Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




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Governo: alteração das leis de processo civil


Foi submetida pelo Governo à Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 94//XIV/2 visando alterar o Código de Processo Civil, as normas regulamentares do regime da propriedade horizontal, o regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª Instância e o Código do Registo Predial
Pela sua relevância e por se tratar de lei eventualmente subsidiária no âmbito processual penal, aqui fica o preâmbulo, o qual é suficientemente explicativo. O texto integral bem como os pareceres obtidos estão aqui

«Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou o surto da COVID-19 uma emergência de saúde pública de âmbito internacional, tendo considerado o surto como pandemia a 11 de março de 2020.

Na sequência da emergência de saúde pública internacional, muitos Estados, entre os quais Portugal, declararam o estado de emergência nacional, que determinou entre outras medidas o necessário confinamento dos cidadãos e, consequentemente, a redução da atividade dos Tribunais.

Neste quadro, considerando o natural aumento das pendências decorrente do entorpecimento da atividade judicial importa introduzir alterações na lei processual civil que agilizem o processado e, simultaneamente, clarifiquem os institutos permitindo uma melhor e mais célere administração da justiça.

Nessa medida, desde logo, introduz-se alterações no regime da prova pericial, alargando, de forma clara, o âmbito legal das entidades competentes para a sua realização a outras entidades oficiais ou particulares, como sendo as universidades, que de facto já as realizam nos processos judiciais de forma célere e credível, designadamente no domínio do reconhecimento de letra ou assinatura.

Por outro lado, reserva-se o direito da parte requerer a realização de perícia colegial apenas para os casos em que a especial complexidade do objeto ou o conhecimento de matérias distintas o justificar.

Por último, neste conspecto, a fim de evitar a marcação da diligência de prestação de compromisso do perito, que ocupa a agenda do Tribunal e obriga à deslocação injustificada dos envolvidos, estabelece-se a obrigatoriedade do compromisso escrito sempre que o juiz não assista à diligência.

Repristina-se a redação anterior do artigo 560.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, para assegurar, por um lado, a igualdade entre autores que estão e não estão representados por mandatário judicial e, por outro lado, entre o autor e o réu no tocante à falta de comprovação do pagamento da taxa de justiça.

Na sequência da reforma introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, instituiu-se na lei processual civil, como princípio, a obrigatoriedade da realização da audiência prévia.

Ora, a prática judicial dos últimos anos tem demonstrado ser imperiosa a revisão de tal matéria, porquanto mostra-se de difícil compreensão, especialmente em contexto de pandemia, a obrigatoriedade da realização de uma diligência judicial, com necessária deslocação de intervenientes e preenchimento de agenda, quando ao juiz apenas cumpra apreciar exceções dilatórias ou conhecer do mérito da causa, desde que já tenha sido cumprido o contraditório quanto a estas questões, por escrito.

Assim, restringe-se a obrigatoriedade da realização de audiência prévia quando a mesma seja relativa a questões sobre as quais as partes não tenham tido oportunidade de se pronunciar.

A fim de evitar a realização, no mesmo processo, de várias audiências prévias ou várias sessões da referida diligência, mormente com o fundamento da suspensão da instância a requerimento das partes, estatui-se que a audiência prévia não pode ter lugar mais do que uma vez.

Por último, considerando a simplicidade do ato em causa, estende-se a possibilidade de dispensa da audiência prévia, pelo juiz, quando a mesma tenha por finalidade a mera programação da audiência final.

A prática judiciária tem também demonstrado que a convocação de tentativas de conciliação é por vezes efetuada de forma dilatória e desnecessária em casos em que já teve lugar ou há lugar a audiência prévia.

Donde, restringe-se a realização da tentativa de conciliação aos processos em que esta não tenha tido lugar, ou não haja lugar, a audiência prévia, impedindo que a mesma possa ser suspensa ou realizar-se, exclusivamente para esse fim, mais que uma vez.

Como é consabido, o Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, fixa em 10 o número de testemunhas que podem ser oferecidas pelas partes, embora, em função da complexidade do processo, o juiz possa admitir número superior. Contudo, não vigora atualmente qualquer limite ao número de testemunhas produzidas por cada facto.

Ora, é de toda a conveniência consagrar na lei processual civil um limite de produção de testemunhas – três – por cada facto, sendo que sempre poderão ser ouvidas mais se o juiz o entender necessário, por não ter ficado suficientemente esclarecido.

No mais, no plano internacional são reconhecidas as vantagens de celeridade processual do recurso ao depoimento testemunhal escrito ou previamente produzido no domicílio profissional de um dos advogados, atualmente previstos nos artigos 517.º e 518.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual.

Trata-se de um modelo muito utilizado no regime processual civil francês e norte-americano, que demonstra reconhecidas vantagens para a celeridade e tempo de duração dos processos, mas que no sistema judicial português ainda tem utilização meramente residual.

Nessa medida, tendo em vista estimular as partes a recorrer a este meio de produção de prova testemunhal estatui-se que as custas do processo são reduzidas a metade, sempre que, até ao despacho que marque a audiência final, for apresentada ata de inquirição da totalidade das testemunhas arroladas pelas partes.

Por outro lado, altera-se o regime do depoimento apresentado por escrito permitindo a sua utilização, sem a necessidade de autorização judicial nesse sentido, desde que as partes estejam de acordo ou no caso de a testemunha ter conhecimento de factos por virtude do exercício das suas funções. Introduz-se, ainda, a obrigação do depoimento vir acompanhado de cópia de documento de identificação do depoente e indicação da existência de alguma relação de parentesco, afinidade, amizade ou dependência com as partes ou qualquer interesse na ação.

Por último, neste conspecto, permite-se que o depoimento por escrito possa ser efetuado perante notário, bem como a possibilidade de o juiz, oficiosamente ou a requerimento das partes, determinar a renovação do depoimento na sua presença.

Com exceção do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, não é possível à luz da lei processual civil portuguesa a prolação oral de sentenças. Ora, julga-se que inexiste fundamento para manter tal situação.

Assim, institui-se a possibilidade, de nos casos de menor complexidade, a sentença ser oralmente proferida para a ata e sumariamente fundamentada, à semelhança do que já acontece no processo penal no âmbito dos processos sumário e abreviado.

Nesse caso, a discriminação dos factos provados e não provados pode ser feita por remissão para as peças processuais onde estejam alegados, sendo que a sentença limitar-se-á à parte decisória, precedida da identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado.

Em sede de aplicação do direito aos factos, o n.º 2 do artigo 608.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, já permite que o juiz não resolva todas as questões jurídicas suscitadas, desde que para tanto a decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Por maioria de razão, agora estende-se este regime à matéria de facto, permitindo que o juiz, em sede de decisão da matéria de facto, não tenha de julgar toda a factualidade alegada, quando seja manifesto o juízo de prejudicialidade existente entre as questões, segundo as várias soluções plausíveis da matéria de direito.

Reintroduz-se o articulado da réplica para resposta às exceções alegadas pelo réu e retoma-se o tratamento da compensação como exceção peremptória, em coerência com a sua natureza de causa de extinção das obrigações que lhe é assinalada pela lei substantiva: a compensação só constitui objeto de pedido reconvencional no caso de o réu pretender a condenação do autor no pagamento do excedente do seu crédito sobre o crédito alegado pelo primeiro.

No que respeita ao regime do maior acompanhado introduz-se a regra de conhecimento oficioso da incompetência relativa, bem como a possibilidade de audição do beneficiário por meios telemáticos sempre que este não resida na área do concelho onde se mostre sediado o tribunal onde pende o processo, de modo a assegurar, por um lado, a proximidade entre o tribunal e o beneficiário e, por outro lado, de modo a obstar às dificuldades de mobilidade que afetam grande parte do universo dos beneficiários, especialmente em contexto de pandemia.

No tocante ao recurso de apelação clarificam-se os ónus, e a sede da sua alegação, que vinculam o recorrente que impugne a decisão da questão de facto, e reconhece-se ao juiz relator a faculdade de decidir liminar e sumariamente essa impugnação, sempre que, logo em face da alegação mesma do recorrente, ela se mostre patentemente infundada.

A aferição dos fundamentos específicos da revista é agora atribuída, em exclusivo, ao juiz relator do Supremo Tribunal do Justiça, cabendo da decisão deste, que admita ou rejeite a revista, reclamação para a formação constituída por três juízes, cuja decisão, sumariamente fundamentada, é definitiva. Por uma razão de extensão de competência, aquela formação é ainda competente, tendo a reclamação como fundamento a verificação de alguns dos pressupostos específicos da revista, para apreciar os restantes fundamentos invocados pelo reclamante, com o que se evita a duplicação de procedimentos reclamatórios, dirigidos a órgãos diversos.

Ordenada pelo propósito de garantir a tutela da confiança dos particulares, consagra-se a faculdade de o Supremo Tribunal de Justiça, orientado por critérios de segurança jurídica e de equidade, estabelecer os efeitos temporais da uniformização de jurisprudência, prevenindo os inconvenientes, para a situação jurídica dos particulares, da sua aplicação retroativa irrestrita.

Os fundamentos do recurso extraordinário de revisão são objeto de uma reponderação geral, através da individualização das patologias processuais que, à luz dos parâmetros do processo equitativo, devem permitir a revisão de uma sentença transitada em julgado. Mantém-se, porém, um adequado equilíbrio entre a intangibilidade do caso julgado e a possibilidade da sua rescisão por inarredáveis imperativos de justiça, de modo a que se possa proceder à reparação da injustiça da sentença transitada em julgado e ao proferimento de uma nova decisão fundada no direito.


Em sede de matéria recursória introduzem-se também alterações no Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 305/83, de 29 de junho, na sua redação atual, estatuindo que para além dos casos em que é sempre admissível recurso, do acórdão da Relação cabe, ainda, recurso se puder ser invocado um dos fundamentos específicos enumerados no n.º 2 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, harmonizando, assim, o regime geral dos recursos com as normas próprias de recursos inscritas no Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 305/83, de 29 de junho, na sua redação atual.

II

No tocante ao regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância resolve-se, de modo expresso, o problema suscitado pela falta de resposta do autor à compensação invocada pelo réu, harmonizando o regime da sentença destes procedimentos com a alteração prevista para o Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual.

Por último, dissipam-se as dúvidas quanto à exequibilidade extrínseca da ata da assembleia de condóminos, estatuindo-se que o título executivo suscetível de permitir a realização coativa das prestações devidas ao condomínio é constituído por aquela ata e pelo documento de notificação admonitória do condómino relapso, com a especificação dos valores em dívida.»

Matéria de facto nos recursos penais: uma conferência



Hesitei se o deveria aprimorar antes da publicação, mas manda a coerência que o texto desta minha intervenção surja tal como foi lido na conferência sobre Direitos Fundamentais no Processo Penal, que teve lugar no passado dia 21 de Novembro no Salão Nobre da Academia das Ciências, organizada pelo Supremo Tribunal de Justiça e em que me foi dada a honra de participar com o tema recurso: impugnação da matéria de facto, vícios da decisão e in dubio pro reo. 


Há momentos em que urge regredir no tempo para, através do passado, tentar o conforto de compreender o presente,  com risco de terminarmos, porventura, ante aquilo em que o mesmo se tornou, num sentimento frustrante de desilusão. Eis o trajecto que me proponho fazer.
Os que trabalharam sob  sistema do Código de Processo Penal de 1929, ou o estudaram depois de ter terminado a sua vigência, lembram que os recursos penais corriam nele sob a forma de agravo; aqueles que têm presente o que se consagrou na versão inicial do Código de Processo Penal de 1987, recordar-se-ão que, de modo claro, a Lei de Autorização Legislativa n.º 43/86, de 26 de Setembro, que viabilizou a aprovação de tal diploma, estatuía que ao tribunal da relação era atribuída competência para conhecer «em apelação» dos recursos interpostos de decisões interlocutórias e finais do juiz singular e de decisões interlocutórias emitidas pelo tribunal colectivo» [n.º 72].
Não se tratava então de mera mudança de etiquetas na designação da espécie de recursos, sim, implantar uma outra filosofia, segundo a qual nos recursos haveria de privilegiar-se o mérito das questões e não apenas os temas do procedimento.
Ora, conferindo o que mostra a prática dos tribunais e a mentalidade que se formou em matéria do tema, conclui-se que a lógica subjacente ao princípio da apelação entrou em necrose e subiste hoje com escassa projecção: é, de facto, sentimento de quem pratica nos tribunais, que as questões processuais têm mais probabilidade de serem acolhidas em recurso do que a discussão substancial dos factos provados e não provados, pois quanto a estas, entre a lei e a jurisprudência, foram-se acumulando entolhos a essa possibilidade.
O tempo histórico correu, pois, no sentido do desaparecimento da apelação penal, não só como palavra, mas como realidade jurídica, pois ela sumiu do sistema processual como termo e como ideia.
E, no entanto, o Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira, no seu Curso de Processo Penal, [impresso em 1986], concluía:

«[…] a apelação é o recurso que verdadeiramente constitui um segundo julgamento; substitui, ao juízo da 1ª instância, um novo juízo, em matéria de facto e de direito, de 2ª instância».

Eis o que se tornou evanescente do universo da Justiça criminal, a ideia de que o recurso é essencialmente um novo exame, uma revisão do visto, uma segunda oportunidade de avaliação do decidido em todos os ângulos em que ocorreu decisão recorrida: hoje o recurso tornou-se uma pálida imagem dessa noção.
Tudo isso surgiu de um progressivo gotejar histórico que foi sedimentando. O Código de Processo Penal tentou criar um modelo com isso fracturante, mas estava à vista que não teria futuro. A História explica porquê.
Admitiam-na, à apelação penal, as Ordenações. Mas em 1892, uma Lei, de 15 de Setembro, determinava já que as apelações e as revistas eram julgadas como agravos.
Era o ponto sintomático da desvalorização das nomenclaturas, miscigenando-as todas, desvalorizando assim cada uma. Citando Alves de Sá, coevo do que se passava:

«Assisto aterrorizado desde 1892 a esta confusão tumultuosa em que caiu o foro nesta matéria».

Ao chegar-se do Código de Processo Penal de 1929 já o conceito de apelação penal tinha sido, entretanto, varrido da terminologia da lei adjectiva criminal e encontrávamos apenas um princípio, que nos acompanhou a todos quantos, como é o meu caso, tivemos esse código como companhia profissional - já retalhado, acrescentado, parcialmente revogado e derrogado - segundo o qual - e eis o seu artigo 649º:

«Os recursos em processo penal serão interpostos, processados e julgados como os agravos      de petição em matéria cível, salvas as disposições em contrário deste código».

Não era esta, a que citamos, uma simples norma jurídica sobre tramitação, era, sim, um normativo sobre a natureza das coisas em matéria de recursos, a dar-lhes uma semântica e sobretudo uma direcção interpretativa em via reduzida: dizia-se «agravo» para que ficasse entendido que não se queria dizer «apelação». E dizia-se, aliás, «agravo de petição» categoria jurídica que havia, aliás, já caído em desuso.
É que natureza do agravo era determinada sobre a incidência do seu objecto, a circunstância de recair sobre tema processual, que não sobre o mérito da causa, afastando assim o território natural da apelação.
No enunciado da lei subsidiária, e como tal aplicável em regime de integração, determinava já o Código de Processo Civil de então [o de 1876] que:

«[…] das decisões de que não pode apelar-se e que excedam a alçada do juiz compete agravo».

E quanto ao critério pelo qual se encontravam os casos de que cabia apelação, resumia-o o Professor Alberto dos Reis, no seu livro Breve Estudo sobre a Reforma do Processo Civil e Comercial ao escrever que o legislador havia reservado a apelação «para as sentenças que conhecem do mérito ou do fundo da causa, compreendendo-se na palavra causa certos e determinados incidentes».
Em suma, o desaparecimento a partir de 1929  da categoria das apelações penais significou como única ilação possível, uma indicação legislativa no sentido da incognoscibilidade tendencial do mérito das causas penais. Era, assim, a restrição dos recursos no que se refere à sindicabilidade efectiva das causas penais julgadas em primeira instância.
É que esse Código de Processo Penal de 1929 havia determinado, no seu artigo 665º, que:

«As Relações conhecerão de facto e de direito nas causas que julguem em primeira instância e nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1ª instância, e conhecerão só de direito, nos recursos interpostos das decisões finais nos tribunais colectivos e das proferidas em processos em que intervenha o júri (…)» [salvo o caso de anulação da decisão do júri em caso específico].

Quer dizer: o mérito da causa, a partir da reforma processual penal de 1929, e em função daquele citado preceito, passou a ser matéria cognoscível pela Relação apenas quando a decisão recorrida fosse oriunda de juiz singular, desde que não se prescindisse de recurso, caso em que [artigo 532º]:

«[…] escrever-se-ão resumidamente na acta da audiência as respostas do réu, os depoimentos das testemunhas e as declarações dos ofendidos e outras pessoas que devam prestá-las».

Estava consagrada, com força de lei, a intangibilidade das decisões do colectivo sobre o mérito da causa, o fim da apelação penal nas causas relevantes, as que eram julgadas em processo de querela, puníveis com penas mais graves.
O sistema, na sua natureza imanente, já era suficientemente explícito, mas uma vertente prática do mesmo demonstraria a sua verdadeira essência e sobretudo os propósitos que animavam os seus autores.
Assim, como o clarificou um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1932, mesmo depois da alteração do CPP em 1931 «[…] os depoimentos das testemunhas perante o tribunal colectivo não são escritos».
Era impossível a Relação sindicar a prova produzida em audiência devido à ausência de registo da mesma. Assim, a substância, os factos, uma vez adquiridos em primeira instância, fixados estavam, pois não havia hipótese de o tribunal de recurso achar modo de  pôr em crise.
Mas o refinamento agravante do sistema ainda estaria para vir.
Em 1934, um Assento de 29 de Junho enunciaria uma jurisprudência que, de acordo com o sistema de então, valia como lei, e assim obrigatória, segundo a qual a alteração pelas Relações das decisões dos colectivos só poderiam ocorrer:

«[…] em face dos elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada em julgamento e que haja determinado as respostas aos quesitos».

Como explicaria o Conselheiro Maia Gonçalves, usando linguagem mais clara para traduzir esta formulação esfíngica, em nota ao artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929:

«[…] em face do Assento de 29 de Junho de 1934, a competência das Relações em matéria de facto, nos processos julgados pelo tribunal colectivo, é muito restrita, só lhes sendo lícito alterar as decisões da primeira instância quando do processo constem todos os elementos de prova que lhes serviram de base ou quando se trate de factos plenamente provados por meio de documentos autênticos. Qualquer elemento de prova produzido perante o colectivo impede que as Relações alterem as respostas aos quesitos».

Era, em suma, o que se popularizou como a «ditadura dos colectivos» em matéria de facto, sistema do qual decorria que o julgamento ante juiz singular era paradoxalmente mais garantístico em termos de recursos do que o ocorrido diante tribunal colectivo, por admitir aquele o seu reexame, com efectivos meios, em sede recurso quanto às questão de facto, a conhecer pelas Relações.
Como o resumiam Borges de Araújo e Gomes da Costa - compilando as lições proferidas pelo professor Manuel Cavaleiro de Ferreira de 1940:

«[…] as Relações só tomam conhecimento da matéria de direito, pelo menos nos processos de querela [a julgar pelo colectivo], pois quando o tribunal colectivo é chamado a julgar a prova não é escrita».

Eram tempos difíceis esses, os da intangibilidade do veredicto de facto nos casos penais graves, tempos de chumbo em que, já agora será interessante lembrar, vingava lei que permitia o entendimento segundo o qual:

«[…] em recurso penal, embora só interposto pelo réu, pode o tribunal agravar a pena» [Assento do STJ de 4 de Maio de 1950].

É que esquecem porventura os mais novos ou os menos estudiosos, a proibição da reformatio in peius - no que significa de impedimento de agravação da pena em caso de recurso interposto pelo arguido - só foi lei a partir de 1969 [com a alteração do artigo 667º do Código de Processo Penal de 1929 pela Lei nº 2139, de 14 de Março, sendo primeiro-ministro o professor Marcelo Caetano].
Os colectivos recebiam da lei o benefício da intangibilidade das suas decisões sobre os factos, tal como a mesma havia sido concedida na matéria ao julgamento pelo júri.
A inapelabilidade do julgamento da matéria de facto surgira em Portugal com a introdução do júri, figura que fomos importar ao modelo estrangeiro, sem tradições entre nós e que faleceria de morte natural pela década de quarenta do século vinte, para ser ressuscitado em 1975, tendo vindo a viver desde então, embora recomposto, hiatos de sobrevivência sem grande esperança de prestígio e sobretudo com duvidosos resultados em termos de acerto, expediente apenas quando a acusação pública não se quer comprometer com certos processos cuja responsabilidade é assim alijada nos jurados, pseudo-representantes do povo, afinal apenas cidadãos mobilizados por sorteio para intervirem no julgamento penal e sua sentença.
É com o júri que mingua a apelação penal. Mas - e cito de novo o professor Cavaleiro de Ferreira no seu texto pedagógico, agora de 1986:

«[…] posteriormente, e já neste século, com a criação dos tribunais colectivos que substituíram o júri, insinuou-se sub-repticiamente a ideia de que o tribunal colectivo devia herdar não só a competência em matéria de facto do júri, mas de igual modo a presunção de infalibilidade. Foi um erro que as circunstâncias em que se processaram as sucessivas reformas processuais tornaram possível».

Morta a apelação criminal, implantado o sistema do agravo penal, estava aberta a porta para a infabilidade dos tribunais colectivos em matéria de facto.
Havia, no entanto, urge reconhecer, uma lógica imanente ao sistema da inapelabilidade dos acórdão do tribunal colectivo e do tribunal de júri: a sua colegialidade e com ela a noção de que uma pluralidade de pessoas haviam, após atenta observação e por deliberação, convergido no elenco do provado e do não provado: ora, antecipando o que se dirá adiante, hoje esse privilégio de infalibilidade foi estendido aos tribunais singulares pois as restrições que existem ao conhecimento da matéria de facto estendem-se também a eles.
Foi neste ambiente que se chegou ao Código de Processo Penal de 1987 e com ele à ânsia de reforma, ingénuo, conclui-se hoje.
Dele decorreram várias ideias discursivamente novas e candidatas esperançadas a terem futuro. O problema foi a pragmática do sistema e a cultura que o caracterizava e se formara antecedentemente, as quais lhes neutralizaram, logo no ovo, a ambição de perdurabilidade.
Enunciemo-las para que o pessimismo realista, de que faço aliás cultura e mundivisão, o possam demonstrar.
Em primeiro lugar, verteu o legislador em lei a ideia liberal de que todas as espécies de recurso, mesmo os atinentes à temática meramente jurídica - e inclusivamente aqueles outros em que os poderes cognitivos do tribunal fossem, circunscritos à matéria de Direito - admitiam [artigo 410º, n.º 2 do CPP] a hipótese de serem conhecidas certas questões, afinal factuais - tarifadas em três casos paradigmáticos - (i) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (ii) contradição insanável na fundamentação (iii) erro notório na apreciação da prova, ou isto é, tudo matérias em que está em causa a factualidade adquirida na primeira instância.
Ou seja, expressamente pretendeu o legislador que se consagrasse um sistema pelo qual, mesmo ante tribunais que por lei limitam o seu conhecimento a temas de Direito, sempre a ponderação da factualidade tinha de ser relevada, em termos de se prosseguir Justiça, naqueles casos em que, ou o Direito não pudesse ser convocado por insuficiência dos factos provados, ou a explicitação dos achados de facto fosse entre si contraditória ou, enfim, se estivesse ante erro notório na apreciação da prova.
A consagração deste conceito não se alcançaria, porém, sem resistência, porquanto certa jurisprudência cedo se encarregou de determinar que tal possibilidade de alargamento dos poderes cognitivos - digamos, do Supremo Tribunal de Justiça - não poderia ser suscitada como tema de recurso, mas apenas ser operada oficiosamente pelo tribunal de recurso ao conhecer o tema jurídico em causa, o que transpunha para a discricionariedade do tribunal o que se previra ser um direito dos recorrentes.
Esta limitação - que a lei no seu enunciado expresso não previa - o da cognoscibilidade apenas ex officio, viria obviamente a reduzir o alcance daquilo que era o primitivo escopo do legislador.
Para além disso, a interpretação do conceito de «erro notório» na apreciação da prova foi de tal modo tornada exigente, que se tornou de quase impossível invocação, reduzido aos casos em que a ostensividade do erro fosse gritante, quase igual ao erro grosseiro, de insólita aparição em avaliações judiciais da prova, quase incompatível com a pessoa de um magistrado.
Para além disso, com o Código de Processo Penal de 1987, retornou para a lei processual penal a categoria conceptual da «apelação», quando a Lei da autorização legislativa da qual emergiu o novo Código consagrou [Lei nº 43/86, de 26 de Setembro, artigo 2º, n.º 2, ponto 72] que ocorreria no novo Código a:

«atribuição ao tribunal da relação de competência para conhecer, em apelação, dos recursos interpostos de decisões interlocutórias e finais do juiz singular e de decisões interlocutórias emitidas pelo tribunal colectiva, e para, em certos casos, renovar a prova, caso não reenvie o processo para o tribunal colectivo» [itálico meu].

Mas feito o balanço ao escopo e âmbito das audiências nos tribunais superiores e ao modo como funcionam, nomeadamente no que respeita a essa «máxima oralidade» e essa proclamada «apelação», conclui-se que tais novidades acabaram por entrar numa tal caducidade por não uso, que o legislador teve, misericordioso, de torná-las opcionais, donde  aparição raríssima para possível desaparecimento, também aqui pelo não uso.
Em terceiro lugar, como acabamos de ver, tentou-se, com este novo Código de Processo Penal, a consagração de um sistema de renovação da prova [artigo 430º, pelo qual a segunda instância, mais do que um tribunal de rescisão, funcionaria como um tribunal de segundo julgamento, até porque ocorreria também [ponto 71, do preceito citado], a:

«[…] consagração, para todas as espécies de recurso ordinário, interposto da decisão final, da garantia do contraditório […]».

Tratava-se de pôr em marcha uma ideia que o preâmbulo do Código, ingénuo porque confiante, assim exprimia:

«Com o mesmo propósito de emprestar ao recurso maior consistência, procura contrariar-se a tendência para fazer dele um labor meramente rotineiro executado sobre papéis, convertendo-o num conhecimento autêntico de problemas e conflitos reais, mediatizado pela intervenção real de pessoas. Por isso se submetem os recursos ao princípio geral - aliás jurídico-constitucionalmente imposto! - da estrutura acusatória, com a consequente exigência de uma audiência onde seja respeitada a máxima da oralidade».

Ora considerando o número de vezes em que ocorreu até hoje a renovação da prova - a meu conhecer nunca [durante a conferência tive conhecimento de dois casos] - viu-se em que medida tal novidade se tornou candidata à morte anunciada logo no acto de nascer.
A renovação da prova tornou-se, pois, previsão não praticada, porquanto impraticável.
Paulo Pinto de Albuquerque diz, aliás, com ironia, quea disposição que a prevê é «a menos compreendida em todo o Código», dado o «equívoco em que tem estado enredada».
O Supremo Tribunal de Justiça, num seu Acórdão de 21.01.04, havia delineado, aliás, já um critério que a tornaria excepcional:

«[…] a renovação da prova só será de decretar quando não seja possível aferir-se da sua correcção a partir da prova já produzida».

E a atentar na configuração do que a nível jurisprudencial se entende por renovação da prova, logo dali se conclui que nunca ela ocorrerá, pois é considerada como algo apenas circunscrito ao caso de ocorrência de algum dos vícios do artigo 410º, n.º 2 do Código de Processo Penal e relativo à mesma prova já produzida e não a uma outra prova que não aquela.
Acórdãos como um da Relação de Lisboa, esse então, proferido a 21.12.00, acharam modo de obviar à sua efectivação, aniquilando o valor semântico do conceito de renovação, este ao determinar:

«[…] quando a prova esteja documentada, a sua renovação não é admissível, sob qualquer fundamento».

Ora, como o recurso sobre a matéria de facto pressupõe a documentação da prova, o mesmo é dizer, ante tal entendimento, que nunca há lugar à renovação da prova, pois há sempre documentação que a tanto obsta.

Faltava decidir a opção de fundo entre os dois sistemas admissíveis de recurso: o recurso por substituição e o recurso por cassação: o Código de Processo Penal sonhou a praticabilidade do primeiro, mas acabou por ter de se render ao triunfo do segundo, o sonho legislativo fruto de princípios, a realidade produto da prática, o legislador a querer amarrar a perna à jurisprudência, esta a libertar-se do laço do legislador.
Através da lógica da substituição, o tribunal de recurso profere ele próprio a decisão que deveria ter sido a emitida pelo tribunal recorrido; pelo segundo, o da cassação, o tribunal de recurso limita-se a anular a decisão prolatada pelo tribunal do qual se recorre, reenviando o processo a este para que profira nova decisão ou efective, se for o caso, novo julgamento.
Ora na mecânica prática das coisas, o sistema revogatório é mais tentador, pois menos exigente de esforço e assim triunfaria.
Enfim, a lei de autorização legislativa dera indicação segura [n.º 72] de que o reenvio só ocorreria, nos recursos para a Relação, quando se não verificasse a renovação da prova; ora, uma vez que a renovação da prova passou a ser uma não existência, tudo se transformou, em matéria de recursos de mérito para a Relação, num sistema de anulação e reenvio.
Neste panorama de realismo desolador, bem tentou a reforma do Código de Processo Penal de 1998 [por alteração ao seu artigo 431º] uma viragem de rumo, com abertura controlada à modificabilidade pelo tribunal da Relação do veredicto de facto constante da decisão recorrida, isso a suceder em três casos.
Em primeiro lugar, e em aparente inovação, «se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base», fórmula aparentemente liberal, mas que redunda, afinal, numa revivescência do espírito do Assento de 1934, acima visto, que a jurisprudência redutoramente logo aplicou, considerando tratar-se de circunstância excepcional.
Em segundo lugar, reiterando-se que isso ocorre no caso de ter havido impugnação da prova, com o cumprimento, nas conclusões da motivação do recurso, de ónus de indicação não só dos pontos de facto tidos por incorrectamente julgados, menção a qual o facto probando que pretende fazer triunfar em substituição do provado ou não provado e bem como indicação do lugar onde a prova se encontra registada nos suportes magnéticos áudio em que esteja gravada a produzida oralmente.
O alcance desta inovação ficou, porém, à mercê da interpretação que acabou por se formar quanto às exigências da motivação de recurso e respectivas conclusões, o que se tornou uma floresta de incertezas e caminhos perigosos para os recorrentes, ao que já voltaremos.
Enfim, insistência na ilusão funesta, em terceiro lugar, «se tiver havido renovação da prova», invocação, afinal, ousemos dizê-lo de um nado morto.
Ora na verdade, por via destas delimitações, a questão do recurso da matéria de facto, a partir da reforma em 1998, passou a ser, no imediato, o triunfo não só da arte de escrita, em que se privilegiam formalidades narrativas sobre substâncias, em que a probabilidade de se acertar no modo de configurar o recurso e sobretudo as suas conclusões, raramente ocorre, com a consequente rejeição do mesmo.
Logo na origem tudo anunciava o que aí viria, um sistema com pouca sorte.
O legislador havia pensado um sistema pelo qual em primeira instância se faria recurso a meios de registo da prova que iam, ao limite aos videográficos, para que, numa expressão que se popularizou, o tribunal de recurso pudesse captar não só quanto fora dito mas igualmente o modo como fora dito e assim a imediação fosse viável ante a total oralidade, dois princípios reitores do sistema de justiça recursória: era a ilusão tecnológica de que a prova seria reponderada.
Breve tempo durou a fantasia em torno da novidade, pois jurisprudência logo surgiu a determinar que, gravando-se embora, todo o dito teria de ser transcrito, assim se pondo em causa, desde logo, a espontaneidade do discurso oral, reduzido em expressividade, face ao copiado para o registo escrito.
Foi depois o tema de saber a quem incumbiria o encargo da transcrição, se ao sempre anémico erário público para fins de Justiça ou se aos sujeitos privados, aquela primeiro alternativa tida por inviável por falta de verba para tanto, esta outra indesejada por suspeição de que tais sujeitos transcrevessem sem fidedignidade a prova que lhes interessava.
O tema acabou por implicar uma definição em sede de fixação de jurisprudência pelo Assento n.º 2/2003, de 16 de Janeiro, segundo o qual:

«Sempre que o recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, em conformidade com o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, a transcrição ali referida incumbe ao tribunal.»

Só em 2007, com a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto se pôs termo a tal «ónus» do tribunal [como impropriamente lhe chamava alguma jurisprudência] e o tribunal passou a ficar adstrito apenas à entrega de cópia dos suportes das gravações áudio, sem que isso implicasse inconstitucionalidade material da norma respectiva [ nova redacção conferida ao n.º 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal], como foi decidido pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 473/2007.
Faltava o critério que se firmou na jurisprudência quanto à exasperação da exigência na formulação das conclusões que, devendo ser breves por imposição da lei, não poderiam conter tudo aquilo que a mesma lei exigia: não só os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados [o que já de per si pode ser longo] como as concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida [o que pode tornar muitíssimo mais longo] sobretudo quando, por imposição a mesma lei, estando a prova gravada [e em regra está] por referência ao consignado na acta com indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, o que tudo junto alonga ainda mais o que era suposto ser breve e pode ser [e tem sido] rejeitado se o não for.
Candidatos a estarem sempre mal redigidos, os recursos sobre a matéria de facto tornaram-se candidatos a serem rejeitados. Isto sem ponderar quanto se legislou depois em matéria de rejeição sumária, matando à nascença o que se entenderia não ter viabilidade de vida.
Tudo isto marca o destino que tem, no presente, o exame em recurso da matéria de facto: não é, afinal, um recurso do já julgado apenas do modo como foi julgado: da substância ao procedimento, da apelação ao gravo, afinal.
Citando este explícito Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Maio de 2007 [relator Simas Santos]:

«Como vem entendendo, sem discrepância, este Supremo Tribunal de Justiça, o recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados […].»

Claro que, visto sob este ângulo restritivo, não se trata, afinal, de uma verdadeira reapreciação da matéria de facto, mas apenas de uma análise da razoabilidade do modo como foi apreciada tal matéria, o que é totalmente distinto e está muito longe do que tem sido pensado desde 1987.
Tudo isto está viabilizado pelo Tribunal Constitucional, o qual entende que a garantia constitucional de reexame da matéria de facto não implica necessariamente um novo  julgamento da matéria de facto, podendo o tribunal de recurso limitar-se a verificar se existiu algum erro de julgamento.
 Aqui chegados, eis a recta final desta minha intervenção.
Assinalaram-me como tema o problema dos reflexos deste sistema no que se refere aos direitos de defesa, mas permitam-me que transmita uma sensação de incómodo em abordar esta perspectiva da questão.
Era outrora ponto de honra que um advogado assumisse, por natureza, o tema dos direitos fundamentais, nomeadamente os da defesa. Uma profunda mutação cultural intimida hoje quando se entra por esse ângulo, pois impera actualmente a diabolização do proclamado excesso de garantismo, que logo é invocado sempre contra quem pretenda fazer valer, em nome da presunção de inocência, o direito ao um processo justo através do esgotamento legítimo das vias de recurso, em nome da defesa.
Uma ostensiva  pressão psicológica é também hoje exercida através dos media sobre alguns dos que pretendem fazer apelo aos meios processuais ao seu dispor; assim se argua uma nulidade de um processo com anos de inquérito e eis em cima do autor de tal proeza a fama deprimente de visar, ele agora, o entorpecimento da justiça, o triunfo da criminalidade.
Vivemos hoje uma época em que, para além disso, a jurisdicionalização é tida como atentatória da eficácia, em que a celeridade processual e a estatística do número de decisões é critério universal da boa justiça.
Mais: vivemos um mundo em que uma defesa penal consequente, uma perícia que seja contraditória, enfim o direito aos recursos, são apodados privilégio de abastados, os que podem suportar os elevados custos de advogados, capazes de os conceber como demora pelo diferimento do trânsito e caminho até à prescrição.
Neste contexto, direi que do que se trata, pois, não é dos reflexos que o descrito sistema possa ter no domínio dos direitos de defesa, até porque a jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional já relativizou, e de modo expressivo, a garantia do direito ao recurso que a Constituição considera, no n.º 1 do seu artigo 32º, como ínsita ao direito de defesa.
O que está em causa é, outrossim, a questão da descoberta da verdade judiciária e sobre isto termino.
Numa lógica objectiva e sistémica, a impugnação é instrumento de segurança, apto a gerar uma confirmação do decidido e também garantia de independência para quem julga, pois, por um lado, sabe que julgará em penúltima decisão, por outro, porque não deve obediência hierárquica à jurisprudência firmada em tribunais superiores, antes respeito à doutrina que deles dimane e se possa aceitar.
Para além disso, o recurso é direito a um melhor exame do decidido, o qual é concedido, como garantia constitucional expressa, a quem é afectado pela decisão, isto por se supor que uma deliberação em ulterior instância por colégios de três juízes é mais apta a uma ponderação mais apropriada do que estiver em causa.
Ora um sistema legal que reduziu os colectivos de recurso de três juízes a dois, pois o presidente só intervém em caso de empate [artigo 419º, n.º 2 do Código de Processo Penal], é apto a reduzir a pluralidade que é suposta exigir-se para uma ponderação multifacetada dos temas.
Um sistema legal que já ofereceu de si a pior da sua imagem que é admitir que, inerte o presidente, o relator seja o dono da decisão [eis a expressão que correu] em termos de o segundo membro do colectivo poder assinar sem ter de ler mais do que o decidido, é a mais límpida evidência de que estamos reduzidos à mera singularização, o colectivo passado de três a dois e de dois a um.
Um sistema legal em que, podendo ter ocorrido erro na primeira instância, cerceia as vias de recurso a casos cada vez mais apertados de irrecorribilidade, abre a possibilidade da irremediabilidade desse erro.
Um sistema legal em que, inexistindo renovação da prova, sendo de conhecimento oficioso os vícios da decisão que estão previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, e o conhecimento das questões de prova exijam, sine qua non, o cumprimento exasperante de ónus de redacção das conclusões de recurso, é um modelo que definitivamente restringe o direito ao recurso a uma mera expectativa de se poder efectivamente recorrer.
Tudo isto some-se aos casos em que o recurso está vedado por imposição da lei: aqueles em que há uma pronúncia conforme à acusação do Ministério Público, o referente às indeferidas diligências de instrução, e tantos mais, em que a dosimetria da condenação não o permite quanto às penas parcelares.
Vedando-se o recurso, cerceando-o com dificuldades de formulário, privilegiando-se a revogação sobre a substituição, mais do que atentar-se contra a defesa, põe-se em causa a busca da verdade.
E se não vejamos quanto à verdade, na forma de uma pergunta: em quantos casos em que, tendo havido, por via da anulação, repetição do julgamento, não se obteve neste afinal uma outra versão dos factos, quando não mesmo uma outra história, diversa da que resultou do antecedente julgamento?
Do ponto de vista gnoseológico, o sistema de recursos deveria permitir, reexaminando o julgado, uma melhor, uma mais rigorosa e mais exacta reconstituição do real, como se numa epistemologia genética, o conhecer se alcançasse pela reiteração da observação.
Infelizmente não é este o balanço que se extrai.
No que se refere aos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça penso que esta expressão extraída de um Acórdão deste Tribunal proferida a 31 de Outubro do corrente [relator Nuno Gomes da Silva] traduz do que se trata:

«A ideia que atravessa o sistema na parte dos recursos é a de que o STJ é um tribunal de “fim de linha” – passe a expressão em benefício da clarificação da ideia – cuja competência no tocante aos recursos ordinários está reservada para situações sobre a apreciação do mérito, a justiça da condenação – e mesmo assim com constrições várias – ou em que o acto decisório ponha termo definitivo ao processo, que encerre a relação jurídica entre os sujeitos processuais, seja por razões de natureza adjectiva, seja por razões de natureza substantiva. Por isso se lhe atribui a função de tribunal de revista, como inequivocamente ressalta do art. 434º, do CPP.»

Assim sendo, e vista a limitação colocada ao juízo sobre o mérito nos recursos em ulterior instância, a juntar a esta configuração da competência do Supremo Tribunal de Justiça, não será de estranhar a pressão que existe sobre os recursos de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional.
Termino agora, enfim.
Fiz parte da Comissão de cujo labor saiu o Projecto que se transformou no Código de Processo Penal de 1987. O que vi pretender-se com esse Código ficou acima expresso. Aquilo em que tudo se tornou é de todos conhecido e aflora nesta minha intervenção.
Encontro-me, pois, com as palavras do presidente dessa Comissão, Jorge Figueiredo Dias quando, sob o título Por onde vai o processo penal português, afirmou ante o facto de a revisão constitucional ter aditado ao n.º 1 do artigo 32º da Lei Fundamenta, além das garantias de defesa, a expressão «incluindo o recurso»:

«Isto significa que o direito a um recurso é manifestação jurídico-constitucionalmente vinculante de um direito, liberdade e garantia de defesa. Ela não pode ser posta em causa em hipótese alguma, mesmo sob a alegação de que se verifica in concreto uma qualquer outra garantia de defesa sucedânea legalmente admissível. Sempre que, num concreto caso judicial de qualquer espécie, a lei denegue ao arguido condenado o direito a um recurso, a lei é materialmente inconstitucional e não pode como tal ser aplicada».

Ora esse vedar o direito a um recurso pode resultar de lei que o impeça; mas pode também decorrer de exigências de entendimento processual que o torne afinal inviável. Eis quanto procurei demonstrar.
Mas num sistema em que a prisão preventiva é amiúde, por antecipação, a prisão, a sujeição a processo, em miscigenação com a comunicação social, a condenação, em que afinal o mal do processo se substituiu, em retroacção, ao mal da pena, em que o processo em si passou a ser a realidade relevante no domínio jurlídico-criminal, espanta que, em matéria de recursos, a justiça cuide mais do procedimento que levou à decisão do que, afinal, do próprio decidido? Não, não espanta.

A partir daqui, estando em dúvida o bom Direito, talvez um preceito moral nos salve a má consciência: não julgues os outros como não gostarias que te julgassem a ti. Assim seja lei e jurisprudência, assim encontraremos mais justiça.

Dupla conforme em processo civil


O tema é actual. Trata-se de um estudo de Rui Pinto, professor na Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, publicado este mês na revista Julgar sob o título Repensando os requisitos da dupla conforme (artigo 671.º, n.º 3, do CPC). A análise converge com o que se passa no domínio do processo penal, nem que seja como tema de comparação. O texto integral está acessível on line, clicando aqui.
Cita-se, para melhor referência, o sumário:

1º. Introdução. § 2º. Requisito subjetivo: ausência de voto de vencido. § 3º. Requisitos objetivos. 1. Conformidade decisória. 1.1. Objeto. 1.2. Critérios de aferição da conformidade decisória: critério da coincidência formal e critério da coincidência racional. A) Exposição. (Continuação). B) Apreciação crítica do critério da coincidência racional, em especial da inclusão quantitativa; posição. (Continuação). C) Continuação: rejeição da conformidade por inclusão qualitativa, em especial. 2. Conformidade essencial de fundamentação. 2.1. Fundamentação de direito. 2.2. Fundamentação de facto. § 4º. Algumas reflexões finais.

Ministério Público: silêncio ante os inocentes

De acordo com notícias, a Procuradoria-Geral Distrital do Porto teria emitido instruções vinculativas no sentido de o Ministério Público não pedir a absolvição nos casos de crimes mais graves, de modo a garantir a unidade de actuação daquela entidade e por forma a não comprometer a possibilidade de recurso em caso de absolvição decretada pelo tribunal.
Segundo tais notícias, tais instruções decorreriam de decisão tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça, em sede de uniformização de jurisprudência, quando determinou no seu controverso Acórdão de 16.12.2010 [proferido no processo n.º 287/99.0TABJA-B.E1-A.S1, relator Santos Cabral, com cinco votos de vencido, ver texto integral aqui] que «Em face das disposições conjugadas dos artigos 48° a 53º, e 401, do Código de Processo Penal o Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.»
Tenho as maiores dúvidas quanto à legalidade deste entendimento por parte da acusação pública, incompatível com o proclamado princípio da objectividade, no qual o Ministério Público tem fundado a sua posição de magistratura, a sua autonomia e a sua isenção. Desse princípio que está vertido, aliás, expressamente no Código de Processo Penal, decorre que não lhe caiba apenas fazer vingar uma acusação, mas actuar no sentido que possa ser inclusivamente útil para a defesa e até, ao limite, recorrer no interesse da defesa [artigos 53º, n.º 1 e 401º, n.º 1, a) do CPP].
Ora tais instruções o que significam numa lógica defensiva, é amputar esta vertente a favor de uma outra em que, rematando o Ministério Público a sua posição final no julgamento por um pedido de «justiça», os magistrados da primeira instância deixem em aberto, ao nada mais dizerem que os comprometa, a possibilidade de haver recurso, pelo próprio Ministério Público, de uma absolvição com a qual, em consciência até poderiam estar de acordo, mas não podem, afinal, exteriorizar.
Ou seja, e não posso deixar de interpretar as coisas deste modo, para que o Ministério Público possa recorrer de uma absolvição é melhor os seus procuradores calarem que até concordariam com ela.
Trata-se, além do mais, e por decorrer tudo isto de instruções recebidas através da hierarquia, de uma prevalência da autoridade interna sobre a liberdade de consciência de cada procurador, também aqui em detrimento de lei expressa [artigo 79º do Estatuto do Ministério Público].
Além disso, estando em causa uma orientação de uma Procuradoria-Geral Distrital e não da Procuradoria-Geral da República, cria-se uma assimetria e desigualdade de critério o que só põe em causa a igualdade e a segurança jurídica que são princípios fundamentais do Estado de Direito.
Enfim, tratando-se de algo que terá sido circulado internamente e não publicitado para conhecimento de todos, fica em aberto o carácter secreto da determinação que nem sequer para os que assumem o papel de assistentes no processo - e assim de auxiliares do Ministério Público [artigo 69º, n.º 1 do CPP] é conhecida nos seus termos exactos de forma a saberem com o que podem contar em matéria de interpretação da expressão ou do mutismo processual da acusação pública quanto à absolvição ou condenação. 
A nova doutrina sabe-se pelos jornais, o que já se tornou um clássico.

Notícias ao Domingo!


-» Conselho Superior da Magistratura/Regulamento: foi publicado o Regulamento do Conselho Superior da Magistratura, revogando o que estava em vigor desde 1993. O texto pode ser lido aqui.

-» Blawgs/Vexata Quaestio: entre os blogs  jurídicos que surgiram [e a designação blawgs quadra bem à sua designação] e tantos foram, os que se finaram, e isso a imensos sucedeu, o Vexata Quaestio [ver aqui] mantém-se. Blog jurídico, de facto, presta um importante serviço público. Celebrou onze anos esta semana que agora finda. Muitos parabéns e longa vida!

-» Acórdão do TConst/defesa em fase de reenvio: o Acórdão do TC de 3 de Novembro de 2916 [relator João Pedro Caupers, texto integral aqui] estatuiu que não são julgadas inconstitucionais as normas conjugadas dos artigos 315.º e 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de não ser de conceder prazo de defesa ao arguido, para apresentação de contestação e rol de testemunhas, no âmbito da decisão de reenvio para novo julgamento por tribunal superior. Com efeito, o objeto do processo fixa-se em momento processual anterior ao da audiência de julgamento, com a dedução da acusação e/ou decisão de pronúncia, sendo evidente que a anulação do julgamento não importa qualquer modificação do objeto do processo, que se mantém essencialmente uno e idêntico em todas as fases do processo penal e sendo exatamente igual a matéria sobre a qual o arguido teve a possibilidade de se pronunciar e produzir prova e aquela sobre que recairá, por força da decisão de reenvio, o novo julgamento. Nestes termos, mantendo-se a instância estável, não pode o arguido, a pretexto da decisão anulatória do tribunal superior, pretender fazer o que não fez em tempo oportuno, contestar e arrolar testemunhas.

Sustentando a sua fundamentação, considerou o TC que: «impondo a Constituição que a causa penal seja objeto de apreciação e decisão judiciais no «mais curto prazo» (artigo 32.º, n.º 2), e não apenas «em prazo razoável», como exige para os demais processos judiciais (artigo 20.º, n.º 4) - sendo à luz desta particular exigência, e dos valores que a justificam, que se deve entender a estruturação faseada e progressiva do processo penal -, não se vê como sustentar, no plano constitucional, a reivindicação, por parte do recorrente, de um novo prazo de defesa, para apresentação de contestação e rol de testemunhas, quando já lhe foi reconhecido, no processo, o direito processual de contestar os factos imputados na acusação e carrear prova que demonstre a sua inocência, e há muito que decorreu o prazo legal previsto para o efeito.»

-» AC/efeito dos recursos: segundo se informa no site respectivo [ver aqui]: «O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, em acórdãos de 11 de outubro e 27 de outubro de 2016, que os recursos de decisão interlocutória da AdC não têm efeito suspensivo, mas sim efeito meramente devolutivo. A AdC vê agora confirmado o seu entendimento de que, sem prejuízo da normal sindicância de quaisquer atos da AdC, a Lei da Concorrência prevê expressamente que a investigação de uma determinada infração não fica prejudicada pela litigância que possa existir durante o procedimento, sob pena de paralisação das investigações em curso.»

OA/Estatuto em e-book: a Ordem dos Advogados Portugueses acaba de publicar o seu Estatuto em formato ebook. Pode aceder-se a ela aqui.

-» Leituras/Media, Corrupção Política e Justiça: coordenado por Inês Ferin Cunha e Estrela . São estudos sobre a relação entre os media e a justiça nomeadamente na cobertura por aqueles de processos relativos a processos de corrupção efectivados pelo Centro de Investigação Media e Jornalismo.
Análise casuística em grande parte dos trabalhos, a partir de determinados processos denominados "mediáticos" (António João Maia, Patrícia Contreiras e Èrica Anita Baptista, Brun Bernardo de Araújo e Helder Rocha Priro, Mafalda Lobo, Lorela Broucher), só algumas das análises se propõem uma avaliação global da questão (Estrela Serrano, do Centro de Investigação Media e Jornalismo e Bruno Paixão, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra). 
O universo em análise cobre o período de 2005/2012. 
Alguns dos trabalhos focam a problemática do segredo de justiça e da natureza diversa da investigação jornalística e da investigação criminal, bem como a problemática da admissão dos jornalistas como assistentes em processo penal.
A obra foi editada este ano pela "Mariposa Azul".