Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




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TCIC: manutenção de competência



Foi rectificado o texto do Acórdão do STJ para fixação de jurisprudência de 01.02.2017 [relator Santos Cabral, texto integral aqui], que determinou: «Competindo ao Tribunal Central de Instrução Criminal proceder a actos jurisdicionais no inquérito instaurado no Departamento Central de Investigação Criminal para investigação de crimes elencados no artigo 47.º, n.º 1, da Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro (Estatuto do Ministério Público), por força do artigo 80.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, essa competência não se mantém para proceder à fase de instrução no caso de, na acusação ali deduzida ou no requerimento de abertura de instrução, não serem imputados ao arguido qualquer um daqueles crimes ou não se verificar qualquer dispersão territorial da actividade criminosa.»
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A conclusão, no sentido da manutenção de competência, não foi pacífica, como o atestam tantos votos de vencido de António Oliveira Mendes, António Pires da Graça, Isabel Pais Martins, Nuno Gomes da Silva, Manuel Augusto de Matos, Rosa Tching, e José Santos Carvalho. 
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A não valer o decidido, mantém, no entanto, incólume, a possibilidade de de o mesmo juiz poder, no mesmo tribunal, julgar os seus actos jurisdicionais prévios, praticados no inquérito, conhecendo-os quando postos em causa em sede agora de instrução, e tudo sem recurso, e [eis] mesmo que tenha ocorrido, por alteração do objecto jurídico da causa, supressão dos pressupostos que ditaram a legitimidade desse tribunal.

"Salamizar" ou concentrar?


«A colaboração premiada continua, qual maré negra, a fazer no Brasil as suas vítimas. Mas já tem, na sua cauda, a sombra do que poderá ser-lhe fatal: o risco de transformar-se de meio de obtenção da prova, tal como prevê o artigo 3º da lei que a regula – a 12.850/13 – em meio de prova em si e os tribunais condenarem, não como base na prova que o arguido delator permite encontrar com a sua denúncia – com isso beneficiando-se na pena e até dela se livrando – mas sim na mera delação em si, sem mais; e os tribunais, em recurso, virem depois a anular o julgado.
A este risco, que foi claramente enunciado pelo juiz (ministro como ali se designa) Dias Toffoli na recente decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro, julgando em plenário, segue-se um outro, o facto de a delação poder permitir a manipulação das regras de competência dos tribunais, gerando, em suma, através da suposta conexão de processos, que causas diversas se vão somando como da jurisdição do mesmo juiz.
O tema, gerando aceso debate público em terras brasileiras, é ali encarado não como uma fria problemática estritamente jurídica – saber qual o tribunal competente para conhecer cada um dos casos delatados, se o mesmo juiz, se juízes diferentes conforme o lugar dos acontecimentos – mas como tórrida questão política e fulanizada.
É como se o «fatiamento» da operação significasse não só o “desaforamento” do juiz que até agora tudo centralizava na sua pessoa – o qual assim ficava privado de jurisdição quanto a estes novos casos – mas o perigo de os novos alegados crimes sob investigação – agora distribuídos por outros tribunais – «caírem no esquecimento», como argumentou o juiz Sérgio Moro, prevenindo publicamente quanto ao risco que a operação corre se atribuída doravante a outras mãos que não as suas. E cita sintomaticamente as «mãos limpas» italianas.
Em Portugal tudo isto é conhecido nas suas várias vertentes, mas – terra de “brandos costumes” – ainda que com impacto menos luxuriante.
Menos exuberante, o estatuto de “arrependido” tem feito aqui também as suas “vítimas”: se bem que, como o próprio nome o sugere, ainda se pressuponha da parte daquele que supostamente se arrependeu uma pelo menos aparente contrição de alma e a denúncia de outros surja assim como espécie de purga interior e o colaboracionismo expressão de alinhamento com as forças do Direito – trazendo para o sistema judiciário recônditos religiosos do pecado, sua culpa e expiação – na prática, o requisito torna-se formal e, assim, o próprio rancor vingativo ou a ânsia de “safar a própria pele” a troco de “dar outros à morte” são relevados como se de virtude teologal estivéssemos a falar, aceitando Deus negociar com o próprio Diabo.
E, por igual, as regras de conexão processual foram também usadas quer no sentido de multiplicar processos sob o mesmo sujeito – fazendo-o sujeitar-se a julgamentos sucessivos e a sucessivas condenações que, ao limite, podem equivaler a prisão perpétua, como, ao invés, no sentido de autuar num só processo casos diferenciados em que o ponto de referência comum, por mais ténue que seja, traz o benefício ilusório de um megaprocesso, mastodôntico e, por isso, amplamente mediático sujeito sempre ao mesmo tribunal.
Em ambos os casos o legislador teve de intervir já para introduzir alguma disciplina no sector porque, em recurso, os tribunais superiores tinham transformado os megaprocessos em mega absolvições, fazendo fracassar o que parecia ser uma promissora “barrela” jurídico-criminal e a “salamização” processual ia para além do tolerado em termos de garantias constitucionais de um processo justo.
O mesmo sucedeu no que se refere à extensão indefinida dos prazos de inquérito e à prorrogação indeterminada do segredo de justiça. Quando o legislador português, para evitar a primeira, legislou no sentido de que a publicidade do processo penal ocorreria, com excepções, a partir de certo prazo razoável de inquérito secreto – retomando o que era, aliás, uma garantia do Código de Processo Penal de 1929, promulgado pela Ditadura Nacional – logo surgiu uma interpretação jurisprudencial em primeira instância no sentido de que no caso das excepções poderia chegar-se ao limite de perpetuar o secretismo contra os direitos do arguido. O caso é por demais conhecido porque mediático, assim como a decisão da segunda instância que a invalidou.
E está aqui a questão essencial.
Os tempos correm hoje na Justiça a favor do pragmatismo como critério da validação: bom é o que se revela eficaz. Princípios como o direito dos arguidos ao silêncio – que estavam adquiridos como regras de decência processual e pedra basilar do Estado de Direito – tornam-se, como no caso da colaboração premiada brasileira, em obrigação de prestar declarações, assim o arguido em causa tenha negociado com as autoridades judiciárias que, em troca de favor para si, denunciará outros mais apetitosos. E há quem, entre nós, esteja sugestionado já pelos seus resultados estatístico-punitivos.
Mais: são tempos de chumbo de apoucamento dos direitos dos arguidos, tidos por privilégios passadista de uma justiça elitista que não cuida suficientemente das anónimas vítimas: por causa do pouquíssimo para estas há quem promova o muitíssimo menos para aqueles.
Centremo-nos, porém, no tema que me traz aqui: regras como a do “juiz natural”, segundo a qual o juiz tem de estar predisposto antes do processo entrar em juízo e ser escolhido para ele segundo regras gerais e abstractas e por sorteio, tornaram-se no “juiz pré-determinado”, cumulando competências e somando casos sob a sua jurisdição. E no caso brasileiro, como já foi no nosso antigo Direito, com competência para instruir e julgar.
Os séculos somados de anos de cadeia das suas condenações, sendo notícia, tornam-se a medida da excelência do sistema; as absolvições em recurso, quando ocorrem, não merecem sequer uma linha no espaço mediático, nem como discreta necrologia processual.
Em suma: «a prorrogação de competência do juiz processante» com fundamento não na conexão material dos casos mas sim no «mero encontro furtivo da prova» - e ademais da prova por delação – foi agora barrada pelo Supremo brasileiro. É um sinal de que os tribunais superiores, tanto lá como cá, começam a intervir, mesmo em território sensível, e evidência, sobretudo, de na dialética judiciária, o respeito pela legalidade do processo ainda condicionar a eficácia do processado. O que se regista com aplauso.
A concentração de competência judiciária dá poder. Todo o poder é, porém, por populares que sejam os seus resultados, ilusório e precário.

Tudo passa, mesmo a vã glória de mandar.»

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Artigo originariamente publicado no jornal "Público".
Fonte da imagem: aqui