Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Para que haja Justiça, inexista o facto!

 


É uma leitura inocente e, no entanto, ilustrativa. A conferência é singela, o tema daria hoje azo a um turbilhão de comentários. Apenas o foro em que foi lida, a solene Academia das Ciências, lhe empresta uma certa áurea. Só que não só de grandeza ou grandiloquència é feita a vida, antes no inesperado e breve se surpreende o digno e notável..

Pedro Pitta foi várias vezes Bastonário da Ordem dos Advogados, de 1957 a 1971. Democrata, Homem de Cultura, a ele se deve a posição de antítese ao regime político que então nos governou contra o qual a Ordem dos Advogados se bateu, sabendo resistir e elevar a sua voz face à perseguição a que tantos advogados foram sujeitos.

Chegou-me seu este breve livrito, de trinta e oito páginas em oitavo, pelas mãos daquele a quem já chamo «o meu alfarrabista», o que me abre crédito de cem euros, que vou repondo em pontual conta-corrente, tendo de ser eu a perguntar se já esgotei já o plafond com o meu vício pelas velharias, pois a sua elegância quase o embaraça de lembrar-mo.

E entre velharias e a partir delas que o conferencista encontrou o seu tema, velho e gasto farrapo de jornal francês, que lhe embrulhara uns livros que nem chegou ler, sim o remanescente do periódico onde se deteve na notícia que lhe daria azo à prelecção, lida a 23 de Janeiro de 1930.

Narrava então o jornal uma insignificante notícia, a do caso de dois faroleiros, exaustos pela vigília a que se sujeitavam, em quartos sucessivos de sentinela, por dias e noites de tempestade, já no limite febril do esgotamento e da renúncia, mas porfiando em manterem-se no seu posto, para que as embarcações que ali arrostavam, atiradas pelo turbilhão marítimo,  tivessem, pela luz do farol e pelo ronco da sereia, o sinal salvífico que as poupariam ao naufrágio e nele a perda de vidas humanas e das fazendas com que iam carregadas.

Mestre na escrita, Pitta centra-nos na cena como se estivéssemos no hediondo lugar. 

E surge então, insidiosa, a trama trágica, ditada pelo sortilégio da má fortuna, o ciúme de um deles, fruto da descoberta no bolso do seu companheiro, de uma carta íntima que dava razão à suspeita de que era com ele que se consumava o adultério já pressentido de sua mulher.

Com o ciúme, eis a ideia do homicídio, passional no momento em que ideia irrompe, mas adiada esta, minado o espírito do assassino entre o desejo aguilhoante de o perpetrar, e a consciência de que deveria manter vivo aquele que, fosse morto, impossibilitado estaria de o render nos turnos de vigia, e deixaria o farol desamparado e com isso barcos, mercadorias e sobretudos vidas humanas entregues à sua sorte e funesta esta se adivinhava.

Adiada a consumação da morte, foi ela infligida precisamente no momento em que, acalmado o mar, chegava a guarnição que asseguraria a rendição dos dois. Morte testemunhada, o homicida a entregar-se voluntariamente à prisão; esta sua opção impedira-o de cometer um crime que, realizado tivesse sido no momento em que o pensou. passaria oculto pela história possível de que o companheiro desparecera, sim, mas tragado pelas ondas do mar revoltoso, versão que o encobriria e lhe traria a falsa inocência.

Jurista, Pedro Goes Pitta, centrando o seu auditório ante o caso, encara o tema de que fez conferência: no sistema do Código Penal de 1886, afinal nesta parte o que já ere desde 1852, a premeditação no homicídio - e era este um caso insofismável com essa natureza, formado que fora o desígnio criminoso com antecedência superior a vinte e quatro horas - agravava necessariamente a responsabilidade criminal, impedindo a sua atenuação, privando os juízes de aplicarem esta por causa do valor imperativo da agravação.

E eis a luta entre o ditame da lei e o que dita o coração: defrontando-se entre estas antinomias, o rigor legal e a compreensão humana do caso, o conferencista convoca argumentos em favor da ideia, que faz sua, da possibilidade de a atenuação, que no caso tinha por devida, poder ter o seu lugar. 

Socorre-se, incerto, do então artigo 40º do Código Penal quando este previa que as circunstâncias, indicadas como agravantes deixavam de o ser «quando a lei expressamente o declarar, ou as circunstâncias e natureza especial do crime indicarem que não devem agravar e devem atenuar a responsabilidade dos agentes em que concorram». 

Mas sabe que «alguns escritores da especialidade de muitos julgadores» consideravam que tal favor não se aplicaria à premeditação e honradamente reconhece-o, não ocultando o que desmente a tese que patrocina. 

Discorda, porém. E clama, em revolta. É este o ponto tocante da sua contenda, intelectual e emotiva, ante a Lei. 

Esgrimindo, advogado, face a um caso hipotético, que o acaso de um resto de jornal lhe trouxera, Pedro Pitta resiste, e virando-se ao que a regra da tipicidade traria em desfavor, clama, no anseio de Justiça: «não pode haver normas inflexíveis, sobretudo em matéria penal; definições, não são de admitir quando se trata de circunstâncias absolutamente variáveis, diversas de indivíduo para indivíduo, e que são influenciadas por tantas e tão diferentes causas».

Desamparado ante a sua própria inteligência, ciente que não advogará contra ela, e perde a razão quando a razão não lhe trouxer íntima convicção do fundamento do que argumenta, irrompe, em desespero: e se «há casos em que as circunstâncias que rodeiam o acto praticado o justificam, se não à face da lei, ao menos ante a consciência dos homens», este homicídio adiado em nome dos valores de outras vidas que o criminoso quis fossem salvas, teria de encontrar homens que impedissem a agravação pela ineludível premeditação. 

Fossem, pois, esses homens juízes ou jurados,  que, ao abrigo do poder de julgar o facto, impedissem a aplicação da lei, dando como não provada a premeditação, que assim ficaria sem aplicação ao caso.

Voz irada, voz dos sentimentos, voz da revolta: «[...] a minha revolta crescia, crescia sempre, contra essas normas legais quasi inflexíveis, que não apreciam em matéria criminal cada caso em si próprio, com as características que o revestem, o precedem e o seguem, e que apenas encontram correcção na consciência dos julgadores e na liberdade que a si próprios avaramente se reservam e muito bem».

Lê-se e um frémito de emoção irrompe, tantos anos depois..