Território de ambiguidades, a viver entre normas remissivas para a lei penal e para a processual penal, afinal todas elas a aplicarem directamente princípios de natureza constitucional, mas ao mesmo tempo protegido pela noção imperscrutável da sua natureza específica, porquanto orientado à tutela de valores não penais mas de cunho administrativo, o Direito contraordenacional é um campo fértil para indeterminações e, ao limite, abuso: as garantias penais, já por si cada vez mais sujeitas a interpretações restritivas, surgem e desaparecem numa lógica de afeiçoamento à conveniência do que se quiser com elas alcançar ou obliterar.
Através deste forma processual, que se quis em 1982 como sucedâneo às contravenções, podem aplicar-se coimas que chegam aos milhões de euros, e sanções a empresas que podem levar ao seu encerramento, o que torna insólita tratar-se de um Direito de "mera" ordenação social. Através deste tipo de Direito, cuja natureza ainda é controversa entre os doutores, o legislador permite-se descriminalizar zonas da vida que por esta forma pune com uma severidade de que o Direito Criminal não seria capaz.
Mas, no entanto, na fase administrativa do procedimento respectivo, joga-se o essencial quanto à aquisição da prova, já que a experiência demonstra em que medida o probatoriamente adquirido pela autoridade administrativa, sobretudo sendo autoridades de supervisão e regulação em áreas especializadas, se impõe na fase judicial, até por se tratar de matérias que, pelo seu tecnicismo escapam ao comum conhecimento dos juízes; mais, há lei a dar fundamento a que se recuse na fase judicial produção probatória que já haja sido obtida na fase administrativa, ainda que estando em causa o modo como a mesma foi ali captada ou a extensão do ali obtido.
Eis o que torna relevante o determinado pelo Acórdão da Relação de Évora de 21.09.2021 [proferido no processo n.º 259/20.7T8CCH.E1, relator Gomes de Sousa, co-subscritor António Condesso, texto integral aqui], quando nele se estatui:
«1 - O processo contra-ordenacional não é um processo em que as entidades administrativas possam, sem mais, recusar a produção de prova.
«2 - A questão central é, primacial e especialmente, o apurar da necessidade de produção de prova requerida em função da matéria que consta do auto de notícia e da defesa do arguido. A necessidade de fundamentação – que igualmente se impõe – assume pois um papel adjuvante daquela “necessidade” de produção de prova.»
Nós, evitando as versões inquisitórias – anquilosadas na medida em que olvidam toda a doutrina sobre a natureza do processo contra-ordenacional - sempre o entendemos de forma diversa, como um processo a que é aplicável a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. E isto já em aresto de 28-10-2008 (proc. nº 441/08-1) e nestes termos: (III) “O conceito de acusação em matéria penal contido no artigo 6º da CEDH, conceito com autonomia e que deve ser interpretado no sentido da Convenção, é interpretado pelo TEDH como abrangendo o direito contra-ordenacional”.
E assim se fundamentou: [1]
Não tem sido esse o sentido da jurisprudência do TEDH, que entende a expressão acusação em matéria penal (aliás, equivalente às contidas nos nsº 2 e 3 do mesmo preceito – “acusada de uma infracção” do nº 2 e “O acusado” do nº 3) com diferente amplitude.
E tal entendimento não surge por qualquer interpretação extensiva ou analógica por referência aos processos disciplinares (nomeadamente militares) da jurisdição austríaca (acórdão Engel v. Holanda - 1976) ou contravencional da jurisdição francesa (acórdãos Peltier v. França e Malige v. França), o que sempre seria possível, sim por referência à própria legislação alemã sobre contra-ordenações (Ordnungswidrigkeit).
De facto, já no citado aresto Engel o Tribunal veio a delimitar critérios que desenvolveu e repetiu nos acórdãos Ozturk v. Alemanha (1984) e Lutz v. Alemanha (1987). [5]
Não obstante o governo alemão ter defendido perante o Tribunal que o artigo 6º da convenção não era aplicável aos casos na medida em que não havia uma “acusação em matéria penal”, invocando que se estava perante contra-ordenações (“Ordnungswidrigkeit”, ou na terminologia do Tribunal Europeu, "regulatory offence" ou "contravention administrative"), certo é que acabou por concluir que o artigo 6º da convenção era aplicável.
Para concluir que estava perante uma acusação em matéria penal, conceito com autonomia e que deve ser interpretado no sentido da Convenção, o Tribunal utilizou os seguintes critérios: a qualificação jurídica da infracção no direito nacional; a verdadeira natureza do ilícito; a natureza e o grau de severidade da sanção.
O primeiro critério – qualificação no direito nacional – tem carácter meramente formal e relativo, simples ponto de partida da análise a envidar (Engel), à luz do “denominador comum das legislações respectivas dos diversos Estados”.
Os outros dois critérios não são cumulativos, sim alternativos, pelo que lhe bastou constatar que a verdadeira natureza da “infracção”, o carácter geral da norma, o seu objectivo simultaneamente preventivo e repressivo, assumiam natureza penal (Lutz), para concluir estarmos perante uma acusação em matéria penal.»
Verifica-se, pois, que o processo contra-ordenacional não é um processo em que as entidades administrativas, possam sem mais, recusar a produção de prova com o amém de tribunais tributários de um desejo de tratar tal processo como um procedimento administrativo que deveria ser excluído da ordem comum dos tribunais nacionais.
Bem ao invés, trata-se de um processo onde apenas a modorra legislativa tem impedido a sua divisão – que se revela essencial de há muitos anos – de procedimentos consoante a sua natureza e complexidade do assunto tratado e gravidade das suas sanções, sabidamente mais gravosas que muitas multas penais.
Seja como for, com maior ou menor complexidade do tema tratado e gravidade das suas sanções, o arguido tem direito à sua defesa em moldes semelhantes ao do processo penal (a tal “acusação em matéria penal” de que fala a C.E.D.H.).
E aqui os requisitos de produção de prova em pouco se dissemelham do processo penal, pois que será a necessidade da produção dessa prova em termos delimitados pela defesa do arguido a determinar a sua admissão ou não.
Por isso que sempre entendemos que não se trata de uma questão de fundamentação. Esse é apenas o segundo passo necessário!
O passo essencial e determinante é o saber se a produção da prova arrolada se revela necessária à defesa do arguido. E será em função disso que a sequente fundamentação terá que tratar, admitindo ou não a produção da prova arrolada na medida em que seja necessária para uma sã e razoável defesa do defendente.
Ou seja, para além da necessidade de fundamentar como mera decorrência do princípio da legalidade, a exigência maior situa-se na necessidade de cumprir o princípio de investigação e de descoberta da verdade material, que também nestes processos é uma exigência substancial e não apenas formal.
Por isso que não seja nossa opinião que as duas posições em confronto se limitem à existência da necessidade ou não de a entidade administrativa fundamentar ou não a não inquirição de testemunha arrolada (ou outra prova arrolada), nem – de outra banda – que sobre a entidade administrativa recaia o dever de obrigatoriamente realizar todas as diligências de prova requeridas.
A questão central é, primacial e especialmente, o apurar da necessidade de produção de prova requerida em função da matéria que consta do auto de notícia e da defesa do arguido. A necessidade de fundamentação – que igualmente se impõe – assume pois um papel adjuvante daquela “necessidade” de produção de prova.
Por isso que não tenhamos dúvida em subscrever o aresto desta Relação de Évora de 06-11-2018 citado pela Digna recorrente, entendendo no entanto que o teor do recurso não mostra ter entendido a subtil diferenciação entre “necessidade de fundamentação” da não inquirição da testemunha arrolada, da “necessidade de produção de prova para obter a verdade material”, coisas distintas mas que devem subsistir em conjunto no processo contra-ordenacional.
Por outro lado, não se mostra necessário que o RGCO preveja norma a impor a inquirição de testemunhas às entidades administrativas se já dispõe de norma que, nos termos do próprio acórdão por si apresentado em apoio do seu recurso afirma que “I - O art.º 50.º, do Regime Geral das Contra-Ordenações consagra o direito de audição e defesa do arguido. II – Esse direito de audição e defesa não se limita à possibilidade de o arguido ser ouvido no processo de contra-ordenação, abrangendo o direito de intervir neste, apresentando provas ou requerendo a realização de diligências”.
Esta afirmação da inexistência de lei expressa a prever a prática de acto de defesa, cuja essência deve surgir como natural num procedimento sancionatório e com óbvio respaldo constitucional e convencional, sempre surge como deslocada e excessiva, como se fosse exigência da ordem jurídica a obrigação de que a lei deve prever todos os passos dados pelas magistraturas e o que nela não está previsto deve entender-se como proibido ou inadequado, ou que o direito de defesa se deve entender como excluído se não estiverem previstas na lei todas as suas possíveis concretizações.
E em acórdão desta mesma Relação de Évora de 08-04-2014 citado em rodapé (processo 108/13.2TBCUB) «A não inquirição de uma testemunha indicada pelo arguido na fase administrativa não pode estar dependente da simples vontade da entidade administrativa e esta não pode, de motu proprio, decidir não inquirir a testemunha por razões que não têm a ver com a necessidade da sua inquirição para a defesa do arguido».
Sem esquecer que «O arguido, ou seu mandatário, deve ser notificado da data da inquirição de testemunhas para que tenha oportunidade de inquirir ou contra-inquirir a prova por si indicada, em observância do n.º 10 do art. 32,º da Constituição da República Portuguesa, norma directamente aplicável por dizer respeito a direitos fundamentais (art. 18.º, n.º 1, da Constituição)».
[1] - Veja-se ainda o Acórdão desta Relação de Évora de 08-04-2014 (processo 108/13.2TBCUB) de nosso relato.»