Apresentação
Testemunho
A abstenção
Durante anos têm-se propiciado debates públicos sobre temas jurídicos que se suscitaram a propósito de processos em que tinha participação profissional como advogado.
Adoptei, desde há muito, como critério não intervir por duas razões: por poder considerar-se que aquilo que exprimisse em termos de ideias gerais no plano legal fossem, afinal, formas indirectas de estar a discutir o que em concreto estivesse a defender nesses processos e por admitir que, até por isso, não se tratasse de opinião credível, antes instrumental de um interesse.
Durante anos têm-se propiciado debates públicos sobre temas jurídicos que se suscitaram a propósito de processos em que não tive intervenção profissional como advogado. Aí, a recusa assentou na noção de que não conhecendo os processos, não me caberia, por respeito a mim, falar sobre o que ignoro, por respeito aos colegas não iria opinar sobre os processos em que tinham eles intervenção.
Em ambos os casos, não esteve ausente das minhas razões um preceito legal que é expresso no Estatuto da Ordem dos Advogados segundo o qual, enquanto advogados, estamos adstritos ao dever de reserva.
Quando desempenhei funções na Ordem dos Advogados questionei-me sobre se uma tal norma legal não se tinha tornado obsoleta, ante o que é torrencialmente vertido no espaço mediático, mesmo em detrimento do segredo de justiça, em detrimento das pessoas envolvidas nesses processos, gerando suspeita condenatória a que os advogados, pela passividade a que estavam adstritos ante aquela norma, não podem obstar sem entrar em contravenção com o que nele se diz. Até hoje não se pensou em alterá-lo.
Em nome de tudo isto foi-se apagando conscientemente a minha intervenção pública. Mesmo no espaço virtual que é o meu blog jurídico, o "Patologia Social", segui o mesmo critério e fi-lo constar do pórtico do mesmo.
Hoje, penso, está assente a ideia de que opinar sobre processos, ademais pendentes e ainda que de forma ínvia, é algo para o que não contribuo. Razão idêntica fez com que jamais tenha divulgado sucessos que tenho tido na profissão.
Digo isto, não como censura aos demais que surgem a fazer o que não faço, mas como declaração de princípio para justificar uma ausência. Sei que tudo isto é parte de um mundo que se tornou antiquado, mas prefiro assim. Sei que, num mundo de presenças, os ausentes parecem ter deixado de existir mas felizmente ainda há quem note a diferença.
Em tempos escrevi livros e artigos em que tentei exprimir, com distância, o que pensava sobre os temas jurídicos que nos mesmo se suscitavam.
Suponho que ainda possa voltar a escrevê-los, vencido o excesso de trabalho e o cansaço consequente que é hoje o meu mundo: o que me foi dado viver legitima-me a ter uma opinião, discutível seja, e a exprimi-la por essa forma, vencendo na minha consciência o equilíbrio entre o possível rigor e a necessária objectividade. Até lá, abstenho-me.
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A imagem é um quadro do pintor norte-americano Ben Will
A Assassina da Roda
«Sob o título "A Desordenada Paixão de Apetecer", escrevi este texto para a folha de sala da peça de teatro "A Assassina da Roda", baseada num romance escrito por Rute de Carvalho Serra, com encenação e interpretação de Maria Henrique. O contexto da narrativa, a condenação pela Casa da Suplicação, em 1772, de Luiza de Jesus, acusada de ter morto 33 crianças retirada da Roda dos Enjeitados de Coimbra. Assisti a noite passada ao espectáculo no Teatro da Trindade. Interpretação magistral.
«Tudo se move num mundo de horror, o mundo dos expostos e dos enjeitados.
Horror, o dos enjeitados, «filhos da desgraça», frutos indesejados, tropeços à conveniência, sobrepesos à miséria de quem os deu à luz.
Horror, o do seu abandono, condenados à sorte logo no acto de terem nascido, a somarem aos que nem chegaram a ter vida própria.
Horror o que mostram os números sobre as taxas de mortalidade destes desgraçados, tomando como exemplo a cidade de Lisboa e, nesta, o Hospital Real de Todos os Santos, que D. João II mandara erigir em 1492, depois de autorização do Papa Sisto IV, e do qual fazia parte um “criandário” destinado precisamente a receber os enjeitados, incorporando o Hospital do Colégio dos Meninos Órfãos, criado pela mulher de D. Afonso III, e cuja gestão estava confiada, desde 1530, por édito de D. João III, à Congregação dos Cónegos Seculares dos Lóios:
«No ano de 1743 entraram no Hospital Real de todos os Santos desta cidade, pela roda e pelo portal da casa dela, 1.038 crianças expostas, a saber 545 meninos e 493 meninas; com 1.717 que no princípio se estavam criando, faz o número de 2.755. Faleceram das mesmas crianças, na casa da roda, e das que se tinham dado a criar, 778.»
Para tudo isto confluíam vários factores, desde logo a noção de legitimidade da filiação, apenas reconhecida quanto àqueles que fossem fruto de matrimónio legalmente reconhecido, o que logo escorraçava para fora da lei quem não tivesse essa origem tida por legítima.
Nasce aí o conceito de enjeitados, de que é espelho a lei máxima da época, concretamente as Ordenações Filipinas (Título 88, § 11), as quais, codificando a legislação antecedente, estavam em vigor desde 1603, sobrevivendo mesmo à Revolução de 1640. E que, nesta parte, reproduziam quanto constava já das Ordenações Manuelinas, suas antecedentes (Título 67, § 11), publicadas entre 1512 e 1514 e que em 1521 substituiriam aquelas.
Em tal corpo normativo provia-se sobre os enjeitados, sintomaticamente na parte em que tratava dos órfãos, como se de uma mesma categoria se tratasse, e de facto, pela antiga legislação, os expostos eram considerados órfãos e, terminada a sua criação nas Casas de Caridade, eram entregues aos Juízes do Órfãos para lhes dar tutor, o qual devia mandar-lhes ensinar qualquer ofício.
E assim rezava a lei sobre «as crianças, que não forem de legítimo matrimónio, forem filhos de alguns homens casados, ou de solteiros» provendo que: «[…] primeiro serão constrangidos seus pais que os criem, e não tendo eles por onde os criar, se criarão à custa das mães. E não tendo eles, nem elas, por onde os criar, sejam requeridos seus parentes, que os mandem criar. E não o querendo fazer, ou sendo filhos de religiosos, ou de mulheres casadas, os mandarão criar à custa dos hospitais, ou albergarias, que houver na cidade, vila, ou lugar, se tiver bens ordenados para a criação dos enjeitados; de modo que as crianças não morram por falta de criação. E não havendo aí tais hospitais e albergarias se criarão à custa das rendas do concelho. E não tendo o concelho rendas por que se possam criar, os Oficiais da Câmara lançarão finta pelas pessoas, que nas fintas e encarregos do concelho hão-de pagar».
É, pois, a norma legal o ponto interessante de observação relativamente a muitos dos conceitos da época.
Primeiro, o conceito de enjeitado, amálgama que abrangia, desde logo, a filiação fora de matrimónio, pelo que o enjeitamento era, antes de ser acto individual de repúdio, acto legal de exclusão.
Depois, a ideia de que homem casado poderia ser obrigado a sustentar seu filho ilegítimo, mas sendo filho de mulher casada já a lei não criava sobre elas tal dever, empurrando desde logo a obrigação de sustento e “criação” para as instituições públicas, tal como no caso de filhos de religiosos.
Mas não se ficava por aqui o preceituado legal, pois havia que levar em conta o estatuído nas leis que completavam as Ordenações Filipinas e muitas delas posteriores até à Revolução de 1820.
De acordo com as normas jurídicas de então, a criação dos expostos era entregue, como vimos, a Casas de Caridade, à custa do erário público, mas chegados aos sete anos eram entregues aos Juízos dos Órfãos que os encaminhavam ou para famílias de acolhimento ou para o mercado de trabalho, conforme o lanço que os abrangesse.
A prevalência do encaminhamento para o mercado de trabalho tornou-se clara, e de tal modo que determinação legal, promulgada pouco antes da data dos actos de Luiza de Jesus, determinaria que em relação a estas crianças, sendo difícil arranjar-lhes emprego, poderiam ser repartidas por entre os lavradores, que até aos 12 anos não lhe pagavam soldada, tendo assim o benefício desta mão de obra infantil gratuita, dando-lhes educação, sustento e vestido (Alvará de 10 de Maio de 1783 e posterior Decreto de 6 de Dezembro de 1802).
Relegados todos eles a serem criaturas de segunda, sujeitos à triste sina, «os de cor preta ou parda» eram, porém, declarados “ingénuos”, querendo isso dizer, considerados originariamente livres e não meramente “libertos” (Alvará citado § 7, o qual seria revisto mais tarde por provisões de 26 de Junho de 1815 e de 22 de Fevereiro de 1823), sendo que só em 1846 se definiu que os expostos filhos de africanos livres não seriam escravizados (Alvará de 11 de Fevereiro de 1846).
Institucionalizados, os enjeitados estavam à mercê de abusos e do aproveitamento das suas pessoas e de tal modo para fins tidos por «imorais» que um Alvará da Rainha D. Maria I, de 12 de Fevereiro de 1783, «dado em Salvaterra de Magos», determinou que os mordomos da Casa dos Expostos da cidade de Lisboa promovessem, admoestando ou mandando prender, pelo máximo de um mês, aqueles que procurando os internados «para o honesto trabalho e serviço», no entanto, «se apartam da honestidade e modéstia com que devem sempre proceder, sendo aliciadas por pessoas que as pervertam ou procuram perverter».
Subentende-se na contida linguagem legislativa do que se tratava, afinal.
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É neste universo de sordidez pavorosa que a “Roda” surge como caridade entendida à maneira da época: caridade, porque tentativa de combater o infanticídio e o aborto, abrindo porta a que fossem recebidos, de modo anónimo, em instituição que era suposta assumir o encargo de cuidar da sua sobrevivência.
Só que, na prática, efeitos perversos surgiam a tornar abjecção o que teria na origem outra intenção, sendo lancinante a situação que se vivia em meados do século dezoito.
Logo o comércio das amas, fornecedoras de «leite mercenário», como numa expressão dorida lhe chamou Júlio Dantas, neste seu trecho que é o retrato tremendo do que era a repelência feita sistema:
«A Mesa dos Inocentes era o último recurso para o leite mercenário das amas. Algumas delas, para dobrarem a pataca de prata da criação de cada ano, saíam do Hospital Real com duas crianças penduradas dos peitos, levando, para o canto hediondo da sua alfurja de miséria a flor das suas vidas. Se alguma das crianças morria, a Casa da Roda lá estava, chilreando; trilando como um grande ninho; iam buscar outra. Se tinha a desgraça de resistir e de viver a criação estava paga até aos 7 anos.»
Mas não se quedava por aqui a triste sina destes deserdados, pasto de comércio e de exploração mercantil, porque confiados a este amparo de aleitação, ficavam, quantas vezes, à mercê do infortúnio, em perigo da própria sobrevivência.
Retomando a dura denúncia de Júlio Dantas:
«Depois, deixada as mantilhas e o leite das amas, o Calvário dos expostos começava. Se elas os queriam ainda, podiam tê-los em casa mais cinco anos, sem receber criação e sem pagar soldada. Mas aos doze, o juiz dos órfãos arrematava-os a quem desse mais por eles; e se havia algum enjeitado enfermiço ou débil que não tivesse lanço, animal de trabalho que ninguém quisesse, boca inútil que ficasse pesando no Cofre do Povo, a Roda enjeitava-o pela segunda vez, e lá ia, pobre Lázaro infantil, comer à Cadeia do Tronco na gamela dos presos, ou lamber com os cães na portaria de S. Bento da Saúde, o resto da sopa dos mendigos».
Enfim, visando pôr termo ao criminoso abandono de recém-nascidos, a Roda veio, afinal, permiti-lo a coberto do anonimato, porque nenhum esforço era feito para localizar os progenitores, alguns, aliás, eclesiásticos, outros de linhagem, cuja devoção e fama pública eram assim defendidas pelo manto da hipocrisia.
E até as próprias mães naturais os levavam para os recuperarem aos sete anos. Nasce aí a prática dos “sinais”, menções escritas ou físicas, apostas por vezes na própria roupa amortalhada que permitiria identificar aquela criança que ali fora deixada.
Era, enfim, o tentar evitar a morte certa através da escassa probabilidade de sobrevivência, a Roda tida, numa equação cruel, como o mal menor.
Local de acolhimento para as crias que a miséria não conseguia sustentar, era também lugar de albergue esconso para os filhos indesejados, frutos de amores clandestinos ou de abusos que assim se poderiam ocultar.
Para além disso, para os poderes públicos, era uma grosseira tentativa de inverter o decréscimo de população.
E, enfim, o encargo orçamental. Por Alvará de D. José de 11 de Fevereiro de 1775, manda-se cortar o tempo de permanência no Hospital dos Expostos que até aí era de nove anos e que somavam mais de novecentos por ano a somar aos «mais de quatro mil com trato sucessivo».
Legislação cruel determinava, entre outras cláusulas de exclusão, que «nenhum exposto, que exceder a idade de sete anos, possa entrar no Hospital por este título nem nele possa ser admitido como hóspede ou outro título que não seja o de artífice ou servente.»
Foi neste contexto que, a 10 de Maio de 1783 o Intendente Geral da Polícia Diogo Inácio de Pina Manique, fundador da Casa Pia, deu à Roda foros de coisa oficial, através de circular, ordenando a
sua abertura em todas as «cabeças de comarca» de Portugal.
A Intendência Geral da Polícia fora criada pelo Alvará com força de lei de 25 de Junho de 1760, para coordenar as atribuições de polícia exercidas pelos magistrados judiciais. Dela dependia a Real Casa Pia, criada por Decreto de 3 de Junho de 1780 e responsável pela integração social e profissional de jovens com actividades irregulares ou marginais.
Foi seu primeiro Intendente o desembargador Inácio Ferreira Souto, que desempenhou um papel fundamental na perseguição à família dos Távoras. Diogo Inácio de Pina Manique seria nomeado em 1780, pela Rainha D. Maria I, e manter-se-ia em funções até 1805. A instituição seria extinta a 8 de Novembro de 1833.
Por todo o país se disseminam, em alguns locais com notável atraso, e sucessiva legislação tentou dar ordem à instituição.
À Circular de 10 de Maio de 1783 sucederam outras, bem como alvarás régios, como, por exemplo, a 31 de Março de 1787, a 5 de Junho de 1800 e 9 de Novembro de 1808, tudo se prolongando até quase ao início do século vinte.
Ao chegar a Revolução de 1820, com ela uma mescla de liberalismo e das ideias que na França após 1789 haviam levado ao Terror pela guilhotina, tida esta por forma “humanitária” de pena de morte, a situação destas crianças era lancinante.
No seu acolhimento cumpria-se o ritual: recebidas pela “ama rodeira”, eram limpas e registadas com detalhe e baptizadas, se não houvesse sinal de o terem sido, e enfim confiadas a amas externas para que delas cuidassem.
Amas mal pagas, com remunerações amiúde em atraso, fazendo daquela criação modo de vida, eram mãos que valiam o que valesse a moral e o espírito de compaixão de cada uma.
Em 1823, números relativos aos expostos da cidade do Porto mostravam que dos 31.257 enjeitados que haviam entrado na instituição entre 1803 e 1822 haviam morrido 20.975; em Lisboa os valores não eram muito diferentes. Facto é que foi este século um dos períodos mais negros no que respeita ao abandono infantil e em que as taxas de mortalidade atingiam valores que chegaram a mais de 90%.
A Roda seria formalmente extinta apenas a 21 de Novembro de 1867, entrando esta determinação em vigor no ano seguinte, mas a sua implementação materializada por fases, tanto que em 1888 ainda se tentava dar execução a uma alternativa a este modelo em prol de uma nova ideia assistencial, através dos hospícios, agora custeada pelas recém-criadas Juntas Gerais de Distrito.
A lógica subjacente alterou-se, pelo menos, em uma parte: terminou o anonimato do abandono, obrigando-se à identificação da progenitura.
Como contraponto a este sistema, surgiu outro que o penalizava: é que a recepção das crianças que fossem levadas por mão identificada, ficava dependente de aceitação, o que excluía do acolhimento uma parte não despicienda do total das que ali eram presentadas.
Mas regressemos ao tempo e ao local dos crimes de Luiza de Jesus.
Neste covil de infâmias, eis-nos em Coimbra, lugar de tal horror onde em 1785 seria construído o Cemitério da Roda quando o sepultamento dos enjeitados atingia foros de escândalo, com os bebés a serem diariamente enterrados junto à igreja de S. Tiago, na zona da praça do mercado de legumes, carnes e peixes, «aonde por mal sepultado, em termos que por muitas vezes têm sido descobertos por vários animais».
É por aqui que o crime individual se soma ao crime da sociedade: aquele, repugnante pela violência do infanticídio, este, nojento pelo comércio da vida, pela morte lenta a que condenava esta legião de crianças.
A história de Luiza de Jesus é parte de tudo isto.
Confessando, sob tormentos, o infanticídio de 28 crianças, teriam sido encontrados 33 corpos que foram levados à formação da sua culpa.
Do seu caso cura o livro A Assassina da Roda, de Rute de Carvalho Serra, jurista, especializada em criminologia.
Trouxe-nos a narrativa como romance histórico, contando a história no contexto de outras histórias de personagens da época, que vão desfilando como seu cenário contextual. E eis o que chega agora aos palcos, adaptação da própria autora e interpretação de Maria Henrique.
Visto do ângulo ficcional, lido nos documentos da época, sentido agora pelo teatro, o episódio traz à tona aquela mescla de ideias e sentimentos que determinam a verdadeira e legítima compreensão histórica.
Com isto termino esta breve nota de apresentação.
No imediato, o horror dos factos, a morte de inocentes, alguns desossados, misto de «ambição e fereza» como lhe chamou a sentença que a condenou, ao «monstro de coração tão perverso, e corrompido, de que não haverá facilmente exemplo no presente século».
Ao contraponto dessas mortes infames, a pena de talião da morte da infanticida no patíbulo, sujeita à pena capital, esta cometida com atrocidade.
A 1 de Julho de 1772, após três meses de detenção, os juízes da Casa da Suplicação em Lisboa sentenciaram, em recurso, a infanticida a desfilar com baraço e pregão pelas ruas da cidade, ou seja, levando ao pescoço a corda em que seria enforcada e com um oficial de justiça a proclamar os crimes e as penas, para que disso ficasse clamor público.
A condenação era a de que morresse, mas não sem que antes lhe decepassem as mãos e «atenazada» fosse, o que vale dizer queimada com um ferro em brasa; morte sim, enfim, não pela sufocação de uma corda que a asfixiasse, mas pelo garrote que a isso juntava a lenta perfuração do pescoço.
E, enfim, «para que nunca mais houvesse memória de semelhante monstro» seria queimada e as cinzas dispersas, para que não pudessem ser recolhidas.
Condenação no plano civil, era também sentenciada no plano religioso, porquanto, incinerada e dispersas as cinzas, ficaria privada de enterro religioso.
Juntando à infâmia da pena, somava-se a sua condenação nas despesas do processo, calculadas em cinquenta mil réis.
Choca à nossa sensibilidade esta crueldade da Justiça.
E, no entanto, se pode ser considerada pena mais severa aplicada a uma mulher de que há memória em Portugal, não foi caso único.
O registo da pena capital impressiona até pelo que abrangia e pelo modo como se materializava.
Dois anos antes, tinham sido enforcados o Juiz dos Órfãos de São Sebastião da Pedreira e o seu escrivão, em 1769 outro juiz e seu escrivão por furto do «cofre das décimas». No ano de 1773 um
armador da Patriarcal de Lisboa, sentenciado por lançar várias vezes fogo à Igreja, foi queimado vivo. Acusado de ter atentado contra vida do Marquês de Pombal, um cidadão foi atado a quatro cavalos, arrastado, despedaçado, cortadas as mãos e, enfim, queimado. Em 1781 dois espanhóis são enforcados e esquartejados, por mortes e roubos.
Também mulheres não foram poupadas à morte com suplício antes da execução. Assim, em 1725 uma escrava acusada de matar o seu senhor com veneno; e no próprio ano de 1772, outra escrava que ajudara a matar o seu amo foi atenazada, cortadas as mãos e depois de morta, a cabeça decepada antes de ser enforcada.
A exposição da cabeça cortada fazia parte do ritual macabro visando dissuadir e prevenir pelo pavor.
Justiça de classe, a este cortejo de sofrimento escapavam, salvo excepções, de que os Távoras foram cruel demonstração, os de condição nobre: a decapitação a que eram sujeitos era tida por forma de compaixão, porque instantânea a dor.
Visto hoje, perguntamo-nos se tudo isto não poderia ter sido tratado como caso de loucura e, por isso, com a terapia psiquiátrica. Nada disso existia então. Vigiar e punir eram então e foram-no durante décadas, realidades indissociáveis, os possuídos de patologias da mente confundidos até com os que, em pecado, pela feitiçaria e bruxaria atentavam contra a religião. E essa a pista, qual ritual satânico de magia negra, que o livro de Rute Serra nos deixa.
História de malvadez, de malignidade, de cadeias de união no sofrimento, paixão tumultuosa, «essa desordenada paixão de apetecer», enfim, é toda uma sociedade que é assim desventrada.
Ao chegar ao fim, exaustos, os sentidos, leitores e espectadores anseiam por um momento que lhes restitua na vida a bondade, à alma, a doçura da paz. Breve intervalo seja.»
Encontrando a frase e o caminho
Ler e tentar escrever
Um novo formato
Colóquio sobre contra-ordenações: Porto, dia 18 de Setembro
Branqueamento de capitais: esta quarta-feira
Hoje, dia do Advogado
O hábito e regularidade
Ainda a presença do arguido no processo penal
2ª feira próxima
Imunidade dos Advogados
Fica aqui, em primeiro apontamento, o texto da intervenção ontem efectivada na conferência organizada pelo Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados. A minha gratidão pela oportunidade e a intenção de continuar o estudo do tema, melhorando este mero esboço.
A caminhada para o Sol
Prova pericial
Eis, sem emendas, o texto lido esta tarde no colóquio organizado pela Associação Jurídica do Porto e pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Para efeitos de publicação, que surgirá em Setembro o texto será melhorado e reforçado com referências.