Notificado para o julgamento, o arguido apresentou contestação mas não invocou quaisquer factos relativos às suas condições económicas e sociais para serem considerados no momento da eventual condenação no pagamento de indemnização. Designada a data do julgamento, requereu que o mesmo decorresse na sua ausência, mas o tribunal, por ter considerado necessária a sua presença e ter tido dúvidas sobre aquele requerimento, adiou a audiência e determinou que o arguido informasse quando regressava do estrangeiro – isto ocorreu em 16JUN2014 (fls. 420 e 422). A partir desse momento, não foi mais possível localizar ou notificar o arguido, pese embora as várias diligências feitas nesse sentido (fls. 439, 502, 504, 551). Em 7OUT2015 o arguido indicou uma nova morada em Moçambique, mas a notificação para aí enviada foi devolvida com indicação de ser lá desconhecido (fls. 586 e 600). Face à impossibilidade de notificar o arguido noutra morada, acabou por ser de novo notificado para o julgamento na morada indicada no TIR. Porém, faltou ao julgamento, a todas as sessões, realizadas em 17FEV, 7MAR, 30MAR, 11MAR e 24MAR2016.
Esta breve resenha das ocorrências processuais relevantes mostra-nos que o arguido se desinteressou por completo da comparência do julgamento e se colocou em situação de dificultar ao máximo a sua própria notificação. O que nos leva neste momento à questão de saber se a omissão de diligências probatórias resultou de inércia censurável do tribunal ou de uma situação de impossibilidade ou excessiva morosidade objectivamente causada pelo arguido.
Embora a propósito da determinação da pena, a jurisprudência maioritária tem decidido no sentido de a omissão na sentença dos factos relativos às condições pessoais e sociais do arguido poder gerar o vício do referido artigo 410º nº 2 al. a) e o reenvio para o tribunal de primeira instância para concluir o julgamento:
Acórdão do STJ, de 18DEZ2008[...]: «A circunstância de o recorrente não ter comunicado regularmente a mudança de residência não inviabilizaria a realização do relatório social fundamental uma vez que se trata de arguido julgado na ausência e com tão parca matéria recolhida dos elementos relevantes para a determinação da sanção, quando acabou por ser aplicada uma pena de prisão, necessariamente pela sua medida, efectiva».
Acórdão do STJ, de 14MAR13[...]: «Prova essencial à boa decisão da causa, no caso de condenação e aplicação de pena, conforme resulta expressamente da própria lei (artigos 369.º e ss. do CPP), é a relativa aos antecedentes criminais do arguido, à sua personalidade e às suas condições pessoais, sendo certo que a lei prevê mesmo a possibilidade de produção de prova suplementar, tendo em vista a determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar, para o que, sendo necessário, poderá ser reaberta a audiência – artigo 371.º do CPP». «A existência dos vícios supra referidos, torna impossível decidir a causa».
Acórdão do TRP, de 2DEZ2010[...]: «Este conjunto de circunstâncias, que deriva duma conduta omissiva da arguida, não dispensava, no entanto, o tribunal de, oficiosamente, determinar a elaboração dum relatório social pelos serviços competentes da DGRS, ficando, assim, numa situação de conhecimento das condições pessoais, sociais e económicas da arguida que lhe permitissem, de modo bem mais seguro, dosear a pena e pronunciar-se acerca da medida substitutiva que ao caso há-de caber». «Não o tendo feito, como revela a mera análise do texto da decisão, existe uma situação de insuficiência da matéria de facto para a decisão relativa à medida da pena».
Acórdão do TRP, de 19DEZ2012[...]: «Sendo o objeto do processo delimitado pela acusação/pronúncia, pela contestação e pelos factos que resultarem da prova produzida em audiência (cfr. artº 339º nº 4 do C.P.P.) e estando tribunal obrigado a enumerar os factos provados e não provados (cfr. artº 374º nº 2 do C.P.P.) esta enumeração respeita aos factos alegados pela acusação e pela defesa que sejam essenciais para a caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes e os factos provados que resultem da prova produzida em audiência que sejam relevantes para a questão da culpabilidade e determinação da sanção a aplicar (cfr. artºs 368º e 369º do C.P.P.). Para, de um ponto de vista substancial, sedimentar a obrigação do tribunal de investigar todos os factos relevantes ainda que não alegados e ainda que as partes não ofereçam prova sobre eles, o artigo 340º do Código de Processo Penal impõe ao tribunal a obrigação de ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (consagrando-se, assim, na fase de julgamento, o primado do princípio da investigação – poder-dever que incumbe ao tribunal de investigar autonomamente os factos, para além das contribuições de acusação e defesa). E o artº 369º já citado impõe ainda que o tribunal reabra a audiência se a matéria factual investigada for insuficiente para a determinação da espécie e medida da sanção». «Assim, a sentença, na falta de prova dos factos respetivos, terá de expressar e justificar a impossibilidade do seu conhecimento, se relevantes para a boa decisão da causa. Só esta interpretação do artº 374º, nº 2 do C.P.P. é compaginável com a demonstração do cumprimento daqueles artigos e de que a mesma não padece de insuficiência factual para a decisão».
Acórdão do TRP, de 9SET2015[...]: «Assim, in casu, bastaria solicitar a realização de relatório social, tendo em consideração a morada que o arguido fornecesse aquando da sua identificação ou, então, e se tal se viesse a revelar viável, considerar as declarações do arguido a tal propósito. Não tendo assim procedido, e encerrando a produção da prova sem os necessários elementos fáticos relativos às condições de vida e personalidade do arguido, cometeu o Tribunal a quo a nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, al. d) do Código de Processo Penal. E, depois, proferindo decisão condenatória com omissão de factos relevantes para a determinação da sanção, produziu sentença ferida do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, a que alude a al. a), do nº 2, do artigo 410º do Código de Processo Penal. Na medida em que do próprio texto da decisão recorrida, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, resulta uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito” (relativa à determinação da sanção), que permite a “conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher” (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos Penais, 8ª ed. Lisboa, 2012, p. 74)».
Nestes acórdãos, há dois aspectos comuns que parecem reunir algum consenso. Em primeiro lugar, considera-se que a sentença só incorrerá no vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão naquelas situações em que houver possibilidade efectiva de realizar as diligências investigatórias necessárias para apurar os factos relativos às condições pessoais, sociais e económicas do arguido. Em segundo lugar, se ocorrer essa impossibilidade, deve o tribunal expressá-la e justificá-la na sentença para que esta não incorra no vício de insuficiência da matéria de facto.
O primeiro requisito é óbvio. Seria de todo irrazoável entender que a lei impõe ao tribunal um dever de investigação que em face das particularidades do caso seja impossível de cumprir, sob pena de anulação do julgamento. Já o segundo requisito nos merece reservas. A impossibilidade do tribunal investigar os factos relevantes é uma circunstância objectiva que a análise do processo permite facilmente verificar se existia ou não à data do julgamento. Se existia essa impossibilidade, então a exigência da sua expressão na sentença é redundante para concluir pela inexistência do vício de insuficiência da matéria de facto. Mas se, pelo contrário, o processo fornece os elementos necessários para verificar que o tribunal podia ter investigado aqueles factos, não há-de ser por se dizer o contrário na sentença que aquele vício ficará afastado.
Do nosso ponto de vista, nas situações em que a sentença é omissa na indicação dos factos revelantes para a decisão, para se concluir se a sentença padece do vício de insuficiência da matéria de facto deve fazer-se uma a avaliação um pouco diferente daquela que tem sido seguida pela jurisprudência que referimos.
Em regra, a alegação dos factos e a indicação das respectivas provas – neste caso para a fixação da indemnização – deve ser feita no pedido de indemnização civil e na respectiva contestação. No entanto, ainda que os factos não sejam introduzidos em julgamento pelos sujeitos processuais no momento próprio, no decurso da audiência o tribunal pode ordenar a produção das provas necessárias para os investigar, ao abrigo do disposto no artigo 340º do CPP. E os sujeitos processuais interessados na prova dos factos podem também requerer ao tribunal que proceda a essas diligências.
Chegados aqui, a questão que se nos coloca agora é a de saber que consequência tem o facto de o tribunal não ter averiguado oficiosamente as condições económicas e sociais do arguido, para o efeito de poder fixar a indemnização com recurso ao critério de equidade previsto na lei civil nem justificado a omissão, num caso em que tais factos não foram alegados no pedido de indemnização civil nem na respectiva contestação e em que o arguido não requereu que fossem averiguados.
As referências jurisprudenciais que fazemos de seguida têm a ver com a indagação das condições económicas e sociais do arguido para a determinação da pena, mas são aplicáveis por maioria de razão à situação que estamos a analisar, que é a da relevância desses factos para a fixação da indemnização.
No acórdão do STJ de 5SET2007[...] escreveu-se o seguinte: «independentemente de se considerar ser ou não ser obrigatória a requisição daquele relatório social ou daquela informação dos serviços de reinserção social para aplicação de uma pena de prisão efectiva (cfr. conclusão 7ª da motivação) – a letra da lei sugere francamente que se trata de uma faculdade do tribunal e o Tribunal Constitucional, no seu acórdão nº 182/99, Pº nº 759/98, de 22.03.99, já decidiu não ser inconstitucional a norma do nº 1 do artº 370º do CPP quando interpretada no sentido de não ser obrigatória essa solicitação – entendemos, na esteira da jurisprudência mais comum do Supremo Tribunal de Justiça, que a falta desse relatório ou informação ou a falta de produção de qualquer outra prova suplementar para determinação da espécie e da medida da pena a aplicar poderá justificar o reenvio do processo para novo julgamento, quando o resultado for a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos dos arts. 410º, nº 2-a) e 426º, ambos do CPP».
Considerou-se nesta decisão que a indagação oficiosa pelo tribunal dos elementos necessários para graduar a pena – ou para fixar a indemnização, acrescentamos nós – é apenas uma faculdade e que a sua omissão nem sempre levará ao vício da insuficiência da matéria de facto provada na sentença.
Tal entendimento parece-nos correcto. Só pode concluir-se que a omissão na sentença dos factos relevantes para fixar a indemnização conduz ao vício previsto no artigo 410º nº 2 al. a), se do processo resultar que o tribunal não teve a iniciativa de os investigar quando devia e podia tê-la tido – ou por ter indeferido requerimento nesse sentido ou por não ter actuado oficiosamente quando era clara a possibilidade e necessidade de o fazer. O foco de análise para apurar se há vício processual não deve estar, portanto, na omissão dos factos na sentença, mas sim na existência ou não de motivo justificativo para a abstenção da acção investigatória pelo tribunal.
Queremos com isto dizer que o problema que o recurso nos coloca não está propriamente na suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada para a decisão sobre a fixação da indemnização, mas sim na regularidade processual da abstenção de investigação dos factos pelo tribunal. O que nos remete para um outro problema, que é o de saber quais são as consequências da violação do poder-dever de investigar factos em julgamento ao abrigo do mencionado artigo 340º.
Nos acórdãos do TRG, de 27ABR2009 e do TRC de 7OUT2014[...], com os quais concordamos, concluiu-se que a omissão de exercício daquele poder-dever constitui nulidade processual ou erro de aplicação da lei, consoante tenha ou não sido activado por requerimento dos sujeitos processuais. No caso de o tribunal omitir o exercício oficioso desse poder-dever de produção de um meio de prova essencial para a descoberta da verdade sem que algum sujeito processual o tenha solicitado, essa omissão integra a nulidade prevista no artigo 120º nº 2 al. d) do CPP, que deve ser arguida nos termos do seu nº 3. Porém, se ao tribunal for requerida a produção de uma prova ao abrigo do referido artigo 340º e o tribunal indeferir esse requerimento, a forma de sindicar a correcta aplicação dos fundamentos de rejeição ali previstos é o recurso. A distinção fundamental a ter em conta é que a ilegalidade decorrente da omissão de um acto processual obrigatório é um vício relativo à forma do procedimento, ao passo que a ilegalidade da recusa da prática desse acto é um vício relativo ao conteúdo ou substância da decisão, sobre a correcta ou incorrecta interpretação ou aplicação da lei.
A necessidade de produção de um meio de prova suplementar, necessário para investigar o facto em julgamento, obriga o tribunal a praticar o acto processual prescrito no artigo 340º nº 1. Logo, uma vez que a omissão de tal acto está expressamente cominada na lei como nulidade dependente de arguição (artigos 118º nº 1 e 120º nº 1 al. d) do CPP), a sua impugnação tem de fazer-se pela via da arguição da nulidade. Este mecanismo de impugnação que permite despoletar a correcção do vício processual e a prática do acto omitido, em tempo útil e perante o juiz em primeira instância é o que melhor protege os princípios da celeridade e estabilidade dos actos processuais. Apenas haverá vício de conteúdo da decisão nas situações em que o tribunal recuse a realização da diligência de prova, ou desatenda a arguição de nulidade que referimos, por considerar que não se verificam os pressupostos do artigo 340º.
Por outro lado, pensamos também que o tribunal de recurso só pode sindicar postumamente a omissão de uma diligência de prova se os dados do processo permitirem concluir que teria sido possível produzir essa prova, com a informação que o juiz no momento dispunha. Aquilo que se analisa num recurso é o acerto da decisão judicial com base nas circunstâncias em que foi tomada e não em face de factores supervenientes que o juiz à data não conhecia. O que nos importa é se a Sra. Juiz tinha ou não o dever de investigar as condições sociais e económicas de um arguido que nada requereu, que manifestamente não quis comparecer em julgamento – o que para nós equivale a ter comparecido e se ter recusado a prestar declarações – e que forneceu uma morada para ser contactado na qual não era conhecido.
Diante deste cenário de desinteresse do arguido, o que podia ter feito a Sra. Juiz? Emitir mandados para condução à audiência para lhe permitir exercer o direito de prestar declarações? Seria provavelmente inútil, dado o histórico das dificuldades de localização. Chamar testemunhas para depor sobre as suas condições pessoais do arguido? Mas quais, se a defesa não as indicou e se da discussão em julgamento também não resultou quem podia ser chamado? Solicitar informação documental? Mas a quem? No plano da exigibilidade e razoabilidade consideramos que a Sra. Juiz não estava obrigada a investigar oficiosamente os factos para decidir sobre a fixação da indemnização, sendo irrelevante que isso não esteja consignado expressamente na sentença.
Quando vemos a situação pelo ângulo dos deveres processuais do arguido, acrescem ainda argumentos de outra ordem a que não podemos ser indiferentes. Ele esteve devidamente representado no julgamento por advogado que tinha a incumbência de assegurar a defesa dos seus interesses, que conhecia o processo e assistiu à produção de prova. Não podia a defesa do arguido desconhecer que o tribunal não tinha outros elementos factuais para decidir sobre a fixação da indemnização para além do que resultava da prova produzida em audiência. A defesa do arguido nada requereu e ao verificar que o tribunal não actuou oficiosamente para indagar aqueles factos também não arguiu a nulidade dessa omissão. Só agora no recurso é que vem esgrimir argumentos contra uma omissão que conheceu no julgamento e que em parte decorre também da sua inacção. Mesmo agora no recurso ficamos sem saber que diligência poderia, na opinião da defesa, ter o tribunal realizado, o que seria essencial para podermos concluir que havia alguma possibilidade efectiva de indagar os factos em questão e para podermos agora formular um juízo crítico sobre a omissão do tribunal.
Os direitos de defesa não são absolutos e ilimitados. Os comportamentos processuais contraditórios – venire contra factum propriu – constituem uso abusivo do processo, fora das finalidades para que os direitos são concedidos. A lei não isenta o arguido desses deveres.
Do acórdão de fixação de jurisprudência do STJ, de 16DEZ2010[...] retiramos alguns trechos que nos parecem relevantes para a análise do nosso caso, na perspectiva do cumprimento pelo arguido dos deveres inerentes à lealdade processual.
Citando o autor Paulo Pinto de Albuquerque[...]:
«O princípio da lealdade processual impõe-se aos sujeitos e participantes processuais e, por força deste princípio, não pode recorrer quem tiver promovido a decisão proferida e, designadamente, aquele que impugna decisão concordante com a sua anterior posição assumida no processo».
«O princípio da lealdade no comportamento processual, nomeadamente na recolha de prova, representa uma imposição de princípios gerais inscritos na própria dignidade humana, e da ética, que deve presidir a todos os actos do cidadão. O mesmo liga-se, de forma inexorável, ao direito a um processo justo e ao princípio da igualdade de armas.
Em termos gerais e, em qualquer litígio, a existência de um princípio geral da lealdade é essencial para a afirmação da existência do Estado de Direito».
Referindo-se ao acórdão do STJ de 24SET 2003[...]:
«Princípio essencial, fundador e conformador do processo penal (de todos os modelos ou soluções particulares e mais ou menos idiossincráticas dos diversos sistemas processuais democráticos), o princípio do processo equitativo, na dimensão de "justo processo" ("fair trial"; "due process"), é integrado por vários elementos, um dos quais se afirma na confiança dos interessados nas decisões de conformação ou orientação processual; os interessados não podem sofrer limitação ou exclusão de posições ou direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar: é o princípio da confiança na boa ordenação processual determinada pelo juiz.
O processo equitativo, como "justo processo", supõe que os sujeitos do processo usem os direitos e cumpram os seus deveres processuais com lealdade, em vista da realização da justiça e da obtenção de uma decisão justa».
«A lealdade, a boa-fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram, são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual».
E avançando nos argumentos:
«Neste domínio são de realçar os deveres de vigilância e de boa fé processual: o primeiro obriga os sujeitos processuais a «reagir contra nulidades ou irregularidades que considerem cometidas e entendam relevantes, na perspectiva de defesa, não podendo naturalmente escudar-se na sua própria negligência no acompanhamento das diligências ou audiências para intempestivamente vir reclamar o cumprimento da lei relativamente a actos em que estiveram presentes e de que, agindo com a prudência normal, não puderam deixar de se aperceber»; o segundo impede que os sujeitos processuais possam «aproveitar-se de alguma omissão ou irregularidade porventura cometida ao longo dos actos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um “trunfo”, para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado» – cf. Ac. n.º 429/95 do TC.».
«Assim, é inteiramente adequado o entendimento de que aquele que admite a possibilidade de, no futuro, vir a impugnar a matéria de facto, colabore e, evidenciando uma postura de lealdade processual, verifique, no final da respectiva audiência ou no prazo de arguição da irregularidade, se existiu alguma deficiência. Proc. n.º 77/00.9GAMUR.S1 - 3.ª Secção».
«É que, para além da teleologia do processo penal, é o próprio dever de lealdade processual de todos os intervenientes no processo que impõe que a imperfeição seja suscitada por forma a causar o menor dano na tramitação processual e não como último argumento que se mantém resguardado para se utilizar como último recurso caso o resultado final não agrade. Proc. n.º 578/08 - 3.ª Secção».
O reconhecimento da existência de um dever de lealdade processual e da sua relevância para analisar a legitimidade para interpor recurso de decisões em contradição com comportamentos processuais anteriores é muito importante.
No nosso entendimento, actua com deslealdade processual e em abuso de direito de defesa o arguido que faltou ao julgamento e que ostensivamente não tornou possível a sua localização atempada, cuja defesa não requereu ao juiz durante o julgamento que activasse os poderes de investigação concedidos pelo referido artigo 340º e que nem mesmo na fase de recurso revela que diligência poderia razoavelmente ter sido ordenada pelo tribunal para indagar sobre as suas condições económicas e sociais, limitando-se a invocar essa omissão para obter a anulação do julgamento, por um pretenso vício processual que resultaria em grande parte da sua omissão.
Achando o arguido que era necessário realizar diligências de prova ao abrigo do disposto no artigo 340º e ao ver que o tribunal omitia essa acção, deveria ter suscitado durante o julgamento a nulidade processual prevista no artigo 120º nº 2 al. d) – omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade. Não tendo isso sido feito, a nulidade que pudesse ocorrer encontra-se agora sanada.
Poderia também ter requerido ao abrigo do mesmo artigo 340º que o tribunal realizasse a diligência de prova que considerava viável e necessária. E então, se o tribunal a indeferisse sem fundamento bastante, teria aí o fundamento de recurso que agora lhe falta. Não tendo isso sido feito, não vemos como possa agora concluir-se que o tribunal omitiu a prática de um acto de investigação necessário para apurar os factos relevantes para a fixação da indemnização e que a sentença que omite esses factos padeça do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º nº 2 al. a).
No caso de não serem activados os poderes do artigo 340º no decurso do julgamento, através do requerimento dirigido ao juiz para agir ou da arguição da nulidade da sua omissão, pensamos que o vício de insuficiência da matéria de facto na sentença apenas ocorrerá naquelas situações em que seja evidente, face aos dados do processo, que o tribunal tinha à sua disposição provas cuja produção podia ter ordenado, que conhecia a possibilidade de fazer essa indagação oficiosa e que mesmo assim a omitiu. Neste caso justificar-se-ia que o tribunal de recurso concluísse pela existência do vício da sentença revisto no artigo 410º nº 2 al. a) porque a prova determinante para apurar os factos necessários para a decisão existia e era conhecida do tribunal. Mas como vimos a situação que temos à nossa frente não é essa.
-» Acórdão do TRE/violação da OPH/prisão preventiva: o Acórdão da Relação de Évora de 15.11.2016 [relator Clemente Lima, tetxo integral aqui] decidiu que: «I – Verificando-se o incumprimento das obrigações resultantes da sujeição do arguido à medida coactiva de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica (OPHVE), impunha-se ao tribunal, desde logo e antes de tudo, recolher elementos concretos sobre o paradeiro do arguido e notificar o Ex.mo Advogado, defensor do arguido, para se pronunciar, querendo, sobre a promoção de agravamento da medida coactiva, e só depois, verificada a culpa do arguido no incumprimento das obrigações resultantes da sujeição à medida de coacção vigente, e ponderadas as exigências cautelares, sendo o caso, aplicar a pretextada prisão preventiva. II - Constitui nulidade insanável, nos termos previstos no art. 119.º, alínea c) do CPP, a decisão que, sem proceder às diligências referidas e perante o incumprimento da medida coactiva de OPHVE, procede de imediato ao agravamento da medida coactiva para prisão preventiva.»
O decidido tem um voto de vencido [Alberto João Borges], segundo o qual:
«1) Entendemos que não resulta do artigo 212 n.º 4 do CPP - quando aí se estabelece que a revogação das medidas de coação tem lugar, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, “devendo estes ser ouvidos” - que este direito de audição tenha que ser presencial, por um lado, porque este direito a ser ouvidos respeita ao arguido, mas também ao Ministério Público, pelo que não se vê, em face dos termos desse preceito, porque razão haveria de haver uma diferença de tratamento (isto, a menos que se entendesse que o Ministério Público também haveria de ser ouvido pessoalmente, o que não se aceita nem se vê que tenha qualquer fundamento legal), por outro lado, o art.º 61 do CPP - que trata dos direitos e deveres processuais - autonomiza o direito do arguido a “estar presente” (nos atos processuais que diretamente lhe disserem respeito) e o direito do arguido a ser ouvido, sempre que deva ser tomada qualquer decisão que pessoalmente o afete, direito este que fica salvaguardado com a audição, por escrito, do respetivo defensor, pois que este exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido, salvo os que ela reservar pessoalmente a este (art.º 63 n.º 1 do CPP), o que - repete-se - não é o caso;
2) Mesmo que assim não se entendesse - e se entendesse que o arguido, no respeito pelo princípio do contraditório, teria que ser ouvido presencialmente (o que não entendemos) - sempre se dirá que consideramos que esta situação configura um caso de manifesta impossibilidade, suficientemente fundamentada, da audição - presencial - do arguido, que se colocou nessa situação, ausentando-se para parte incerta do estrangeiro, ou seja, colocando-se, objetiva e comprovadamente, na impossibilidade de ser ouvido presencialmente;
3) De qualquer modo - e entendendo-se, como entendemos, que o arguido teria que ser ouvido, através do seu defensor, dando-lhe oportunidade de exercer o contraditório relativamente ao pedido de revogação da medida e das razões em que se baseava tal pedido - o seu defensor não foi ouvido.
Todavia, esta falta de audição - a omissão de uma formalidade que a lei prevê - não integra qualquer das nulidades previstas nos art.ºs 119 a 120 do CPP, designadamente, a prevista no art.º 119 n.º 2 al.ª c), pois que, pelas razões acima expostas, não estamos perante uma qualquer diligência à qual a lei imponha a comparência do arguido ou do seu defensor.
A omissão dessa formalidade integra uma mera irregularidade, face ao disposto no art.º 118 n.ºs 1 e 2 do CPP - a inobservância de uma disposição legal que a lei não comina como nulidade - irregularidade que, não tendo sido tempestivamente arguida, nos três dias seguintes ao seu conhecimento, se tem como sanda, ex vi art.º 123 n.º 1 do CPP.
Conheceria, consequentemente, do fundo da questão.
Diga-se ainda que não se vê que desta interpretação resultem beliscados, de modo desproporcionado, os direitos de defesa do arguido ou o exercício do contraditório, por um lado, porque o arguido teve oportunidade de arguir a omissão da sua audição, teve oportunidade de recorrer da decisão - e aí demonstrar a incorreção do despacho recorrido, designadamente, a falta de razões para a revogação da medida antes aplicada - e teve oportunidade (que mantém) de requerer a sua audição, a qualquer momento, e esclarecer as razões do seu procedimento e, em última análise, demonstrar que não há razões para que lhe seja aplicada (ou mantida) a medida de coação aplicada.»
-» Acórdão do TRG/direito à imagem/fotografias no FB: o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23.11.2016 [relatora Auensa Gonçalves, texto integral
aqui] decidiu que «I - O direito à imagem, enquanto direito fundamental e autónomo, tem consagração constitucional, como decorre do estatuído no art. 26º, nº 1, da CRP, sendo imprescindível o recurso ao art. 79º, do C.C. para delimitação do seu respectivo âmbito, e o art. 199º, nº 2, do Cód. Penal, protege esse direito, na vertente do direito de uma pessoa recusar a exibição/exposição da sua imagem em público, sem o seu consentimento, por ser reflexo da sua identidade pessoal, como bem jurídico pessoal, correspondente a uma expressão directa da personalidade. II - Atenta a abrangência deste direito, deve perfilhar-se o entendimento de que o tipo objectivo do tipo de crime em presença consiste no registo fotográfico ou audiovisual da imagem de qualquer parte do corpo de outra pessoa ou na sua utilização ou permissão de utilização dessas imagens por terceiro. III - Assim, é subsumível à norma em apreciação [art. 199º, nº 2 b)] e, por isso, punível o comportamento do arguido que, em “perfis” falsos que criou no “facebook”, abertos ao público, com o nome “D…P… Nua”, ali postou duas fotos, em que se vêem, numa, as pernas e, noutra, parte do corpo da assistente captada numa altura em que esta estava a tomar banho, estando a identificabilidade da mesma assegurada pela indicação do respectivo nome, não obstante não constar nelas a sua cara, por se traduzir no uso de fotografias de outra pessoa (publicitadas no “facebook”), contra a vontade da pessoa retratada. IV - À semelhança de outros bens jurídicos correspondentes a liberdades fundamentais e de estrutura axiológico-normativa idêntica, também o direito à imagem se analisa numa dimensão positiva e numa dimensão negativa ou exclusiva: a total liberdade e legitimidade do concreto titular para, sem restrições, tanto autorizar como recusar o registo e o uso da sua própria imagem, assistindo-lhe, na expressão plena desse direito, o poder de decidir quem pode, não apenas registar, mas também utilizar ou divulgar a sua imagem. V – Por isso, deve conferir-se completa autonomia entre os dois actos susceptíveis de ofender o direito à imagem: o de a registar, que até pode ser lícito, nomeadamente por ter o consentimento da pessoa retratada; outro, bem diferente, o da sua posterior utilização/divulgação contra a vontade do retratado. Ora, diferentemente do que sucedia na vigência da versão originária do C. Penal de 1982 [art. 179º (que visava a conduta do agente que, «sem justa causa e sem consentimento de quem de direito», utilizasse fotografias, «indevidamente obtidas»)], é punível o uso de fotografias, contra a vontade do retratado, ainda que licitamente obtidas, designadamente por terem sido colhidas pelo próprio retratado. Reconhece-se, hoje, a necessidade da especial protecção jurídico-penal a esta faceta do direito à imagem, que, aliás, cada vez mais se acentua perante a enorme danosidade gerada pela potencial utilização das novas tecnologias na sua afronta, como no caso concreto sucedeu».
Transcrevendo o teor da fundamentação:
«O direito à imagem, enquanto direito fundamental e autónomo, tem consagração constitucional, como decorre do estatuído no art.º 26º, nº 1, da CRP, sendo imprescindível o recurso ao art. 79º, do C.C. para delimitação do seu respectivo âmbito.
Este último preceito estabelece:
«1. O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela; (…).
2. Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.
3. O retrato não pode, porém, ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio, se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada.».
Jorge Miranda e Rui Medeiros ( In “Constituição Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2005, p. 289/290.) defendem que os direitos fundamentais em causa consistem num direito à «reserva e à transitoriedade». No mesmo sentido, Costa Andrade ( In “Liberdade de imprensa e inviolabilidade pessoal, uma perspectiva jurídico-criminal”, Coimbra Editora, 1996, p. 131/132.), sustenta que «(…) a imagem configura um bem jurídico eminentemente pessoal, com a estrutura de uma liberdade fundamental, que reserva à pessoa uma posição de domínio. É à pessoa que assiste, e em exclusivo, o direito de determinar quem pode gravar, registar, utilizar ou divulgar a sua imagem. O direito à imagem emerge nesta linha como expressão concretizada da autonomia pessoal»
O Prof. Costa Andrade ( In Comentário Conimbricense do Código Penal.) anota que o art. 199º do C. Penal protege o direito à imagem como bem jurídico pessoal, correspondente a uma expressão directa da personalidade.
E referiu-se no acórdão da RE 29/05/2012 ( P. 253/07.3 JASTB.E1 - Martinho Cardoso.): «Trata-se de um bem jurídico eminentemente pessoal com a estrutura de uma liberdade fundamental e que reconhece à pessoa o domínio exclusivo sobre a sua própria imagem.»
Penalizam-se, assim, condutas cuja ilicitude resulta da sua concretização contra a vontade da pessoa a quem respeita a fotografia ou a filmagem ou a utilização ou permissão de utilização das mesmas, atentando contra o direito de qualquer pessoa a não ser fotografada nem ver o seu retrato exposto em público, contra a sua vontade, ainda o direito de não se ver apresentado em forma gráfica ou montagem ofensiva e malevolamente distorcida ou infiel.
Na verdade, toda a pessoa tem a faculdade de recusar a exibição/exposição da sua imagem por ser reflexo da sua identidade pessoal, ninguém pode ser exposto sem o seu consentimento. No caso de ser permitido o uso de uma fotografia ou de uma gravação, elas têm de ser empregues com todo o rigor e a autenticidade que merecem, não podendo ser descontextualizadas nem alteradas. Esta solução vale também, para os casos em que não sejam admitidas as suas utilizações ( Cfr. Vanessa Vicente Bexiga in «O direito à imagem e o direito à palavra no âmbito do processo penal» (in VV Bexiga - 2013 - repositorio.ucp.pt.), que acentua neste estudo: «o ritmo acelerado das descobertas das novas tecnologias tem feito com que a população assista a uma tremenda e nunca vista evolução, mas não sem repercussões... O ser humano está cada vez mais desprotegido e ameaçado pela ciência desde os microfones ocultos às escutas telefónicas e aos novos sistemas de videovigilância. É, neste ambiente, que a palavra e a imagem começam por ser banalizadas, de seguida, desprezadas e, hoje em dia, quase que esquecidas por muitos pela chamada “era facebook”».).
Neste contexto, e atenta a abrangência deste direito, perfilhamos o entendimento de que o tipo objectivo do tipo de crime em presença consiste no registo fotográfico ou audiovisual da imagem de qualquer parte do corpo de outra pessoa ou na sua utilização ou permissão de utilização dessas imagens por terceiro.
Igual entendimento foi acolhido no acórdão anteriormente citado da RE ao afirmar que «(…) É, com efeito, à pessoa que assiste o poder soberano de decidir quem pode gravar, registar, utilizar ou divulgar a sua imagem. Isto em consonância com o disposto no art.º 79.º, n.º 1, do Código Civil (direito à imagem): E sendo o objecto da protecção legal a imagem física da pessoa, embora nesta imagem prevaleça, naturalmente, o rosto, ela abrange todo o corpo».
M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio ( “Código Penal, Parte Geral e Especial”, Almedina, Março 2014, p. 812.) e Paulo Pinto de Albuquerque ( In “Comentário ao Código Penal”) defendem essa extensão da protecção visada pela norma em questão.
Admite-se, ao nível do elemento subjectivo, qualquer modalidade do dolo.
No caso, contrariamente ao alegado no recurso, mostra-se provado que o arguido, em “perfis” falsos que criou no “facebook”, abertos ao público, com o nome “(…) Nua”, ali postou duas fotos, em que se vêem, numa, as pernas e, noutra, parte do corpo da assistente (fls.93 e 94), esta última captada numa altura em que a mesma estava a tomar banho. Assim sendo, não obstante não constar a cara da assistente em tais fotografias, pensamos que tal comportamento se traduz no uso pelo arguido de fotografias de outra pessoa, divulgando-as (no “facebook”), contra a vontade da pessoa retratada, que, consequentemente, é punível por ser subsumível à norma em apreciação [art. 199º, nº 2 b)].
Com efeito, o direito à imagem abrange, como dissemos, qualquer parte do corpo. Ora, no caso, sabe-se, não só que as imagens pelo arguido divulgadas são do corpo da assistente, como, também, que o mesmo se encarregou de ampliar os efeitos da publicitação de tal identificabilidade, colocando no “perfil” o nome da assistente, acrescido, inclusivamente, da menção «Nua», com o que, à luz da normal experiência, potenciou o apelo ao visionamento de tais imagens.
Defende, ainda, o arguido que apenas têm relevância criminal os casos em que as fotografias tenham sido captadas ou tiradas contra a vontade do visado, uma vez que, a alínea b), do nº 2, do artigo 199º, do C. Penal, «se reporta às fotografias de “outra pessoa”, estando assim excluídos da factualidade típica os casos em que alguém se fotografa a si próprio (por não se tratar de fotografia de “outra pessoa”), não sendo também típica a utilização dessa fotografia, ainda que contra a vontade do retratado».
Aparentemente, a tese defendida pelo arguido ancora-se na redacção originária do C. Penal de 1982 (art. 179º), que visava a conduta do agente que, «sem justa causa e sem consentimento de quem de direito», utilizasse fotografias, «indevidamente obtidas», de «aspectos da vida particular de outrem». Porém, também aqui, estamos em crer que essa tese não tem qualquer acolhimento na actual redacção da alínea b) do art. 199º.
Com efeito, como parece resultar, imediatamente, do simples teor deste normativo, é punível o comportamento de quem utilizar fotografias, contra a vontade do retratado, ainda que licitamente obtidas, designadamente por terem sido colhidas pelo próprio retratado. Nem parece que poderia ser de outra maneira: uma coisa é a obtenção das imagens, que pode ser lícita, nomeadamente por ter o consentimento da pessoa retratada, outra, bem diferente, é a sua posterior utilização contra a vontade do retratado. Apesar de estar em causa o mesmo bem jurídico, há completa autonomia entre os dois actos susceptíveis de ofender o direito à imagem, o de a registar e o de a usar/divulgar. E, na expressão plena desse direito, é à própria pessoa visada que assiste o poder de decidir quem pode, não apenas registar ( Fotografar é fixar imagens de modo a poderem ser vistas em ocasião posterior, sendo a razão porque se fotografa irrelevante, mas, no art. 199º nº 2 CP, protege-se o direito à imagem independentemente da sua valência directa do ponto de vista da privacidade e inclusivamente do seu conteúdo – cfr. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, ob cit. p. 809.), mas também utilizar ou divulgar a sua imagem ( Cfr., neste sentido, o acórdão da RP de 5/6/2015 (p. 101/13.5TAMCN.P1 - José Carreto): «O direito à imagem constitui um bem jurídico-penal autónomo tutelado em si e independentemente do ponto de vista da privacidade ou intimidade retratada. O direito à imagem abrange dois direitos autónomos: o direito a não ser fotografado e o direito a não ver divulgada a fotografia. O visado pode autorizar ou consentir que lhe seja tirada uma fotografia e pode não autorizar que essa fotografia seja usada ou divulgada. Contra vontade do visado não pode ser fotografado nem ser usada uma sua fotografia. É suscetível de preencher o tipo legal de crime de Gravações e fotografias ilícitas, do art. 199.º nº 2, do Cód. Penal, a arguida que, contra a vontade do fotografado, utiliza uma fotografia deste, ainda que licitamente obtida e a publicita no Facebook.».).
Igualmente esta segunda faceta do direito à imagem exige a especial protecção jurídico-penal, cuja necessidade, aliás, cada vez mais se acentua perante a enorme danosidade gerada pela potencial utilização das novas tecnologias na sua afronta, como no caso concreto sucedeu.
À semelhança de outros bens jurídicos correspondentes a liberdades fundamentais e de estrutura axiológico-normativa idêntica, também o direito à imagem se analisa numa dimensão positiva e numa dimensão negativa ou exclusiva: a total liberdade e legitimidade do concreto titular para, sem restrições, tanto autorizar como recusar o registo e o uso da sua própria imagem. «E também aqui esta estrutura intersubjectiva e relacional do bem jurídico prejudica o estatuto dogmático e o regime jurídico-penal da manifestação de concordância do portador concreto: trata-se, com efeito, de um acordo que exclui a tipicidade. O exposto vale, no essencial, para o direito à imagem como autónomo bem jurídico-penal. Também aqui estamos perante um bem jurídico eminentemente pessoal com a estrutura de uma liberdade fundamental e que reconhece à pessoa o domínio exclusivo sobre a sua própria imagem. É, um efeito, à pessoa que assiste o poder soberano de decidir quem pode gravar, registar, utilizar ou divulgar a sua imagem. Isto em consonância com o disposto no art. 79°, n° 1, do CC (Direito à imagem)» ( Acórdão do STJ de 28-09-2011 (p. 22/09.6YGLSB.S2 - Santos Cabral).).
Em suma, à semelhança do que foi expendido pelo tribunal de 1ª instância, pode concluir-se que da matéria de facto provada decorre que o arguido utilizou as aludidas fotografias da assistente, postando-as nos “perfis” falsos que criou no “facebook”, o que fez contra a vontade e sem o consentimento da mesma, ainda que tais fotografias pudessem ter sido licitamente obtidas. E fê-lo de forma deliberada, livre e consciente, ciente da censurabilidade destas suas condutas.»
-» Acórdão do TRL/sigilo profissional de Advogado: tirado embora em sede não penal mas com interesse para esta, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.11.2016 [relatora Maria de Deus Correia, texto integral
aqui] decidiu, louvando-se no artigo 73º do EOA, que: «A análise jurídica de um contrato feita por “técnica de apoio jurídico”, advogada com inscrição activa na Ordem dos Advogados, ao serviço de uma empresa que presta serviços de assessoria, deverá incluir-se no âmbito da “consulta jurídica” prevista no art.º 1.º da Lei n.º 49/2004 de 24 de Agosto que define o sentido e o alcance dos actos próprios dos advogados.-Logo esta actividade está sujeita ao dever de sigilo profissional.»
-» Leituras/plebiscito da Constituição de 1933: que não passe por imodéstia mas não resisto a
convocar para aqui o que o que escrevi sobre um documento que encontrei por via das minhas deambulações entre alfarrabistas.
Está num dos vários blogs em que me disperso por me parecer consentâneo com o perfil do mesmo. Mas devido à natureza do tema faz sentido, creio, arquivá-lo aqui também.
O texto do escrito está
aqui.