Casa da Roda lá estava, chilreando; trilando como um grande ninho; iam buscar outra. Se tinha a desgraça de resistir e de viver a criação estava paga até aos 7 anos.»
Mas não se quedava por aqui a triste sina destes deserdados, pasto de comércio e de exploração mercantil, porque confiados a este amparo de aleitação, ficavam, quantas vezes, à mercê do infortúnio, em perigo da própria sobrevivência.
Retomando a dura denúncia de Júlio Dantas:
«Depois, deixada as mantilhas e o leite das amas, o Calvário dos expostos começava. Se elas os queriam ainda, podiam tê-los em casa mais cinco anos, sem receber criação e sem pagar soldada. Mas aos doze, o juiz dos órfãos arrematava-os a quem desse mais por eles; e se havia algum enjeitado enfermiço ou débil que não tivesse lanço, animal de trabalho que ninguém quisesse, boca inútil que ficasse pesando no Cofre do Povo, a Roda enjeitava-o pela segunda vez, e lá ia, pobre Lázaro infantil, comer à Cadeia do Tronco na gamela dos presos, ou lamber com os cães na portaria de S. Bento da Saúde, o resto da sopa dos mendigos».
Enfim, visando pôr termo ao criminoso abandono de recém-nascidos, a Roda veio, afinal, permiti-lo a coberto do anonimato, porque nenhum esforço era feito para localizar os progenitores, alguns, aliás, eclesiásticos, outros de linhagem, cuja devoção e fama pública eram assim defendidas pelo manto da hipocrisia.
E até as próprias mães naturais os levavam para os recuperarem aos sete anos. Nasce aí a prática dos “sinais”, menções escritas ou físicas, apostas por vezes na própria roupa amortalhada que permitiria identificar aquela criança que ali fora deixada.
Era, enfim, o tentar evitar a morte certa através da escassa probabilidade de sobrevivência, a Roda tida, numa equação cruel, como o mal menor.
Local de acolhimento para as crias que a miséria não conseguia sustentar, era também lugar de albergue esconso para os filhos indesejados, frutos de amores clandestinos ou de abusos que assim se poderiam ocultar.
Para além disso, para os poderes públicos, era uma grosseira tentativa de inverter o decréscimo de população.
E, enfim, o encargo orçamental. Por Alvará de D. José de 11 de Fevereiro de 1775, manda-se cortar o tempo de permanência no Hospital dos Expostos que até aí era de nove anos e que somavam mais de novecentos por ano a somar aos «mais de quatro mil com trato sucessivo».
Legislação cruel determinava, entre outras cláusulas de exclusão, que «nenhum exposto, que exceder a idade de sete anos, possa entrar no Hospital por este título nem nele possa ser admitido como hóspede ou outro título que não seja o de artífice ou servente.»
Foi neste contexto que, a 10 de Maio de 1783 o Intendente Geral da Polícia Diogo Inácio de Pina Manique, fundador da Casa Pia, deu à Roda foros de coisa oficial, através de circular, ordenando a
sua abertura em todas as «cabeças de comarca» de Portugal.
A Intendência Geral da Polícia fora criada pelo Alvará com força de lei de 25 de Junho de 1760, para coordenar as atribuições de polícia exercidas pelos magistrados judiciais. Dela dependia a Real Casa Pia, criada por Decreto de 3 de Junho de 1780 e responsável pela integração social e profissional de jovens com actividades irregulares ou marginais.
Foi seu primeiro Intendente o desembargador Inácio Ferreira Souto, que desempenhou um papel fundamental na perseguição à família dos Távoras. Diogo Inácio de Pina Manique seria nomeado em 1780, pela Rainha D. Maria I, e manter-se-ia em funções até 1805. A instituição seria extinta a 8 de Novembro de 1833.
Por todo o país se disseminam, em alguns locais com notável atraso, e sucessiva legislação tentou dar ordem à instituição.
À Circular de 10 de Maio de 1783 sucederam outras, bem como alvarás régios, como, por exemplo, a 31 de Março de 1787, a 5 de Junho de 1800 e 9 de Novembro de 1808, tudo se prolongando até quase ao início do século vinte.
Ao chegar a Revolução de 1820, com ela uma mescla de liberalismo e das ideias que na França após 1789 haviam levado ao Terror pela guilhotina, tida esta por forma “humanitária” de pena de morte, a situação destas crianças era lancinante.
No seu acolhimento cumpria-se o ritual: recebidas pela “ama rodeira”, eram limpas e registadas com detalhe e baptizadas, se não houvesse sinal de o terem sido, e enfim confiadas a amas externas para que delas cuidassem.
Amas mal pagas, com remunerações amiúde em atraso, fazendo daquela criação modo de vida, eram mãos que valiam o que valesse a moral e o espírito de compaixão de cada uma.
Em 1823, números relativos aos expostos da cidade do Porto mostravam que dos 31.257 enjeitados que haviam entrado na instituição entre 1803 e 1822 haviam morrido 20.975; em Lisboa os valores não eram muito diferentes. Facto é que foi este século um dos períodos mais negros no que respeita ao abandono infantil e em que as taxas de mortalidade atingiam valores que chegaram a mais de 90%.
A Roda seria formalmente extinta apenas a 21 de Novembro de 1867, entrando esta determinação em vigor no ano seguinte, mas a sua implementação materializada por fases, tanto que em 1888 ainda se tentava dar execução a uma alternativa a este modelo em prol de uma nova ideia assistencial, através dos hospícios, agora custeada pelas recém-criadas Juntas Gerais de Distrito.
A lógica subjacente alterou-se, pelo menos, em uma parte: terminou o anonimato do abandono, obrigando-se à identificação da progenitura.
Como contraponto a este sistema, surgiu outro que o penalizava: é que a recepção das crianças que fossem levadas por mão identificada, ficava dependente de aceitação, o que excluía do acolhimento uma parte não despicienda do total das que ali eram presentadas.
Mas regressemos ao tempo e ao local dos crimes de Luiza de Jesus.
Neste covil de infâmias, eis-nos em Coimbra, lugar de tal horror onde em 1785 seria construído o Cemitério da Roda quando o sepultamento dos enjeitados atingia foros de escândalo, com os bebés a serem diariamente enterrados junto à igreja de S. Tiago, na zona da praça do mercado de legumes, carnes e peixes, «aonde por mal sepultado, em termos que por muitas vezes têm sido descobertos por vários animais».
É por aqui que o crime individual se soma ao crime da sociedade: aquele, repugnante pela violência do infanticídio, este, nojento pelo comércio da vida, pela morte lenta a que condenava esta legião de crianças.
A história de Luiza de Jesus é parte de tudo isto.
Confessando, sob tormentos, o infanticídio de 28 crianças, teriam sido encontrados 33 corpos que foram levados à formação da sua culpa.
Do seu caso cura o livro A Assassina da Roda, de Rute de Carvalho Serra, jurista, especializada em criminologia.
Trouxe-nos a narrativa como romance histórico, contando a história no contexto de outras histórias de personagens da época, que vão desfilando como seu cenário contextual. E eis o que chega agora aos palcos, adaptação da própria autora e interpretação de Maria Henrique.
Visto do ângulo ficcional, lido nos documentos da época, sentido agora pelo teatro, o episódio traz à tona aquela mescla de ideias e sentimentos que determinam a verdadeira e legítima compreensão histórica.
Com isto termino esta breve nota de apresentação.
No imediato, o horror dos factos, a morte de inocentes, alguns desossados, misto de «ambição e fereza» como lhe chamou a sentença que a condenou, ao «monstro de coração tão perverso, e corrompido, de que não haverá facilmente exemplo no presente século».
Ao contraponto dessas mortes infames, a pena de talião da morte da infanticida no patíbulo, sujeita à pena capital, esta cometida com atrocidade.
A 1 de Julho de 1772, após três meses de detenção, os juízes da Casa da Suplicação em Lisboa sentenciaram, em recurso, a infanticida a desfilar com baraço e pregão pelas ruas da cidade, ou seja, levando ao pescoço a corda em que seria enforcada e com um oficial de justiça a proclamar os crimes e as penas, para que disso ficasse clamor público.
A condenação era a de que morresse, mas não sem que antes lhe decepassem as mãos e «atenazada» fosse, o que vale dizer queimada com um ferro em brasa; morte sim, enfim, não pela sufocação de uma corda que a asfixiasse, mas pelo garrote que a isso juntava a lenta perfuração do pescoço.
E, enfim, «para que nunca mais houvesse memória de semelhante monstro» seria queimada e as cinzas dispersas, para que não pudessem ser recolhidas.
Condenação no plano civil, era também sentenciada no plano religioso, porquanto, incinerada e dispersas as cinzas, ficaria privada de enterro religioso.
Juntando à infâmia da pena, somava-se a sua condenação nas despesas do processo, calculadas em cinquenta mil réis.
Choca à nossa sensibilidade esta crueldade da Justiça.
E, no entanto, se pode ser considerada pena mais severa aplicada a uma mulher de que há memória em Portugal, não foi caso único.
O registo da pena capital impressiona até pelo que abrangia e pelo modo como se materializava.
Dois anos antes, tinham sido enforcados o Juiz dos Órfãos de São Sebastião da Pedreira e o seu escrivão, em 1769 outro juiz e seu escrivão por furto do «cofre das décimas». No ano de 1773 um
armador da Patriarcal de Lisboa, sentenciado por lançar várias vezes fogo à Igreja, foi queimado vivo. Acusado de ter atentado contra vida do Marquês de Pombal, um cidadão foi atado a quatro cavalos, arrastado, despedaçado, cortadas as mãos e, enfim, queimado. Em 1781 dois espanhóis são enforcados e esquartejados, por mortes e roubos.
Também mulheres não foram poupadas à morte com suplício antes da execução. Assim, em 1725 uma escrava acusada de matar o seu senhor com veneno; e no próprio ano de 1772, outra escrava que ajudara a matar o seu amo foi atenazada, cortadas as mãos e depois de morta, a cabeça decepada antes de ser enforcada.
A exposição da cabeça cortada fazia parte do ritual macabro visando dissuadir e prevenir pelo pavor.
Justiça de classe, a este cortejo de sofrimento escapavam, salvo excepções, de que os Távoras foram cruel demonstração, os de condição nobre: a decapitação a que eram sujeitos era tida por forma de compaixão, porque instantânea a dor.
Visto hoje, perguntamo-nos se tudo isto não poderia ter sido tratado como caso de loucura e, por isso, com a terapia psiquiátrica. Nada disso existia então. Vigiar e punir eram então e foram-no durante décadas, realidades indissociáveis, os possuídos de patologias da mente confundidos até com os que, em pecado, pela feitiçaria e bruxaria atentavam contra a religião. E essa a pista, qual ritual satânico de magia negra, que o livro de Rute Serra nos deixa.
História de malvadez, de malignidade, de cadeias de união no sofrimento, paixão tumultuosa, «essa desordenada paixão de apetecer», enfim, é toda uma sociedade que é assim desventrada.
Ao chegar ao fim, exaustos, os sentidos, leitores e espectadores anseiam por um momento que lhes restitua na vida a bondade, à alma, a doçura da paz. Breve intervalo seja.»

Encontrando a frase e o caminho

Escrevo com a convicção de que leitores amáveis pensarão que não é verdade, antes vaidade. Mas decidi-me a estudar Direito. Aos setenta anos, sim. Depois de ter saído da Faculdade em 1971, é verdade. Depois de ter tentado ensinar Direito durante dezassete anos e porque não. 
A verdade é que há momentos na vida em que importa dar tudo como írrito e nulo e começar de novo. Li a frase, fantasiei que saiu da mente genial de Leonardo Coimbra, nas não a encontro. 
Dir-se-à que é uma neurose esta, a da ilusão de se voltar a ter vinte anos. Seja, mas se nem tudo quanto é saudável é necessariamente bom, a inversa pode ter o seu espaço de oportunidade.
Dei conta de um mundo carregado de leis, as nossas, as europeias, as outras internacionais. Muitas dessas leis são apenas regulamentos, porque ainda há diferença.
Percebi que muito do pensamento jurídico está carregado de pompa erudita, tornando-se de tal modo ilegível que a meio o leitor desiste e fica a amarga sensação de cansaço inútil. Sobretudo quando ao ler se tem um fim em vista.
Tanta escrita jurídica, arrastando em pé de página o aluvião de todos os outros, lembra a música wagneriana, torrencial, em fluxos helicoidais, expectante de um termo mas, afinal um sem-fim de tirar o fôlego.
Por tudo isso, regressando ao princípio, aqui estou. Saturado de encargos da profissão, menos resistente ao cansaço, a não querer esgotar-me no Direito, recomeço neste. Por onde não sei. A cada um encontrar o seu caminho. 
Um dia li um pequeno texto de João Baptista Machado sobre antropologia, existencialismo e Direito. Foi uma revelação. Imagine-se como uma obra que ficou lateral, pode tornar-nos outros. 
A vida, entretanto, com o castigo das suas obrigações, a prática como o saber o mínimo só para o caso, que outros há na linha de montagem em que a profissão se tornou, tal como a fábrica do Senhor Henry Ford, acabou por tudo soterrar. 
Urge, pois, cavar. Não como o conto do extraordinário José de Almeida Negreiros, O Cágado, que o cavador procurou, desesperado, inutilmente. Sim, jogando fora quanto inumou a mente e encontrando, não a frase, mas o sentido da frase, seja ela ou ou não do autor de A Alegria, a Dor e a Graça.

Ler e tentar escrever


Dei com esta frase que tinha escrito na página do FB que dedico à minha profissão, a ilustrar uma fotografia da sala onde trabalho:

«Livros. Advogar e ler. Ler e tentar escrever. A profissão hoje devora a capacidade de se parar e reflectir. Em cada dia surge o anseio e a tentativa de o resolver. Quem vive intensamente a prática tem de ter uma reflexão que a resolva, de outro modo convive com o absurdo. E com isso sofre.»

Um novo formato


De há muito adiada a iniciativa, o blog sofreu hoje alteração de formato. O propósito é torná-lo mais acessível a quem tenha a gentileza de ser seu leitor.
Do ponto de vista do conteúdo, focará os temas do Direito Criminal e de ordenação social, bem como as normas de regulação dos mercados, com ênfase para as de compliance e cujo propósito seja o combate à criminalidade de cunho patrimonial.
A tendência de o restringir ao Direito Português ficará definitivamente afastada. A globalização das relações económicas e financeiras impedem que possamos confinar-nos ao que se passa no nosso espaço nacional.
Tentando manter-se actualizado, manterá o tom crítico quando tal se suscitar.
No cabeçalho encontram de modo mais explícito e directo ligações para as contas Linkedin e Twitter para onde reencaminho o que é objecto das minhas leituras.
Oxalá tenha sido a decisão correcta e executada de modo útil. É esse o objectivo.

Colóquio sobre contra-ordenações: Porto, dia 18 de Setembro

Tem lugar no próximo dia 18, no Porto, um Colóquio, organizado pelo Forum Penal, sobre contra-ordenações para o qual tiveram a gentileza de me convidar. 
Escolhi como tema uma das facetas esdrúxula do regime do processo contraordenacional que se me afigura grave: a aplicabilidade, "consoante", do regime subsidiário processual penal. É a jurisprudência das conveniências na sua mais insegura expressão.


Branqueamento de capitais: esta quarta-feira

Agradecido à Delegação da Ordem dos Advogados de Setúbal que me confiou a responsabilidade. O tema tornou-se complexo e mais ainda com a pendência no Parlamento de uma iniciativa legislativa que estabelece medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, transpondo a Diretiva (UE) n.º 2015/849 e executando o Regulamento (UE) n.º 2015/847. Ver aqui o texto respectivo e o estado dos trabalhos parlamentares.

Hoje, dia do Advogado


«Quando comecei a minha vida como Advogado nunca me esqueci que era "o filho do solicitador". E que, na visão que na infância formara do que é ser-se Advogado, via a advocacia como algo muito acima daquilo que era o que se vivia na minha família, a elevar a um patamar de respeitosa consideração a pessoa do Dr. Terêncio Africano Lopes da Silva, meu padrinho de Baptismo, que cumulava uma temida porque assertiva vida de causídico, com a direcção e propriedade do Colégio de Veríssimo Sarmento, em Malanje, onde iniciei os meus estudos primários.
Esta noção, a do ser-se o filho do solicitador, nunca tendo sido um complexo de inferioridade, tornou-se numa exigência contida de vida, acompanhou-me como uma segunda natureza, tal como os livros jurídicos de meu pai, que sobreviveram ao desastre de vida que nos atingiu em 1966 e nos fez passar pela amargura da penúria financeira, escondida por pudor, já eu na Faculdade, a inventar o que não tinha pela ficção do ter. 
Talvez tenha nascido aí esse ficcional outro eu que me arroja hoje pela veredas cortantes da escrita íntima, agora tão inerte em benefício para já da edição da escrita alheia, mas que voltará, estou certo, como um jorro de sangue a pulsar.
Encontrei-a hoje, esta velha fotografia, reunindo o pessoal ligado à aplicação da Justiça na comarca de Malanje. 
O quarto a contar da esquerda é meu pai, "solicitador encartado". Chama-se José Barreiros Pina do Amaral. A Caixa Postal era a 131, o telefone o n.º 78. "Procurador Judicial", timbrava-se nos envelopes em papel de seda com que nos escrevia cartas em "correio aéreo", a prometer que se juntaria nós, durante cinco anos que por lá ficou, desde que, em 1961, a guerra começara. Quando regressou era uma sombra do que tinha sido. Três anos depois a vida esgotou-se-lhe. Foi num Verão, fazia eu exames orais na Faculdade de Direito, em Lisboa. Explicando ao professor que meu Pai falecera, adiou-me a prova por três dias.»

[texto publicado em 2014 no meu blog homónimo]

O hábito e regularidade

Mudei de vida? Não mudei. Alterei a minha profissão? Não alterei. Transformei-me noutro? Isso não sucedeu. Tenho outras áreas de interesse? Também não. 
Tenho aparecido menos, isso sim, no espaço noticioso por causa da minha profissão, o que só pode ser bom. 
Há algum tempo, é verdade, que não retomo a escrita jurídica, dando continuidade à colecção que iniciei com as monografias dedicadas aos crimes de peculato e de participação económica em negócio e que se deveria ter projectado com o estudo já adiantado sobre o crime de burla. E deixei a meio a investigação para a biografia de José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães. E continuo a arrastar, desde há muitos anos, mil e quinhentas páginas do que poderia ser um livro de texto de processo penal, dando lógica e unidade ao que publiquei, primeiro em 1981 e depois, já com o novo Código, tantas vezes modificado, em 1997.
Significa isto que, continuando a frequentar o Direito, tenho pensado pouco sobre ele. Hoje, ao voltar aqui, compreendi que tenho de ganhar hábitos para além da dispersão. 
Também é verdade que não sou funcionário da minha escrita nem burocrata daquilo que penso. Mas há regras a cumprir, uma delas a da frequência. Vou esforçar-me, acreditem.
O tempo nem sempre é maior do que o cansaço, porque as responsabilidades pesam, incluindo as dos deveres e as das devoções. E eu no que faço não sou outro face ao que sou. É essa a questão, ser tudo isto fruto de um ser humano, incompleto e limitado, irregular e hesitante. Tentarei melhorar. 
A vida renova-nos, sobretudo quando acreditamos na vida e a ela nos entregamos, de coração aberto.

Ainda a presença do arguido no processo penal



Tentando retornar à escrita jurídica, que tão intermitente tem estado, escrevi um destes dias uma crónica - pois não poderia honestamente chamar-lhe estudo - referida aqui, sobre a presença do arguido em processo penal, confrontado que tenho estado com a prática que começa a disseminar-se no sentido de a dispensar, a ponto de quase se tornar uma formalidade dispensável. Lembrei isso a propósito do Acórdão da Relação de Guimarães de 10.07.2014 [proferido no processo n.º 424/10.5GAPTL.G1, texto na íntegra aqui], cujo sumário consigna que:

 «I – A leitura da sentença integra a audiência de julgamento e exige a presença do arguido. II – O tribunal tem o poder de dar início à audiência de julgamento fora da presença do arguido, mas não o isenta do dever de o notificar pessoalmente da realização de qualquer sessão de julgamento suplementar, não prevista inicialmente.III – Ocorre a nulidade insanável prevista na al. c) do art. 119 do CPP, se a leitura da sentença for feita em data não prevista inicialmente, sem a presença física do arguido, que não foi notificado para esse efeito.»

E, aceitem que não seja vaidade citar um excerto desse apontamento, sim, ante esta encorajadora doutrina, um voltar sobre os próprios passos, para pensar o já pensado, escrevi, precisamente a propósito da não presença do arguido no acto da leitura da sentença:

«Dispõe com placidez o artigo 373º, n.º 3 que, estando o arguido ausente, a sentença é lida ante o seu defensor, considerando-se este assim notificado; do mesmo modo o 372º, n.º 4 adita que a leitura equivale à notificação dos sujeitos processuais que deverem considerar-se presentes. 
Quer dizer, um acto que é o momento decisivo em que o tribunal emite o veredicto de culpa ou de inocência, determina a responsabilização e seus efeitos, fundamenta o porquê do que decidiu e, no limite do qual, consoante o 375º, n.º 2, o juiz, se o entender conveniente profere, em caso de condenação, uma breve alocução exortando o arguido a corrigir-se, fica transformado, pela conjugação destes preceitos, numa pura rotina, peça processual lida quantas vezes sincopada porque resumidamente, se não “por apontamento”, sem que o destinatário essencial do decidido sinta, afinal, porque ausente, qual a valoração que a Justiça fez do seu caso. Como se nada disso fosse com ele e para ele. 
A primeira finalidade que a justiça penal visa atingir, a da prevenção especial e o propósito ressocializador, afinal um dos pilares da legitimação dos Tribunais Judiciais, é, por esta forma, posta em crise, como se de uma repartição pública administrativa se tratasse.»

2ª feira próxima


Diria que Segunda-Feira regresso à minha profissão. Mas, na verdade, nunca deixei de estar com a minha profissão. É daquelas que nos seguem como uma sombra, porque há prazos que nela nunca se interrompem, porque as angústias e ânsias daqueles que assistimos não se suspendem no tempo apenas faz intervalo, quando possível, o respeito que alguns têm ante o tempo em que nos supõem a descansar.
Além disso, tenho feito ironia com a frase de "estar sempre de férias", forma de me organizar fazendo, durante todo o ano, para além do que devo o que quero, descansando sempre que posso, mesmo quando descansar é fazer outra coisa.
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Fiz ponto de honra não usar este espaço para falar da minha profissão nem dos casos profissionais. Acho que nunca quebrei, nem por aproximação, essa regra. E, no entanto, como se imagina, pretextos não faltariam porque cada dia é um manancial de razões para trazer aqui todo o teclado de sentimentos nesse piano de acontecimentos que vão do risível ao revoltante, só para me ficar pela letra erre. Mesmo nos dias em que apeteceu gritar alto ou em que fez sentido o "é preciso avisar toda a gente", abstive-me. Talvez tenha feito mal mas é um modo de ser. E contra isso a razão pode pouco e a vontade de intervenção cívica fica desguarnecida.
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Assim, Segunda-Feira não regresso, pois, à minha profissão, continuo, afinal, com ela. Para além disso, mantenho-me naquela outra vida que tenho procurado viver, a da escrita e agora a da edição, esta a diminuir o tempo para aquela, ambas a abrir espaço para o perpétuo renascer através da renovação. 
No campo jurídico tinha planeado ter adiantado para Setembro dois livros, mas talvez isso só seja verdade mais para o fim do mês. 
É que, estando sempre de férias, devo ter estado em Agosto mais em férias do que devia, entregue àquela preguiça inocente de quem acorda cedo deita-se tarde mas trabalha pouco e dormita angustiado pelo pesadelo do que poderia ter sido, como se numa escada rolante em que se está sempre abaixo do degrau seguinte.
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Tudo começou em 1966 quando entrei na Faculdade de Direito. Cinco anos depois, quando saí, queria ser juiz. O tempo ocupou, porém, o seu espaço. Proporcionou-se mais tarde ensinar e estudei, enfim, para isso. O resto tem sido a profissão, a avalanche dos factos e das histórias de vida de que se é confidente, a esmagadora maioria a de pessoas de quem não reza a História. 
A realidade tem pouco a ver com o mito, assim como o sonho é diverso da ilusão.

Imunidade dos Advogados


Fica aqui, em primeiro apontamento, o texto da intervenção ontem efectivada na conferência organizada pelo Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados. A minha gratidão pela oportunidade e a intenção de continuar o estudo do tema, melhorando este mero esboço.


A CRP e a Advocacia: primeiro, o facto sintomático: a Constituição da República Portuguesa, que dispõe no título dedicado aos tribunais um capítulo próprio para os juízes e outro para o Ministério Público, nenhum espaço sistemático reserva para os Advogados ou para a advocacia, o que só pode ser entendido como uma desconsideração no quadro do travejamento estruturante da Lei Fundamental destes profissionais e desta função de natureza, aliás, pública.
E, no entanto, trata-se de corpo normativo em que os legisladores não terão sido membros daquelas duas magistraturas, pois os advogados têm significativa expressão no hemiciclo parlamentar a ponto de se colocar reiteradamente a problemática da cumulação da profissão de Advogado com a da função política de deputado.
Apesar deste apoucamento normativo, é ali que encontramos o artigo 208º, segundo o qual «a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça.». E, eis, a baliza que enuncia o objecto do nosso tema.
Trata-se, pois, num primeiro encontro com o enunciado jurídico-constitucional, de uma situação duplamente limitada na sua formulação: está prevista, primeiro, sob reserva de lei e considerada, depois, como atinente às imunidades «necessárias». Nesta segunda vertente, diga-se, a fórmula usada lembra o texto da Constituição de 1933 quando previa que ao arguido se conferiam em processo penal, não «todas as garantias de defesa», como actualmente lautamente se promete na Constituição desde 1976, sim as «necessárias garantias», para que sobejo não houvesse no que à outorga de garantias respeita.

Conceito de imunidade: de que imunidade se trata esta que estamos considerando? Estaremos ante o mesmo conceito que surpreendemos no ordenamento jurídico quando este, em vários dos seus momentos, logo na Constituição, utiliza tal vocábulo? Creio que não.
Pacífico parece que a imunidade dos advogados não implica irresponsabilidade total pelos seus actos, a “inviolabilidade” do Advogado, como, por exemplo, o proclama, talvez também em excesso e por isso no vazio, mas afinal de modo aparente, a Constituição brasileira, ao ditar no seu artigo 133º que: «O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão nos limites da lei.»

[continua aqui]

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Fonte da imagem aqui

A caminhada para o Sol


Alguém lembrou ontem que ontem precisamente, ao ter-se iniciado o Solestício de Inverno, começaram os dias a caminhar para o Sol do Verão. 
Quis o destino que ontem mesmo a alegria trouxesse o entusiasmo esperançoso e com ele o desejo de regressar. 
Há na vida hiatos que são a única forma de a continuidade se exprimir.
Vou, entre hoje e amanhã, encerrar para a revista Jurismat um artigo sobre um tema com que tropecei um dia destes, o da direito de presença e o dever de comparência no processo penal. 
Tenho até ao final do mês outros compromissos de escrita, um sobre a proporcionalidade penal, outro sobre direitos fundamentais comparando o regime político actual e o que a Constituição de 1933 enunciava programaticamente, este último para a revista Julgar.
Na sequência do livro que escrevi sobre o crime de peculato, aprontarei em Janeiro o já há tempo prometido sobre o crime de participação económica em negócio. Revi provas finais de um artigo sobre a prova pericial a sair num colectânea, editada pela Coimbra Editora, texto para um colóquio organizado pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Em meados do ano editarei uma biografia do Professor José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães.
Para ter voz própria, relancei uma editora, a Labirinto de Letras, que, também no campo jurídico, vai abrir-se ao sector da edição digital.
Continuo a subsistir da minha profissão, sendo ela o mecenato destas aventuras.
Fazendo o balanço de uma vida em que a ligação ao Direito me envolveu, acho honestamente fiquei até agora aquém do que devia, fui por vezes além do que me era possível. 
Entre a frustração e o esgotamento a vida resolveu-se. 
Não tive vida académica, apenas a memória grata de uma vivência universitária, a obra escrita poucas vezes foi além da divulgação, o essencial dela pauta-se entre a incompletude e a dispersão. Juntei uma biblioteca que exige, porém, ser actualizada. A força dos deveres esgotou-me tempo que poderia ter dedicado a escrever. E depois sempre houve mais mundos que aqueles em que o Direito se confina.
Mas o eterno começo, esperança de Sísifo impenitente e pertinaz. Como escreveu Albert Camus, é preciso imaginar um Sísifo feliz.
Tudo visto, ao Natal, festa religiosa do culto solar, segue o ano novo, simbólica de esperança para além de uma folha caída na renovação do calendário.
A quantos têm sido pacientes amigos, um abraço grande. São eles a força moral, a razão do regresso.

Prova pericial



Eis, sem emendas, o texto lido esta tarde no colóquio organizado pela Associação Jurídica do Porto e pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Para efeitos de publicação, que surgirá em Setembro o texto será melhorado e reforçado com referências.



«Entre outras, são estas as questões essenciais que se colocam ante o sistema legal português em matéria de prova pericial: oficiosidade e ausência de contraditório na designação, oficialidade na selecção, singularidade na composição, preponderância probatória e sujeição pessoal a tal meio de prova.
Vejamos cada uma dessas facetas, as disfunções a que conduzem.
E tenhamos em vista que este encontro visa discutir se a reforma cirúrgica que foi extirpou ou não alguns dos abcessos que vinham gerando a patologia do sistema processual penal.
Tenha-se presente o contexto histórico em que a dita reforma surgiu, em que à Justiça era assacada, pela alegada lentidão, onerosidade e ineficiência, responsabilidade acrescida pela crise de produtividade económica, que era proclamada, em alta voz da propaganda oficial, causa da disrupção financeira do Estado, como se as razões não fossem outras.
Lamento, como cidadão, ter de constatar que aqui nada se fez de relevante. Tratou-se de microcirurgia irrisória.
Ora as perícias são, num processo penal contemporâneo, meio para reconstituir factos e avaliar provas, sob a convicção que a ciência garanta. Paga-se o preço da certeza pelo custo da técnica. Radica tudo na confiança do saber. Contrapõe a demonstração à argumentação.
Mas não são, nem podem ser, o fruto de uma verdade oficial, única, ditada unilateralmente, despotismo iluminado pelo presuntivo saber, defendido da crítica que o contraditório permite, não aberta à opinião de saberes de outros, provindos que venham do território da sociedade civil, porque nemo Estado tem o monopólio da ciência, nem o exclusivo da probidade.
Valeria a pena ter investido para o benefício. Oportunidade perdida, porém, esta que passou.
Vejamos cada um dos tópicos.

Oficiosidade na designação

O perito é nomeado pela autoridade judiciária ou pela lei, em caso algum pelos sujeitos processuais privados. E a nomeação incide primacialmente sobre entidades e/ou pessoas do meio oficial. É a oficiosidade na escolha e a oficialidade na selecção.
No que se refere à escolha, o pressuposto é o tradicional, aquele que Cavaleiro de Ferreira exprimia quando afirmava que o perito é um auxiliar do juiz para que se obtenha prova, ou esta seja avaliada.
Auxiliar do juiz – ou hoje da autoridade judiciária – o perito é, nesta lógica, de sua livre escolha, com as limitações previstas no n.º 1 do artigo 152º do CPP: a primeira, a de a designação, em regra, recair sobre o elenco de «estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado»; a segunda, «quando tal não for possível ou conveniente, por perito nomeado de entre pessoas constantes de listas de peritos existentes em cada comarca»; enfim, «na sua falta ou impossibilidade de resposta em tempo útil, por pessoa de honorabilidade e de reconhecida competência na matéria em causa».
Escolha oficial e a incidir em regra de entidade ou pessoa oficial, a peritagem está, por essência, fora dos poderes de participação probatória dos sujeitos privados no processo penal, sejam eles assistentes ou arguidos.
A lógica do sistema radica em duas circunstâncias: primeiro, naquela que se referiu, a de quem tem poderes de designação nomeia os seus auxiliares; a segunda, a de que, fossem os privados a terem poderes de indicação e não faltaria trazerem ao processo o contributo parcial dos seus remunerados peritos.
É um modelo em que, qualquer que seja a faceta pela qual se encare, assenta num desvalor e numa contradição: por um lado, numa subalternização do perito, que surge no processo como fruto de uma dependência funcional ante quem o nomeia e, por isso, só por si designável, em contradição, aliás, com o regime legal em matéria de valor probatório da prova pericial em que a opinião do designado se sobrepõe à do designante; por outro, numa suspeita sobre a probidade do perito particular contratado, porque sempre estaria ao serviço daqueles que tivessem meios para lhe remunerar as conclusões, que assim seriam venalmente suspeitas, também aqui em contradição com os até aqui tidos como peritos empregados dos organismos de apoio técnico na dependência do Ministério Público e suas polícias e ao serviço dos inquéritos para os quais são convocados.
Além disso, como adjuvante argumentativo tem-se sustentado que a peritagem dita contraditória, só é permitida àqueles que tenham meios financeiros suficientes para custearem os elevados custos de uma participação de especialistas, cujos honorários não estão ao alcance de todas as bolsas.
Trata-se, permita-se, de argumentos discutíveis.
É que, entre um sistema totalmente privatizado, em que os sujeitos processuais privados apenas têm ao seu dispor, como peritos, aquilo que o mercado oferece e podem remunerar, e um outro, em que os peritos sejam oriundos de estabelecimentos oficiais ou acreditados oficialmente mas que, a serem custeados pelas regras de custas da justiça, possam ser indicados pelos sujeitos processuais e oficiosamente pelo tribunal vai uma diferença: o segundo é exequível, menos oneroso e sobretudo mais equilibrado para a participação contraditória que é a forma de maximizar as várias abordagens à verdade.
Não sou dos que considero a perícia uma prova “neutra”, neutralidade a projectar-se na competência para a designação dos peritos e para a sua própria valoração.
Não pode ser “neutra” uma perícia que pode ser designada pelo Ministério Público que, por mais proclamada seja a metáfora da objectividade, é a parte acusadora no processo penal; não pode ser neutra uma prova que se sobrepõe, pela supremacia do tecnicismo, ao poder jurisdicional.
Além disso, o mesmo sistema que tem vedado a designação aos privados de peritos oriundos do sector privado tem vindo a coexistir com uma política legislativa de outsourcing a partir dos serviços públicos, que são autorizados, por leis sucessivas predominantemente na área médico-legal, a contratar peritos particulares, ou a cometer perícias a serviços privados, ou até mesmo a celebrar protocolos para tal efeito, tudo para suprir as alegadas deficiências dos serviços públicos, estendendo aqui uma lógica de mercado que é, afinal, a que se tem vindo a implantar no serviço nacional de saúde.
Estamos, pois, ante um sistema em que a oficiosidade da decisão e a oficialidade na selecção estão hoje sujeitos a contradições insanáveis por decaimento do valor tido por absoluto dos respectivos pressupostos.
Em 1940, quando os ventos do totalitarismo sopravam a contaminar o processo penal pelo apoucamento da judicialização, escrevia Cavaleiro de Ferreira a propósito dos “exames”, que era a forma pela qual a legislação processual penal consagrava a prova pericial:

«(…) a apreciação feita pelos peritos, sendo idêntica na natureza à apreciação da prova feita pelo juiz, não tem o mesmo valor e alcance. O juiz decide, enquanto o perito dá apenas um parecer, com o qual o juiz não é obrigado a conformar-se.».

E, situando o seu pensamento no quadro do que era o ensinamento da História, acrescentava:

«Na antiga legislação discutia-se muito a obrigatoriedade para os tribunais, dos pareceres dos peritos, nos exames, em matéria penal, e a maior parte da doutrina e da jurisprudência inclinavam-se para essa obrigatoriedade. Hoje, tal doutrina é absolutamente inadmissível. Mesmo em processo civil não há a sujeição do juiz ao parecer dos peritos».

Hoje, que vivemos sob a bandeira de um Estado que se proclama de Direito democrático, é como se viu.
Felizmente foi banido, ante a nova redacção conferida ao artigo 216º do CPP, algo que se vinha tornando, em abusiva perversão, fonte de desencorajamento para o requerimento pelos privados da prova pericial: o facto de, solicitada esta, se suspende até ao máximo de três meses o prazo da prisão preventiva, desde que a perícia fosse tida por determinante para a acusação ou para a pronúncia.» [continua aqui]

Comentário ao Código de Processo Penal


Afligia-me de há muito a ideia de um livro que nunca publicaria. Decidi-me a escrevê-lo aqui ante os olhos de todos, como os pintores que trabalham na praça pública, à mercê das críticas, a obra a surgir. Estará em permanente actualização à medida que novos dados, novas reflexões, venham mostrar as insuficiências, as inexactidões, os erros. Trata-se de um comentário ao Código de Processo Penal. Dei hoje o primeiro passo. Para isso criei um blog que pode ser visto aqui.

Crime de peculato - data de apresentação

Finalmente pode anunciar-se a data da apresentação, ultrapassado o contra-tempo. Será no próximo dia 29, pelas 18:30. O convite é aberto aos que entenderem convidar. Trabalho já no segundo livro da colecção, dedicado ao crime de participação económica em negócio.