Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




A banalização do Direito Penal

A Associação Jurídica «Direito e Justiça» de Setúbal deu-nos a honra de convidar para participar num colóquio dedicado à justiça penal.
Não tomarão como sintoma de vaidade que arquive aqui alguns excertos do que sugeri como tema de reflexão para esse fim de tarde. Começando pelo que julgo sera a banlalização do Direito Penal.

«Banalizou-se [o Direito Penal], porque entrou a funcionar como instrumento de garantia da consecução das medidas políticas e de administração dos governos, ao estender-se à tutela dos réditos fiscais e da segurança social, à tutela da economia e do mercado, perdendo o seu carácter fragmentário para se tornar, diversamente, expansionista, apto a invadir a totalidade das relações sociais.
Banalizou-se de tal modo conscientemente esse Direito Penal que, já a uma larga zona de si se intitula como sendo o Direito Penal «secundário», como se aquilo que se diz ser a última razão, não tivesse de ser, em coerência de princípios, sempre um Direito primário, nunca um Direito secundarizado, com uma dogmática própria que só subsidiariamente faz apelo aos princípios reitores do Direito Penal comum, espraiando-se fora dos códigos, em legislação extravagante, como outrora as contravenções, agora em irmandade concursal com as contra-ordenações, figuras suas primas, às vezes mais prendadas e prometedoras de resultados.
Um dos sintomas dessa banalização é a perda de critério de referência. Quando se diz e já foi dito que os crimes aduaneiros são mais graves do que o tráfico de droga, pois colocam em crise os pilares das finanças do Estado, minando-lhe o sustentáculo económico do Governo, é não só porque se interiorizou uma lógica mercantilista e burguesa, para a qual os valores patrimoniais se sobrepõem aos pessoais, como se demonstra uma lógica de autoritarismo, segundo a qual pesa mais o interesse do Estado do que a valia da pessoa humana; mas sobretudo, fica a nu que a desregulação já conduziu à trivialidade argumentativa, o menos alçado a mais, o arbítrio a surgir da perda da tramontana normativa.
O Estado administrador torna os tribunais criminais cobradores de tributos sob a ameaça do cárcere, como os cobradores de fraque cobram dívidas sob a ameaça do escândalo! O Direito Penal ressente-se, instrumentalizado. A demonstração da falta de fundamento do sistema resulta quando, na mira de encaixes financeiros a curto prazo, se acena com a regularização tributária como forma de agraciamento pela suspensão provisória, esquecidos os grandiloquentes princípios pelos quais ontem se clamava pela punição exemplar dos relapsos. O Estado que foi buscar aos paióis as armas do Direito Penal para a guerra contra a evasão fiscal, espera que os generais da sua justiça assinem pactos de armistício em que se tratem mais dos negócios dos despojos do que dos fins últimos em nome dos quais se comprometeram exércitos regulares no que parecia ser uma guerra santa.
Não menor sintoma da banalização do Direito Penal é ele ter passado a funcionar numa lógica populista, em que a política criminal decorre da agenda mediática, em que as expectativas punitivas da comunidade e o próprio alarme social são induzidos pela propaganda da comunicação social, tantas vezes fábrica de vilões, essa crónica dos bons malandros, em que todo o sistema está condicionado. A existência de comentadores públicos de casos penais não torna a justiça perceptível a todos, torna-a incompreensível no que decida aos olhos de cada um, faz de cada espectador um possível juiz, quando não torna cada juiz num obrigatório espectador do que julgou e do que vai julgar, nivelando por baixo, num condicionamento mútuo em que os tribunais e os media entre si repartem o «share» da melhor audiência e do espectáculo de maior agrado.
Prender, neste contexto passou a ser uma manifestação de importância do caso, uma forma de concitar assim sobre ele a atenção comunitária, mesmo que ao limite não venha a haver outra prisão do que a preventiva. Eis onde estamos, com honrosas excepções [continua...]