É este o texto oficial do veto do Presidente da República à iniciativa governamental sobre o acesso pela Autoridade Tributária a contas bancárias. Aditámos entre parêntesis as ligações aos diplomas legais citados, para melhor referência. A ideia é que a discussão em torno do tema se faça em termos de conhecimento rigoroso e assim objectivo do que está em causa.
“Senhor Primeiro-Ministro,
1. O presente Decreto é fundado em autorização legislativa concedida pela Lei do Orçamento do Estado para 2016.
2. Na parte em que cumpre obrigações resultantes de transposição de regras europeias (Diretiva 2014/107/UE, do Conselho, de 9 de Dezembro) [ver aqui] ou do acordo com os Estados Unidos da América (Foreign Account Tax Compliance Act) [ver aqui e aqui], é indiscutível.
E corresponde a fundamentais exigências de maior transparência fiscal transfronteiriça, defendidas pela OCDE, visando controlar quem tenha contas bancárias em Estados diversos daqueles em que reside ou declara residência fiscal.
3. Simplesmente, o decreto vai mais longe e aplica o mesmo regime de comunicação automática às contas em Portugal de portugueses e outros residentes fiscais no nosso País, mesmo que não tenham residência fiscal nem contas bancárias no estrangeiro.
Limita-a a saldos de mais de 50.000 euros, mas não exige, para sua aplicação, qualquer invocação, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, designadamente, de indício de prática de crime fiscal, omissão ou inveracidade ao Fisco ou acréscimo não justificado de património.
4. Relativamente a esta segunda parte do Diploma suscitaram-se objeções de vária natureza, olocadas por variados quadrantes políticos e institucionais:
1.º Que esse alargamento a portugueses ou outros residentes, incluindo sem qualquer atividade fiscal ou bancária fora de Portugal, não era imposto por nenhum compromisso externo.
2.º Que existem já numerosas situações em que a Autoridade Tributária e Aduaneira pode aceder a informação coberta pelo sigilo bancário, sem dependência de autorização judicial, nomeadamente quando existam indícios de prática de crime em matéria tributária, de falta de veracidade do declarado, de acréscimos de património não justificado.
3.º Que a Comissão Nacional de Proteção de Dados, no seu Parecer de n.º 22/2016, de 5 de Julho de 2016 [ver aqui], questionara a conformidade do novo regime, na parte em causa, em especial com o princípio constitucional da proporcionalidade, ou seja, o uso de meios excessivos - por falta de regras especificadoras de indícios ou riscos justificativos - no sacrifício de direitos fundamentais, num contexto em que já existiam outros meios de atuação da Autoridade Tributária e Aduaneira, sem necessidade de decisão de juiz.
E que a aludida objeção da Comissão Nacional de Proteção de Dados não tinha sido ultrapassada com os ajustamentos pontuais introduzidos na versão definitiva do diploma, conforme esclarecimento divulgado pela mesma a 13 deste mês.
4.º Que, de acordo com dados publicamente disponibilizados por entidades atuando no setor, o novo regime para residentes em Portugal, sem residência fiscal ou qualquer conta bancária no estrangeiro, era, nos seus termos, mais irrestrito do que o vigente na maioria dos Estados-membros da União Europeia. Ou porque nestes Estados não há qualquer controlo automático, ou há de abertura de contas mas não de saldos, ou o limiar é mais elevado, ou se formulam exigências e regras de acesso e controlo inexistentes no presente decreto.
5.º Que a inovação legislativa não fora precedida do indispensável e aprofundado debate público, exigido por uma como que presunção de culpabilidade de infração fiscal de qualquer depositante abrangido pelo diploma, independentemente de suspeita ou indício.
5. Sem embargo da relevância que possa ser atribuída às diversas objeções enumeradas, a decisão tomada quanto a este decreto baseia-se, antes do mais, na sua patente inoportunidade política.
Vivemos num tempo em que dois problemas cruciais, entre si ligados, dominam a situação financeira e económica nacional.
O primeiro é o de que se encontra ainda em curso uma muito sensível consolidação do nosso sistema bancário. O segundo, com ele intimamente associado, é o da confiança dos portugueses, depositantes, aforradores e investidores, essencial para o difícil arranque do investimento, sem o qual não haverá nem crescimento e emprego, nem sustentação para a estabilização financeira duradoura.
É a pensar, desde logo, nestas razões, antes mesmo de se equacionar as obrigações da não vinculação externa, da necessidade, retroatividade e proporcionalidade do novo regime, do seu cabimento constitucional, da comparação internacional, ou de escasso debate público, que considero ser um fator negativo e mesmo contraproducente, para a presente situação financeira e económica nacional, a adoção do novo regime legal, na parte em que não corresponde a compromissos europeus ou internacionais.
Tendo em conta estes argumentos e nos termos do Artigo 136.º, n.º 4 da Constituição da República, devolvo ao Governo, sem promulgação, o projeto de Decreto-lei registado na Presidência do Conselho de Ministros sob o número 127/2016, que regula a troca automática de informações financeiras no domínio da fiscalidade.
Marcelo Rebelo de Sousa”