Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




MDE sem garantia de retorno

 


O tema da finalidade e âmbito do mandado de detenção europeu [regulado na Lei n.º 65/2003,  de 23 de Agosto (texto aqui), foi configurado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.03.2021 [proferido no processo n.º 34/21.1YREVR, relator Renato Barroso, texto integral aqui].

Elucidativo, explicita o respectivo sumário:

«1 - O objectivo de um MDE destinado à entrega do requerido para procedimento criminal não é, ao contrário do que às vezes se supõe, a mera transferência de pessoas para interrogatório na qualidade de suspeitos, pois para este efeito outras medidas existem em alternativa, como a decisão europeia de investigação, que pode ser utilizada para obter provas provenientes de outro Estado-Membro e que abrange qualquer medida de investigação, incluindo o mero interrogatório do suspeito no âmbito de um procedimento criminal no qual ainda não foi deduzida a acusação, o qual pode até ser feito através de videoconferência, a fim de determinar se deve, ou não, ser emitido, posteriormente, um MDE tendo em vista o julgamento.

«2 - O caso de um MDE em que se solicita a entrega do requerido para procedimento criminal é algo de diferente, abrangendo, também, a fase de julgamento, pois implica, necessariamente, que a sua devolução ao Estado de que é natural ou residente, apenas aconteça após a sua audição em julgamento, se a tal houver lugar, pois não se concebe que este corra à sua revelia, assim se justificando que a execução do respectivo mandado possa ficar dependente da prestação da dita garantia por parte do Estado emitente, nos termos do artº 13º, al. b), da L. 65/2003 de 23/8.

«3 - Tratando-se a norma em causa de um direito de protecção dos nacionais ou residentes do Estado de execução, a verdade é que, como resulta linearmente do seu texto, a mesma não é de aplicação automática, estando apenas reservada para situações em que, ponderadas as circunstâncias do caso concreto, as reais e concretas ligações familiares sociais, laborais e comunitárias da pessoa procurada ao Estado de execução, se conclua que os laços entre ambos são fortes o bastante que justifique a aplicação da norma em causa, no sentido de ser assegurado, perante o Estado emitente, que aquela será devolvido ao Estado de execução, assim que termine a intervenção judiciária daquele.»

O cerne do decidido no caso teve a ver com a prestação daquela aludida garantia [que também decorre do nº3 do Artº 5 da Decisão-Quadro 2002/584/JAI [texto aqui], ou seja aquela segundo a qual:

«b) Quando a pessoa procurada para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente no Estado membro da execução, a decisão de entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa procurada, após ter sido ouvida, seja devolvida ao estado membro de execução para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que foi condenada no Estado membro de emissão.»

Ora para fundamentar a sua conclusão, considerou-se no referido acórdão:

-» primeiro, a distinção entre a entrega para procedimento criminal face à mera transferência para interrogatório como suspeito, porquanto [cito] «[...] para este efeito outras medidas existem em alternativa, como a decisão europeia de investigação, que pode ser utilizada para obter provas provenientes de outro Estado-Membro e que abrange qualquer medida de investigação, incluindo o mero interrogatório do suspeito no âmbito de um procedimento criminal no qual ainda não foi deduzida a acusação, o qual pode até ser feito através de videoconferência, a fim de determinar se deve, ou não, ser emitido, posteriormente, um MDE tendo em vista o julgamento.»;

-» depois, que não se trata de entrega automática [referindo-se neste sentido o Acórdão do STJ, de 20/06/12, proc. 445/12.3YRLSB.S], antes sujeita a uma avaliação de substância nomeadamente aquela que releva para o efeito de obtenção da aludida garantia e assim: «Tratando-se a norma em causa de um direito de protecção dos nacionais ou residentes do Estado de execução, a verdade é que, como resulta linearmente do seu texto, a mesma não é de aplicação automática, estando apenas reservada para situações em que, ponderadas as circunstâncias do caso concreto, as reais e concretas ligações familiares sociais, laborais e comunitárias da pessoa procurada ao Estado de execução, se conclua que os laços entre ambos são fortes o bastante que justifique a aplicação da norma em causa, no sentido de ser assegurado, perante o Estado emitente, que aquela será devolvido ao Estado de execução, assim que termine a intervenção judiciária daquele. (Cfr., neste sentido, Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Grande Secção, de 17/07/08, Proc. C-66/08)».

Ora, no caso, o sentido do decidido decorreu de uma circunstância factual aferida sem mais indagação, e que este passo do acórdão sumariou:

«[...] nos autos, nada mais se sabe do arguido, a não ser que o mesmo é português e tem residência em Portugal, o mesmo é dizer, como muito bem assinala o MP junto deste Tribunal na sua resposta à oposição deduzida “…não vem aportado nem documento nenhum facto que permita fundadamente concluir pela verificação daquele indispensável grau de integração social, isto é, não está demonstrada nem documentada nenhuma circunstância relevante que evidencie a ligação com aquela profundidade, da pessoa procurada, o oponente, ao Estado de execução e que, por isso mesmo, seja suscetível de conduzir à exigência de prestação da garantia de que a este será devolvido, para cumprimento da pena ou medida de segurança privativas da liberdade, como condição de entrega às autoridades do Estado de emissão.…
A nacionalidade e a residência, só por si e sem mais, não permite, sem outros elementos que demonstrem a centralidade da vida profissional, social e familiar do oponente em Portugal, concluir pela verificação daquele indispensável grau de integração social, e por isso mesmo, conduzir à exigência da prestação da garantia de que a este Estado de execução será devolvido, para cumprimento da pena ou medida de segurança privativas da liberdade, como condição de entrega às autoridades do Estado de emissão do MDE.»

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Entre a já significativa literatura sobre o tema, interessante o seguinte estudo sobre o caso português, visto na óptica de um jurista brasileiros [ver aqui]