Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Os velhos demónios


Às vezes tudo começa com o encontro num alfarrabista de um discreto opúsculo, arrumado, entretanto, numa estante e reencontrado por mero acaso, a trazermos a noção de como tudo é relativo no plano da coerência das ideias e quão frágeis são as noções que temos sobre as correlações com que simplificamos a vida, nomeadamente da ligação das pessoas ao que supomos serem as suas ideais

A noção, por exemplo, de que a defesa estrénua do princípio da legalidade incriminatória é património quase genético do pensamento democrático e liberal e nenhum ser que desse espírito se reclame ousou alguma vez pensar a sua derrogação e quem passe para a História como um demo-liberal não pode ter tido outro ideário, cede ao revermos as suas breves folhas e com elas, morre a ingénua ilusão.

Adelino da Palma Carlos (1905-1992), o primeiro-ministro da democracia, após o 25 de Abril, advogado que defendeu figuras relevantes da oposição ao salazarismo como o general Norton de Matos e mandatário que foi da candidatura deste à Presidência da República, advogado também do advogado Vasco da Gama Fernandes, e do matemático Bento de Jesus Caraça, é o mesmo que, em 1937, apresentaria relatório ao 2º Congresso da Academia de Direito Internacional, e nesta sua comunicação, não hesitaria em pôr em causa o princípio saído da Revolução Francesa nullum elictum nulla poena sine lege.

Aquilo que ainda hoje é pressuposto de uma concepção racionalista do Direito Penal, baluarte e limite ao arbítrio e garantia de proporocionalidade, foi para ele considerado então incompatível com «uma boa defesa social».

Seguindo em torno da sua linha argumentativa e relevando sobretudo tempo histórico em que se pronunciou tudo parece estranho e, sobretudo problemático.

Logo, a legislação que lhe serve de modelo, como o Código Penal soviético de 1922, que expressamente cita, ao prever a incriminação por analogia e a rectroactividade penal [artigos 6º e 16º] e ao definir, numa lógica de tipologia aberta [artigo 1º], como crime toda a acção ou omissão dirigida contra a estrutura do Estado soviético ou lesiva da ordem jurídica criada pelo regime dos trabalhadores e dos camponeses para a era da transição rumo ao comunismo.

Mais ainda, o aplauso que abertamente exprime ao o projecto de radicalização daquele sistema jurídico-penal estalinista, firmado por Nikolai Krylenko, Comissário do Povo para a Justiça e Procurador-Geral da URSS, para quem a criminalização não deveria conhecer limites que a determinassem, antes ser confiada à casuística que valorasse a perigosidade do agente, o móbil do crime e a sua classe social. Krylenko, diga-se, que viria a ser, aliás, uma das vítimas das purgas do regime do terroe vermelho, preso pelo NKVD e condenado à pena de morte em 1949, após um julgamento que durou vinte minutos.

Depois, a lógica da atribuição de poderes discricionários aos juízes em matéria penal, citando expressamente e com concordância aberta o estabelecido na lei penal italiana de então, o artigo 132º do Código Penal, afinal, o Código de Alfredo Rocco aprovado em 1930 em pleno fascismo, segundo o qual: «Nei limiti fissati dalla legge, il giudice applica la pena discrezionale; esso deve indicare i motivi che giustificano l'uso di tale potere discrezionale . Nell'aumento o nella diminuzione della pena non si possono oltrepassare i limiti stabiliti per ciascuna specie di pena, salvi i casi espressamente determinati dalla legge.».

Lendo hoje esse breve opúsculo, tudo nos reconduz a uma linha de pensamento que, reorganizado embora na sua aparência, vai formando uma certa mentalidade, alienada das suas raízes históricas, até pela incultura grassante, vai firmando terreno no campo do Direito Criminal e seus agentes e essa a  segunda desconcertante sensação: é a noção de que o Direito Penal tem de se demitir da sua função redutora de repressão do crime pretérito para assumir o papel preventivo do crime futuro, não punir quia peccatum est para aplicar sanções ut ne peccatur; é a recuperação da analogia incriminatória, ainda que travestida pela noção de interpretação extensiva e, ao limite, o carácter meramente exemplificativo do catálogo de crimes enunciados na lei penal; enfim, o conceito da indeterminação da duração da pena, a juntar-se às medidas destinadas a enfrentar já não o delito em si, mas a perigosidade do delinquente independentemente do que tenha cometido.

Às vezes tudo começa com um velho alfarrábio. Os que supõem que os princípios da escola clássica em que se formaram e pela qual combateram, jogando a liberdade própria em nome da liberdade dos outros, que se desencantem: os novos tempos trazem os velhos demónios, para um novo Inferno. A lógica securitária, nascida do caos, tem aqui as suas raízes.