Manda a honradez que diga: seja eutanásia, seja morte assistida, tudo quanto seja a vontade de uma pessoa sobre a sua própria sobrevivência ou a vontade de outros, subrogando-se à do próprio, encontra em mim um fundo reflexo de rejeição.
Poderia ser religiosa essa recusa, assim eu tivesse religião de que me reconhecesse fiel; ou ideológica, assim houvesse estrutura político a que pertencesse; ou filosófica, fosse membro de agrupamento com tal natureza. Não é. Trata-se da expressão existencial, diria, de uma reflexão pessoal e íntima. É um problema de mim comigo mesmo.
Não é, porém, resultado de individualismo; antes pelo contrário, exprimo o que verifico ser tanto da sociedade concreta em que estamos.
Primeiro, um princípio que não consigo ultrapassar: a nossa vida não nos pertence. O próprio verbo pertencer com a carga possessória que arrasta, é alheio e ofensivo àquilo de que estamos falando: o ser humano é insuceptível de apropriação, à liberdade junta-se, como sua essência, a dignidade que o impede.
Não tendo o amparo transcendental de um Ser que seja da vida origem e destino, julgo, no entanto, que, sem que tantas vezes tenhamos disso consciência, a nossa vida faz sentido para quantos nesta Terra nos tomam como amparo e referência, aqueles para quem somos arrimo, os outros que a nosso lado comungam da mesma luta pela sobrevivência e por ideais que tentem garantir um melhor mundo. Só quem não viveu a dor solitária e anónima de alguém a quem a ausência de outrem é vazio e desespero relegará este princípio para a categoria das secundárias circunstâncias da pieguice.
Segundo, vivemos a tragédia de um mundo em que no interior de tantas famílias se semeou a violência e a agressão, o egoísmo e a cupidez, famílias em que, na hora da herança a dividir-se, mostram os dentes da sua verdadeira natureza feroz, famílias para quem os velhos e os doentes são um fardo insuportável ou um tempo inútil até à abertura sucessória.
Mais: vivemos uma circunstância histórica em que a vivência doméstica se faz, para tantos milhares, em casulos raquíticos onde se acumulam, em sobreposição explosiva, a geração antecedente e a subsequente, em promiscuidade, sobrecarga de encargos, ante a penúria de meios, somando ressentimentos e alienações.
Como não pensar que, para esses amaldiçoados pela carência, o doente terminal não esteja para além dos limites da suportabilidade e uma janela que a lei abra possa surgir como uma forma, cruel que seja, dolorosa mesmo para a própria consciência, de libertação?
Não só nas famílias, porém. Temos hospitais sobrelotados de doentes e a urdir-se, uma lógica que campeia em certa doutrina administrativa em que se pondera, como vector da racionalidade gestionária do sistema, o custo doente/cama ocupada/expectativa de sobrevivência.
Como não temer que, nesta perspectiva mercantilista das coisas surja quem, em pura aritmética, sobrepese o encargo público dos casos perdidos e onerosos, face à possibilidade de alocar meios aos que, em selecção dos mais aptos, ainda possam ser convenientemente assistidos?
E não digam que há fantásticas famílias e notáveis profissionais de saúde, estóicos, dedicados, jogando amor e esforço para além de todos os limites e vencidas as exigíveis obrigações. Sei que sim, mas não é por esses que os demais deixam de existir. E, em verdade, sabemos que existem, uns e outros.
Enfim, há, seguramente, a dor, a doença que martiriza o corpo e rasga de comoção a sensibilidade de quantos a isso assistem. Convocar-se-ão aqui os argumentos dos bons sentimentos, a alegação de que uma morte moralmente higiénica gera a assepsia nos remorsos possíveis. E se medicamente legitimada, se desejada pelo próprio ou por alguém por si, se confirmada a vontade, o que haveria então a barrar o caminho a esse abreviar do fim, condenados que estamos, afinal, todos, a ir deste local transitório onde ganhámos forma humana pela vida que nos deram?
É este o ponto nevrálgico do problema. À moral sacrificial, em que se assume o destino, cruel que seja, até ao último alento, sucedeu hoje o hedonismo pelo qual, breve que é, e passageira, a vida é para ser gozada e, triunfo do reino da quantidade, quanto mais, melhor.
Como pedir aos que carregam já a sua carga de responsabilidade e de traumas que coexistam com mais este esforço derradeiro e garantam a uma vida a escoar-se a naturalidade de finar-se no momento em que tiver de ser, sem mão humana que corte do fio invisível o laço que a sustenta?
Chegado aos 67 anos já vi a morte nos olhos. Sobrevivo, tendo visto morrer. Por nada deste mundo desejaria ter de decidir. Chamaria a mim a dor terminal alheia para não ter que sofrer a dor de a suprimir, eliminando a vida dolorosa.
Sei que vem aí um projecto legislativo sobre a matéria pelo qual a morte voluntária passa a ser possível. Sei que quanto escrevi tem pouco de jurídico, no sentido esquálido e descarnado a que o positivismo reduziu o Direito. Tenta, porém, em apelo vindo das entranhas de mim, ser o que de humano o Direito tem de supor ou eu, sem isso, não o entendo.