O Instituto de História Contemporânea, da Universidade Nova de Lisboa efectivou hoje um Seminário sobre Fontes Documentais para a História da Justiça no Portugal Contemporâneo. Convidado a falar sobre os arquivos privados apresentei esta brevíssima reflexão. Escrevê-la ontem e dar dela conta hoje, ainda que por interposta voz, a manhã ocupada com a profissão e seus horários, marca o teimoso reacender da intermitente chama do entusiasmo e a organização de alma sem a qual não há espírito que resista. É um texto pobre mas é melhor do que as circunstâncias que permitiram produzi-lo. Amanhã será melhor.
Antes de mais uma palavra de honradez: eu deveria estar aqui em pessoa e não subrogadamente pela gentileza de quem me lê, e quem deveria aqui estar e a quem eu tributo a mais amiga homenagem de respeito e muito apreço, seria o meu amigo Luís Bigotte Chorão, ele sim especialista porque amigo da História e de quanto a documenta. A ele devo uma breve conversa, já em aflição ante o meu encontro com o tema, e tudo só envergonha o meu escasso saber e o atrevimento de ter aceite o repto, seja, o vosso embaraço final que já prevejo à distância.
Julgo que o tema que me é proposto pode ser desdobrado nas seguintes três vertentes.
Em primeiro lugar, e vai nisto já uma deformação profissional de jurista, a definição do que sejam arquivos privados.
Em segundo lugar, um esboço enunciativo de onde possam estar arquivos com tal natureza.
Enfim, alguns problemas que sejam privativos dessa espécie de arquivos, atenta a natureza dos documentos que os integram.
São mera pistas de reflexão as que ficam. E ao fazer assim permito-me pensar que terei cumprido, o que melhor que sei, o propósito que presidiu a quem entendeu que poderia ser útil dar-me a palavra.
Comecemos pela definição.
Penso que o senso comum apontará para a ideia quase lapalissiana de que serão privados os arquivos que não pertençam a entes públicos.
Só que este modo de entender abre a porta a uma questão: que natureza terão os espólios que, oriundos de privados, e por conseguirem escapar aos trambolhões da lei sucessória e às batalhas hereditárias em que se misturam a cupidez e o desprezo familiares, conseguem ter a sorte de ser depositados em arquivos públicos? Ou seja, arquivos privados na origem mas públicos pelo seu destino final? Manterão a natureza da sua génese, a da sua certidão de nascimento, ou ganharão aquela etiqueta do lar oficial de acolhimento?
Não se diga que a questão é puramente conceitual, sem relevo prático, pois que, estando os arquivos públicos sujeitos a estritas regras legais atinentes ao seu funcionamento, acesso à informação e sua difusão, bem pode concluir-se, conforme seja a solução dada ao problema da definição, poder haver aqui uma regra de absorção que dita que, uma vez integrados no acervo do património cultural público, tais arquivos perderiamm a natureza de privados em sentido estrito que detinham até àquele acto.
E, assim, como decorrência, a autonomia da vontade que governava a sua existência, em que a palavra do seu titular ou dos seus herdeiros era a única lei válida a geri-los, com os limites óbvios atinentes aos direitos de terceiros, perderia agora sentido ante a incorporação em entidade pública, para tudo ficar sujeito ao que fosse a regra válida para os arquivos de natureza pública.
Vistas as coisas neste ângulo, desclassificando como privados os espólios integrados já em arquivos públicos, menor seria o seu número e talvez mais fácil, porque mais reduzido, o objecto do nosso estudo. A preguiça do ignorante levaria a aceitar esse critério. Mas há o escrúpulo intelectual do rigor e as boas maneiras!
Creio, assim, que critérios documentalísticos deverão prevalecer sobre as regras estritamente jurídicas. E assim, considero terem natureza privada os arquivos cuja génese pertença a pessoas, singulares ou colectivas, de natureza privada, ainda que, pelas vicissitudes da vida ou da morte de quem detinha a sua titularidade, os mesmos acabem por ser recolhidos por organismos de natureza pública mas mantenham ali autonomia de existência.
E porquê? Porque de algum modo a titularidade do arquivo acaba por determinar o perfil, donde a natureza e, por osmose, a própria regra de funcionamento do acervo respectivo, diferenciando-o daqueles outros que logo na sua formação tiveram mão pública a ditar-lhes o conteúdo e a organização; acessório, e por isso não determinante, será a natureza dos documentos que o integrem, pois nada exclui que um privado junte em vida, e assim compile, documentação de cunho oficial e por isso pública.
Claro que nada disto é isento de dúvidas: os arquivos paroquiais que se integraram, pela mão de Alexandre Herculano, na Biblioteca Pública Municipal do Porto, que natureza terão hoje? E o Arquivo Oliveira Salazar na parte em que não está abrangido pela cota “CO”, Correspondência Oficial? E os de todos os entes fundacionais ou associativos que detenham utilidade pública, por contribuírem, com a sua existência, para a aculturação que é um bem patrimonial fundamental da Humanidade do Espírito?
Posta assim a questão, que transporta para a esfera privada em sentido amplo aquilo que, fosse outro o critério, estaria dela subtraída, passemos à questão do elenco possível dos arquivos privados, centrando-nos nos espólios que estão hoje disponíveis para consulta pública institucionalizada.
E se digo “possível” é porque muitos deles estão fora do conhecimento comum e acabam por ser apenas conhecidos pelos especialistas em sectores determinados da investigação, ou iniciados com acesso privilegiado às famílias ou aos detentores de tais tesouros documentais e ainda os frequentadores de alfarrabistas, adelos e “sebos” aqueles que fazem, afinal, do “andar ao papel” vício, paixão, profissão, negócio por vezes.
Peço licença para que os próximos momentos sejam de tipo meramente exemplificativo, a convidar quem seja historiador a retomar, de modo organizado, isto que aqui fica a esmo, a evidenciar a brutalidade da minha ignorância.
Assim, na Biblioteca da Ordem dos Advogados, e começo pela minha casa, na secção de Fundos Documentais Especiais, encontram-se o espólio do Bastonário Adelino da Palma Carlos e de sua mulher, Elina Guimarães e também parte do Bastonário José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães (parte deste confiado igualmente à Biblioteca Nacional), ambos a aguardarem tratamento documental e bem assim do Bastonário Vicente Rodrigues Monteiro, que compreende documentos entre 1927 e 1936.
Na Procuradoria-Geral da República está guardado o espólio de Cunha Gonçalves, do Procurador-Geral Arala Chaves e do Procurador-Geral Pinheiro Farinha.
Na Biblioteca Nacional encontra-se, que esteja divulgado como tal, como se disse parte do espólio de José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães e o de Abranches Ferrão.
Relevante também o conteúdo da Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, nomeadamente na parte em que se arquivam espécimes de Paulo Merêa e Beleza Santos, e numa menor medida, que eu saiba, o da Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, nomeadamente documentos oriundos dos seus professores Paulo Cunha e Marcello Caetano.
E do mesmo modo é a Torre do Tombo onde se encontra, o que surpreenderá os menos informados, por exemplo, parte relevante do espólio do Bastonário Adelino Palma Carlos.
Na Fundação Mário Soares, e aqui outrem falará por mim com conhecimento directo de causa, encontram-se documentos de muitos dos que exerceram actividade política, como Afonso Costa, e por isso mais centrado nesta vida pública que não na advocacia que exerceu também. E a Universidade do Minho guarda, para além da Biblioteca, muita documentação jurídica daquele que foi o meu patrono na advocacia, Francisco Salgado Zenha, um marco obrigatório na cidadania e na dignidade da profissão.
E, eis-nos, no último tópico da comunicação que – perdoe-se a estultícia – creio ser o mais relevante, o a problemática específica dos arquivos particulares.
Logo a primeira é serem eles fruto dos interesses próprios de quem os organizou, sendo, ou uma acumulação de papéis oriundos de uma actividade profissional, amiúde sem preocupação de sistemática ou sequer de ordem, ou a tradução de um espírito de colecionismo, em que a norma é a soma de tudo o que relevou para um certo sector da vida, muitas vezes com lacunas decorrentes do não acesso à espécimen que preencheria o hiato documental ou a circunstância de o móbil que presidiu à incessante procura ser o espírito de lucro através do comércio de antiquário ou de alfarrabista.
Gera isso uma necessária prevenção porque sempre estaremos ante uma fracção da realidade, amputada pela natureza das coisas ou pelas vicissitudes da vida. E, no entanto, quanto se tem escrito, até do campo fértil da fabulação romanesca, tomando a parte pelo todo juntando ficção àquilo que já o ser-se “económico com a verdade”.
Daqui decorre a natureza quantas vezes fragmentária de tais arquivos, porque quem os deteve e lhes deu origem teve menos preocupação em organizar um universo total de documentos respeitantes a um certo momento da existência, ou foi alheio à truncagem e assim ao parcelamento do universo documental, através da alienação de espécies mais valiosas e, por isso, mais rentáveis financeiramente.
Arquivos que os próprios descendentes consideram destruídos porque jogados ao acaso do adelo acabam por entrar no mercado dos papéis e integram hoje o armazém avaro dos que os juntam e aferrolham sem porquê, subtraindo à investigação o alimento de que carece para subsistir e medrar.
Outra característica tem a ver com a natureza instrumental de tais acervos relativamente a uma finalidade profissional que presidiu à sua constituição e assim não será de espantar que deles constem apenas o que interessou para o precário momento em que a memória se formou, em que o acontecimento documentado relevou, em que ficou o apontamento, a súmula, o extracto, aquele farrapo de vida que é um pedaço amputado da própria História.
E isso obriga a que, não desconsiderando o documentado, lhe atribuamos sempre um valor relativo pois que parcelar é o objecto que constitui, parte da verdade, isto se é que o passado não é tão incerto que, ante ele, faça mais sentido falarmos em verosimilhança do que em veracidade, em que se nos oferece apenas uma contra-memória, oponente, adversarial, antagonista porque litigante, relativa pois.
Enfim, e agora entramos no campo da delicadeza, trata-se amiúde de material sensível, atinente a relações humanas frequentemente conflituosas, sobre temas em que as vertentes da intimidade estão presentes, em que pulula por isso a incerteza quanto a veracidade do documentado quando não do próprio documento e sobre a dúvida radical quanto à ética da sua utilização.
A apetência historiográfica pelos arquivos, por exemplo de advogados, em relação a processos célebres, tem de ser temperada por apertadas regras prudenciais em relação ao que integra o seu conteúdo, regras essas e que orientem o espírito para uma lógica permanentemente dubitativa sobre o seu teor, completude e fidedignidade. E sobretudo de decência no que respeita à difusão do que por ali se encontra.
Talvez por isso mesmo alguns advogados em fim de existência confiem à destruição os dossiers que em vida fizeram, pelo seu teor, os seus pesadelos e o sonho de ansiosos polícias, para que traço não fique para terceiros do que foram segredos profissionais de que foram guardiões, moral de um tempo em que o escritório de um causídico partilhava com o confessionário a regra do vinculante sigilo da confissão auricular dos pecados.
Mas não só de papéis de advogados, porque um processo judicial, volume em folio que o é de papéis de diversa origem não é, só pela sua intrínseca natureza oficial, mais verosímil ou mais fiável. E não contém informação menos letal para a probidade, honra e consideração social ou o que disso resta no mercado de valores contemporâneos.
Eis, a findar, o momento atinente ao admirável mundo novo, digitalizado, em que juntamos a acumulação exponencial de informação e a facilidade de encriptação que torna esses arquivos, e dos privados falamos, absolutamente inacessíveis quando não sujeitos à inexorabilidade da tecla “delete”.
Tempos houve em que era possível ainda armazenar o que ficava de cópias de correspondência enviada, originais da recebida, minutas do que acabaria por ser levado a letra de forma. Hoje tudo isso são memórias computacionais invisíveis, de aparente eternidade mas de tão evidente precariedade.
Ante isso pergunto se será o ciberespaço o arquivo universal eterno com que sonharam os conservadores de documentos, poupado ao perecimento do papel, ao extravio da folha, aos limites do armazenamento? Sim. Assim não ocorra uma tempestade solar, se invertam os pólos magnéticos e tudo quanto confiamos à digitalização se não torne o zero total, o absoluto vazio, a total ausência de memória!
Obrigado pela vossa atenção. Cada jurista que morre é um arquivo que se perde, o da sua memória, o da tumultuosa vida que viu viver, doce e amarga, chã e torrencial. Indocumentada, sem traço nem prova, a vida vivida no sobressalto do oculto e do esquecido. Como li num jornal cultural este mesmo fim-de-semana, porque a História trata de heróis, a memória de vítimas.