Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Justificação e negligência

 


Breve nas suas 126 páginas, concentrado na forma de expor, rigoroso na utilização dos conceitos, claro no raciocínio e assertivo nas conclusões, o livro, editado em Maio deste ano, dá à estampa a dissertação de mestrado que a sua autora sustentou o ano passado na Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

Na página 101 Rebeca Campanário vai ao tema que expõe no título da obra e conclui que «a função que a inexigibilidade objectiva desempenhada no quadro dos ilícitos dolosos - exclusão da ilicitude - é assegurada de outra forma no quadro dos ilícitos negligentes- exclusão da tipicidade»; a antecedente exposição prepara os achados conclusivos que resultam da opção pela qual não se tornará assim necessário, para encontrar legitimação da conduta negligente, admitir que se possam convocadas, para o efeito, as causas justificativas típicas, seja a legítima defesa, o estado de necessidade e o consentimento do ofendido que são as admitidas e de modo não unânime.

Na sua narrativa Rebeca Campanário prepara o leitor para que a acompanhe no progresso do seu pensamento. First the first, repudia que a figura da negligência possa ter natureza residual, contextualizando esta figura no domínio de uma sociedade industrializada, uma «sociedade de risco».

De seguida, em jeito de pedagogia dos conceitos, surge a enlace do conceito de "ilícito" e o de "tipo" que o configura ante a violação de uma norma jurídico-criminal de determinação, sendo que, face a uma concepção do ilícito pessoal, que é a sua, existe uma "complementaridade funcional" entre o tipo incriminador e o tipo justificador, recusando a autora aderir à teoria dos elementos negativos do tipo como meio de recorte dos casos de desvalor da conduta; a isso segue-se a configuração do penalmente relevante como a justaposição da "exigibilidade objectiva" numa determinada situação concreta, ou seja o decorrente da formulação de «um juízo pessoal-objectivo de contrariedade face a uma norma de determinação», simbiose, pois, do juízo de um homem médio colocado na situação concreta vivenciada pelo agente da conduta.

A parte mais interessante da narrativa, em minha opinião é aquela em que, unificando o dolo e a negligência naquilo em que em ambos existem os elementos intelectuais e volitivos respectivamente da representação mental e a adesão da vontade ao tipo objectivo de ilícito, Rebeca Campanário opta por considerar que o elemento de destrinça da negligência é «a atitude interior de descuido ou leviandade para com o dever-ser jurídico-penal», por contraposição com a «atitude interior de contrariedade ou indiferença com o dever-ser jurídico-penal», sendo que, na diferenciação do dolo eventual face à negligência consciente em ambos os casos «se preenche o dolo natural», situando o leitor para uma perspectiva de maior alcance do que a resultante da dicotomia clássica com que o binómio era ponderado.

Convidando à leitura, que terá de ser pausada, ficamos por aqui neste breve apontamento, deixando de lado vários dos problemas que servem de referencial para a exposição, como o tema da causalidade ou do risco permitido.

Obra académica, tem directa projecção numa prática forense que se queira estribada não na casuística mas balizada por critérios de avaliação que estejam escorados na teoria, como tal no pensamento e assim numa justiça racionalizada.

Há nos crimes de recorte negligente um perigo difuso, resultante da contemporânea generalização de deveres complexos, alguns a exigirem para o seu cumprimento o domínio de tecnicismos e até de avaliações sofisticadas do que seja exigível, os quais são depois convertidos em forma de imputação de resultados materialmente subsequentes numa lógica de ligeireza do tipo: "post hoc ergo propter hoc" [depois disto, logo por causa disto]. 

Ganha, por isso, todo o sentido, a frase que a autora convoca na sua dissertação: o que não se encontra no âmbito do dolo ou da negligência pertence ao domínio do acaso, ao que acrescento: a arrogância do homem ao considerar tudo previsível e, assim, tudo exigível, é que abre a porta ao injusto da punição da inconsideração razoável; injusto porque há na vida a causa em virtual sem a qual a vida não teria oportunidade de surgir.