As autoridades inspectivas, reguladoras e disciplinares tomam o que a comunicação social diz estar a passar-se nos processos criminais para inaugurarem procedimentos e, ao limite, tomarem medidas. O círculo dos comprometidos aumenta, a danosidade dos efeitos progride.
Os visados, receosos amiúde de que seja prejudicial virem discutir na comunicação social o que se passa nos processos criminais em que são intervenientes, esclarecendo, desmentindo, rebatendo, permitem, como o seu silêncio, que fique para a opinião pública aquilo que a comunicação social quer que seja tido como a realidade, aquilo que os processos criminais permitem que seja assim conhecido.
A tudo isto soma ter-se criado uma lógica perversa, a de ninguém acreditar no que possam dizer e fazerem fé no que a comunicação social afirma estar nos processos.
Claro que a lei tem a boca cheia de sacrossantos princípios como o segredo de justiça, o dever de reserva e o sigilo profissional, e, esquecia-me, a presunção de inocência. São conceitos que se tornaram ridículos, submersos pela velhacaria de um sistema, baseado numa hipocrisia.
Tenho mantido como regra de vida que o que se passa nos processos é nos processos que se discute. É uma moral decrépita, talvez, mas é a minha. Mas o mundo hoje tornou-se todo outro. Os princípios conservadores tornaram-se fúteis, pois ao atrevimento triunfante é permitida a vitória.
No final, temos as absolvições de pessoas cujas vidas foram entretanto destruídas. A comunicação social rarissimamente as relata e quando o faz é, com frequência, para lançar suspeita sobre a justiça da decisão.
Nessa altura, a da suspeita sobre o decidido, aqueles que nos processos conviveram com o vazamento para os media do que nos processos supostamente se passava, mesmo quando sofrem o achincalho de verem posta em causa a honorabilidade das suas decisões, ficam inertes.
No meio deste mundo de faz de conta, há os que fazem estrelato a comentarem os processos dos outros, processos que não conhecem salvo pelo que vem na comunicação social. É uma passerelle de exibicionismos a ajudar a tornar credível o que tanta vezes é aparente.
No final, a justiça tornou-se na degradação cívica dos cidadãos, a pendência do processo a pena infligida.
Estamos num momento histórico em que ninguém quer saber. Há sempre quem ache que a falta de princípios lhe pode ser útil, para além dos que fazem comércio precisamente da sua ausência.
Estamos a um passo de um certo dia os que se têm calado acharem que é demais. E virem para a praça pública fazer como veem fazer. Nesse dia, os processos passarão a ser em directo através de debates televisivos, cada um a argumentar com a sua parte da verdade. Como nos jogos de futebol, o desafio rude e os comentários ferozes e, em casa, todos serão juízes de bancada.
Quando for assim, é porque onde não há dever de reserva, não tem de haver segredo profissional, onde a presunção de inocência se tornou uma inutilidade processual, será defendida, com as próprias mãos, no espaço público. O resultado será grotesco de se ver e trágico de se sentir.
O populismo reinante e sua filosofia revanchista e demagógica, sentirá que essa é a sua oportunidade. A anarquia começa com a deslegitimação, prossegue com a relativização de todos os valores. Como se escreveu nas paredes adjacentes ao extinto Tribunal da Boa Hora, como se prenunciando esse advento: «a sentença é uma opinião». E nisso se tornará.
Não sei se deseje estar cá nesse dia. Formei-me a acreditar nas instituições e a respeitá-las, mesmo quando elas não se dão ao respeito. Cansa, porém.