Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Violência doméstica: EARHVD

Foi publicado a 16 deste mês o primeiro relatório da Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica foi aprovado no dia 31 de Outubro de 2017.
Reporta-se a dois crimes ocorridos no dia 27 de Setembro de 2015 (um homicídio consumado e um homicídio tentado), cuja decisão judicial definitiva foi recebida na EARHVD no dia 7 de abril de 2017.A equipa é presidida pelo Procurador da República, Rui do Carmo.
O acesso ao site e ao referido relatório pode ser obtido aqui

Prazos de inquérito: um esclarecimento

Participei na passada quinta-feira, 19 de Outubro,em Coimbra, num evento organizado pela Comissão de Direitos Humanos, Questões Sociais e da Natureza da Ordem dos Advogados dedicado ao tema dos prazos de inquérito. O tema é actual e projecta-se em processos pendentes, alguns em que tenho intervenção profissional. Procurei, por uma questão ética, explicitar essa situação e manifestar que gostaria que ficasse claro que a minha participação não tinha a ver com uma forma indirecta de fazer advocacia no espaço público. Ficam aqui algumas notas sobre o que penso sobre o assunto, até por terem surgido dúvidas quanto ao que ocorreu.

De facto, talvez pelo melindre do tema e dúvidas que vejo surgir quanto à razão do evento, se torne necessário deixar aqui, por apontamento, algumas das conclusões que exprimi.

-» afirmei que os prazos de duração do inquérito processual penal são «prazos máximos», como decorre literalmente da epígrafe do artigo 276º do CPP e se repete no corpo do mesmo;

-» permiti-me a ousadia de lembrar que, tendo sido membro na comissão de que emergiu em 1986 o projecto de lei que, por autorização legislativa, se tornou Código [comissão essa presidida pelo Doutor Figueiredo Dias] e, ante a consciência de que se estariam, sob a bandeira do Estado de Direito Democrático, a consagrar prazos de averiguação superiores aos da legislação do regime anterior, e fazendo-se isso em nome da necessária maior eficácia quanto ao combate à criminalidade, agora mais complexa e difícil de descortinar, teria de se fixar, como sucedeu com a minha aquiescência, uma duração máxima ao inquérito pré-acusatório para que àquela maior extensão do tempo de inquérito não se somasse a indeterminação do prazo;

Para a presidência de tal Comissão, criada pelo ministro da Justiça de então, Dr. Rui Machete, foi designado o Doutor Jorge de Figueiredo Dias, sendo seus membros o Dr. José Narciso da Cunha Rodrigues, que mais tarde viria a ser empossado no cargo de Procurador Geral da República, mantendo-se, no entanto, em funções na Comissão, o Dr. Manuel Maia Gonçalves, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, o Doutor Manuel da Costa Andrade, deputado à Assembleia da República e Professor da Faculdade de Direito de Coimbra, o Dr. João Manuel Franqueira de Castro e Sousa, então Assistente da Faculdade de Direito de Lisboa, e o autor deste livro. Outras individualidades vieram a participar nos trabalhos.
O texto do Projecto de Código está publicado em suplemento ao Boletim do Ministério da Justiça de 1986; a Proposta de Lei de autorização legislativa, contendo em anexo também o texto do Projecto, foi publicado pela Assembleia da República, em separata nº 7/IV ao Diário da Assembleia da República de 12 de Maio de 1986.

-» lembrei que, em outros locais do Código, há expressão dessa mesma ideia, e é ela que deu corpo, aliás, ao novo incidente da aceleração processual que se criou e que teve de se modificar por via da rejeição parlamentar do princípio constante da lei de autorização legislativa que o consagrava, esvaziando o mesmo da eficácia prática que se pretendia, a de injunção de cumprimento dos actos em atraso, de forma a prevenir a inconstitucionalidade que de outro modo seria decretada, estando solicitada a fiscalização preventiva do diploma em sede de exame pelo Tribunal Constitucional;

O projecto de Código foi sujeito ao Parlamento, para que este concedesse ao Governo autorização para o legislar, mas acompanhado de uma proposta de Lei de autorização legislativa em que a norma sob o sentido do diploma a aprovar era de uma considerável extensão. Fui encarregado pelo ministro da Justiça no momento, o falecido Dr. Mário Raposo, Bastonário que tinha sido da Ordem dos Advogados, de redigir tal projecto, com acompanhamento da comissão de onde sairia o projecto de Código, sendo essa a minha fonte de ciência quanto ao que sucedeu.

-» admiti que não se previu, é certo, outra sanção para o incumprimento do prazo de inquérito que não fosse a que decorresse de se poder considerar invalidade [por irregularidade, artigos 119º e 123º do diploma] de acusação fundada em inquérito ilegal por duração superior ao tempo imposto pela lei [de imposição injuntiva se trata e não de mera sugestão ou recomendação] ;

-» instado a tomar posição sobre a dicotomia em que o encontro se estava a centrar [prazo ordenador ou peremptório] exprimi claramente dúvidas quanto a tratar-se de prazo peremptório de cujo incumprimento decorresse a caducidade do direito de acusação que o inquérito preparava, ironizando que, afinal, todos os prazos são "ordenadores", pois visam conferir ordem aos actos processuais [pois, a meu ver, inexiste, aliás, comando legal de onde a caducidade se possa extrair].

Indo mais longe nas considerações, e já na fase do debate, acrescentei duas opiniões, agora quanto à solução do problema.

-» depois de se ter chegado a um ponto em que a jurisprudência quase pacífica [com uma excepção que foi, aliás, lembrada em outra intervenção] consagrou a doutrina dos prazos de inquérito serem peremptórios, e dado que a questão se estava a discutir num momento em que, uma orientação diversa [no sentido da perempção e da caducidade do direito a acusar], se projectaria em processos pendentes, alguns com larga retumbância social, permiti-me supor que não seria de esperar ou exigir da magistratura judicial solução que tivesse de suportar, junto da comunidade, o preço dos efeitos de tais consequentes arquivamentos, pois tudo pareceria proteccionismo a certas situações específicas;

-» lembrei que, quando, por efeito do Acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/89, um número incontável de processos foram pura e simplesmente arquivados, constatou-se que um número imenso destes, estava pendente em inquérito há mais de dez anos e [facto extraordinário] nenhum clamor público se levantou, sendo que a dor do anónimo [sujeito à cidadania de segunda de ser investigado durante tal prazo] não aceitava que fosse menor do que a dor de figuras públicas sujeitas a demoradas pendências, ambas respeitáveis, mas tudo a demonstrar que se trata de problema irresoluto mau grado a sua vetustez; 

-» explicitei que, no meu ponto de vista a investigação criminal [enquanto tal] não tem de estar sujeita a prazos, sim o inquérito enquanto categorial processual formal e nomeadamente a partir do momento em que corre contra pessoa determinada e, por maioria de razão, quando se constitui um cidadão como arguido;

-» parecia-me, pois, enfim, e disse-o, que, neste complexo contexto, a questão teria de ser resolvida por via legislativa, pelo estabelecimento claro de normas sobre os prazos máximos de inquérito com determinação das consequências para o seu desrespeito e [já agora] quanto ao prazo de formulação do requerimento de abertura de instrução, que deveria  ter uma duração proporcionada à duração do inquérito, fixada numa percentagem desta. Mais acrescentei que uma solução possível quanto À obtenção do cumprimento de prazos de inquérito seria a entronização de uma espécie de habeas actum pelo qual se obtivesse uma injunção judicial visando a prática dos actos processuais em falta.

-» tal alteração legislativa não deveria, por previsão expressa, aplicar-se aos processos pendentes.

Eis, o que sinto ser necessário trazer a público. Está prometida a edição formal do texto. Aqui são só breves apontamentos.

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Fonte da imagem: aqui.



Colóquio sobre contra-ordenações: Porto, dia 18 de Setembro

Tem lugar no próximo dia 18, no Porto, um Colóquio, organizado pelo Forum Penal, sobre contra-ordenações para o qual tiveram a gentileza de me convidar. 
Escolhi como tema uma das facetas esdrúxula do regime do processo contraordenacional que se me afigura grave: a aplicabilidade, "consoante", do regime subsidiário processual penal. É a jurisprudência das conveniências na sua mais insegura expressão.


Plataforma digital da justiça


Cito da Advocatus, com a devida vénia o anúncio do lançamento da Plataforma Digital da Justiça [link aqui]: «funcionando como um motor de busca e acessível em www.justiça.gov.pt, os cidadãos, empresas e instituições já podem aceder a 68 serviços públicos distintos (tribunais, propriedade industrial, registos, investigação criminal, reinserção e serviços prisionais ou medicina legal, entre outros exemplos).
Entre os serviços disponibilizados por esta plataforma, que se insere no Plano de Ação e Modernização e da Transformação da Justiça, incluem-se opções como "consultar o meu processo executivo", "iniciar processo de casamento", "pedir certidão de nascimento", "pedir certidão judicial eletrónica", "balcão divórcio com partilha", "pedir e consultar registo criminal de pessoas", "agendar pedido do cartão de cidadão" e "pedir mediação laboral". 
É também possível simular as taxas de justiça a pagar por um determinado processo, bem como calcular os custos associados à compra de casa.
Resultado de um trabalho efetuado ao longo de oito meses e de um investimento de 520 mil euros, através do Fundo de Modernização da Justiça, a Plataforma inclui ainda dois blogues temáticos e sites dos organismos que a integram.»

Autoridade da Concorrência: biblioteca

Segundo a newsletter da instituição: «A biblioteca da AdC distingue-se por ser uma das mais completas em assuntos de concorrência, em Portugal. Localizada no 1.º piso, tem um acervo de 2.334 obras, 241 títulos de publicações periódicas, 130 documentos eletrónicos e 3.795 analíticos (artigos catalogados e indexados individualmente, que constam de monografias ou publicações periódicas), disponíveis para consulta sujeita a agendamento.
Desde o início do ano, este espaço também acolhe uma série de seminários mensais, abertos ao público, com convidados nacionais e internacionais da área de política de concorrência, tornando-se num espaço de debate público e promoção de uma cultura de concorrência em Portugal.»

Nem no Verão as leis vão de férias!


O Verão é teoricamente tempo de férias. Hoje é teoricamente o último dia. Não para a maioria dos que trabalham na Justiça Criminal, em sentido amplo, considerando nisso o Direito Punitivo em geral. Nem, pelos  vistos, para o legislador que nos semeou diplomas que são, alguns autênticos Códigos. Tentando manter a casa em ordem, eis uma possível arrumação da legislação essencial. 


Cooperação internacional

Estabelece os princípios e as regras do intercâmbio transfronteiriço de informações relativas ao registo de veículos, para efeitos de prevenção e investigação de infrações penais, adaptando a ordem jurídica interna às Decisões 2008/615/JAI e 2008/616/JAI

Estabelece os princípios e as regras do intercâmbio transfronteiriço de informações relacionadas com a prática de infrações rodoviárias num Estado membro da União Europeia, transpõe a Diretiva 2015/413/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2015, e revoga a Lei n.º 4/2014, de 7 de fevereiro


Estabelece a organização e o funcionamento do Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional

Aprova o regime jurídico da emissão, transmissão, reconhecimento e execução de decisões europeias de investigação em matéria penal, transpõe a Diretiva 2014/41/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, e revoga a Lei n.º 25/2009, de 5 de junho

Regula a aplicação e a execução de medidas restritivas aprovadas pela Organização das Nações Unidas ou pela União Europeia e estabelece o regime sancionatório aplicável à violação destas medidas

Regula a troca automática de informações obrigatória relativa a decisões fiscais prévias transfronteiriças e a acordos prévios sobre preços de transferência e no domínio da fiscalidade, transpondo as Diretivas (UE) 2015/2376, do Conselho, de 8 de dezembro de 2015, e (UE) 2016/881, do Conselho, de 25 de maio de 2016, e procedendo à alteração de diversos diplomas



Mercado de capitais/branqueamento

Reforça a clareza e a segurança dos intervenientes nos mercados e dos investidores de dívida pública portuguesa

Estabelece medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, transpõe parcialmente as Diretivas 2015/849/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, e 2016/2258/UE, do Conselho, de 6 de dezembro de 2016, altera o Código Penal e o Código da Propriedade Industrial e revoga a Lei n.º 25/2008, de 5 de junho, e o Decreto-Lei n.º 125/2008, de 21 de julho

Aprova o Regime Jurídico do Registo Central do Beneficiário Efetivo, transpõe o capítulo III da Diretiva (UE) 2015/849, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, e procede à alteração de Códigos e outros diplomas legais

Modifica as condições em que um país, região ou território pode ser considerado regime fiscal claramente mais favorável, alterando a Lei Geral Tributária

Lei n.º 100/2017 - Diário da República n.º 165/2017, Série I de 2017-08-28108063581
Altera o Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de outubro, o Código de Procedimento e de Processo Tributário, e o Decreto-Lei n.º 6/2013, de 17 de janeiro

Diversos

Lei n.º 94/2017 - Diário da República n.º 162/2017, Série I de 2017-08-23108038373
Altera o Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro, o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro, a Lei n.º 33/2010, de 2 de setembro, que regula a utilização de meios técnicos de controlo à distância (vigilância eletrónica), e a Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto

Considera contraordenação grave a paragem e o estacionamento em lugar reservado a veículos de pessoas com deficiência (décima sexta alteração ao Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio)

Regulamenta o regime do requerimento, da emissão, da disponibilização e da consulta da certidão eletrónica no âmbito dos processos dos tribunais judiciais, dos tribunais administrativos e fiscais e da competência do Ministério Público

Quarta alteração à Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, que aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional

Cria o serviço público de notificações eletrónicas associado à morada única digital

Regula a identificação judiciária lofoscópica e fotográfica, adaptando a ordem jurídica interna às Decisões 2008/615/JAI e 2008/616/JAI do Conselho, de 23 de junho de 2008

Reforça o quadro legislativo para a prevenção da prática de assédio, procedendo à décima segunda alteração ao Código do Trabalho, aprovado em anexo à Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, à sexta alteração à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada em anexo à Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, e à quinta alteração ao Código de Processo do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de novembro

Estabelece o regime jurídico da prevenção, da proibição e do combate à discriminação, em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem

Aprova e regula o procedimento especial de acesso a dados de telecomunicações e Internet pelos oficiais de informações do Serviço de Informações de Segurança e do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa e procede à segunda alteração à Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário)

Defesa da transparência e da integridade nas competições desportivas (terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro, e segunda alteração aos Decretos-Leis n.os 273/2009, de 1 de outubro, 10/2013, de 25 de janeiro, 66/2015, de 29 de abril, e 67/2015, de 29 de abril)
Procede à quinta alteração à Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, que aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional e transpõe as Diretivas 2014/36/UE, de 26 de fevereiro, e 2014/66/UE, de 15 de maio de 2014, e 2016/801, de 11 de maio de 2016

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Gravuras de John Leech [1817-1864], publicadas na revista Punch: a máquina vitoriana do banho.

Adiamentos, férias, e o jogo do pião

Ter feito parte da Comissão de que saiu o Código de Processo Penal de 1987 e ter ainda conservada uma relativa memória faz-me ter por vezes um pensamento que se diria pessimista se não fora realista.
Quis-se então, após acalorada discussão, evitar os adiamentos sucessivos de audiências, sobretudo aqueles que faziam mediar entre cada sessão um tempo tido por inaceitável.
O Código iria reflectir, de entre os vários princípios programáticos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a ideia do tempo razoável para a justiça restituir a paz social através de um processo que só assim seria justo.
Entre as várias soluções propostas - e todas elas sopesando experiências transactas que haviam redundado em fracasso - triunfou a de prever um prazo - trinta dias - entre cada adiamento de audiência, e uma penalização: a caducidade da prova.
A primeira partiu de uma asserção, a de para além de trinta dias, a memória humana, mesmo a privilegiada memória judicial - ademais a de quem tenha que reter factos de vários processos e sobretudo complexos - já começa a sofrer dúvidas e incertezas; a segunda resultou de uma constatação: a de norma procedimental para a qual o legislador não fixe sanção é, lamentavelmente, norma para não cumprir * .
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Ante isto a jurisprudência que fez?
Começou por duvidar sobre se, estando a prova gravada e podendo qualquer dos intervenientes processuais - maxime os juízes - consultarem as gravações, se justificaria este fundamento de perda de memória e se, nesse caso, o regime se aplicaria.
Depois, tendo de cumprir em férias judiciais, o ritual de designar audiência para que prova se produzisse, e tantas vezes ocorrendo que se tratava de mera burocracia - que um espírito irónico sintetizou, ante o caricato do que amiúda ocorria, com o «perguntar as horas ao arguido ou a uma testemunha e já está!» - e ante o desprestígio que tal implicava - pois continuar julgamentos em férias, eis algo que a pouquíssimos agradava - pura e simplesmente veio o legislador em socorro dos recalcitrantes e, com perda de memória ou em ela, já que a prova é gravada, pura e simplesmente os trinta dias contam sim, mas nas férias não!
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Eis os números 6 e 7 do artigo 328º do CPP, tal como resulta da Declaração de Rectificação n.º 105/2007, a qual, como se lembrarão alguns - foi há mais de trinta dias! - Rectifica a Declaração de Rectificação n.º 100-A/2007, de 26 de Outubro, que rectifica a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que procede à 15.ª alteração e republica o Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro:

«(..)

6 - O adiamento não pode exceder 30 dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, por impedimento do tribunal ou por impedimento dos defensores constituídos em consequência de outro serviço judicial já marcado de natureza urgente e com prioridade sobre a audiência em curso, deve o respectivo motivo ficar consignado em ata, identificando-se expressamente a diligência e o processo a que respeita. 
7 - Para efeitos da contagem do prazo referido no número anterior, não é considerado o período das férias judiciais, nem o período em que, por motivo estranho ao tribunal, os autos aguardem a realização de diligências de prova, a prolação de sentença ou que, em via de recurso, o julgamento seja anulado parcialmente, nomeadamente para repetição da prova ou produção de prova suplementar. 

(...)»

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Não gosto de ter opiniões definitivas. Mas pergunto se há lógica nisto porque, a existir, que se acabasse de vez com os trinta dias em férias e antes delas e ficasse a regra de que os julgamento começam quando é possível, continuam quando houver possibilidade e terminam quando chegar o momento. Claro que há a imediação e a concentração e todos esses princípios maiores do processo penal - e há quem ensine este ramo do Direito só com base em princípios, gerando ilusões - mas, ante a prática que os desmente, que melhor fazer do que uma legislação de franqueza?
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Dirão que o que acima fica é cinismo ou ironia. Seguramente sim. Estaria sempre contra uma tal lei, como estive contra aqueles casos em que para uma sessão vi marcados vários julgamentos, de que se faz um pouco de um e um pouco de outro, e assim sucessivamente, vários por manhã, outros por tarde, como piões vários a rodopiar.
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* Veja-se o que se passou em matéria dos prazos de duração do inquérito. Bem escreveu o legislador do artigo 276º do Código de Processo Penal e por duas vezes - uma na epígrafe do preceito outra no corpo do seu número 1 - que se tratava de prazos «máximos». Como para o desrespeito desses prazos não estipulou sanção, nem outra consequência salvo a inoperante aceleração - porque não sendo um mecanismo de habeas actum não contém uma intimação a agir, mas mera recomendação para que se aja - ficou tudo como aquilo que hoje é matéria de polémica na comunicação social: em suma, havendo prazos máximos escritos naquele artigos eles são, afinal, outros, pois o inquérito pode eternizar-se até à prescrição do procedimento criminal. Isto é, como se o legislador tivesse previsto: «O Ministério Público encerra o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação nos prazos máximos previstos nos artigos 118º a 121º do Código Penal» [seja os respeitantes aos prazos de prescrição do procedimento criminal].
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Fonte da imagem: aqui

Uma nota pessoal


Uma nota pessoal.
Tentativas sucessivas e organizar este espaço como lugar de frequência regular têm gorado, assim como as para lhe dar uma forma e conteúdo que me convençam.
Quem vive em circunstâncias tem dificuldades acrescidas e, entre outras, as da minha vida profissional são um sorvedouro de tempo. E o facto de não me querer confinar ao que no Direito está, nem ao que no Direito são as suas leis. 
Os períodos que se convencionam chamar de férias dão normalmente tempo para reflexão, pois criam a distância e são época de balanço. Como nas datas certas, uma delas a da passagem do ano, ou a reabertura do ano judicial, a efectiva, não a comemorativa, a primeira para aqueles, e não é o caso, que têm prazos processuais que se interrompem.
Voltei. Uma semana fora do meu habitat, embora com as obrigações a cercarem-me, como incêndios de Verão, e eis-me desta feita sem planos para aqui, apenas com o pudor de quem prometeu muito e quase sempre faltou.
Veremos o que será possível.
Tenho, para acabar, a escrita de uma monografia sobre o crime de burla. Arrasta-se há um ror de tempo. Ao ler o que escrevi desse opúsculo, pressinto que há ali ideias novas, digo isso, porque não as vi no que li mas seguramente nunca se lê tudo. Como dizia como ironia o meu professor de Direito Internacional Público, André Gonçalves Pereira, por mais esforços que façam para terem ideias originais, há sempre um professor alemão dos últimos trezentos anos que já pensou o mesmo. Vou esforçar-me por levá-lo à estampa. A ideia era o livro ser o continuador de uma série, de que escrevi um sobre o crime de peculato, um outro sobre o crime de participação económica em negócio.
Há outros projectos de escrita, confinados ao campo do Direito.
Este blog, no plano da utilidade pessoal, tinha a pretensão de me obrigar a estar actualizado e atento. Nunca o pensei como serviço público, pois seria uma vergonha maior. Nele reflecte-se apenas o que ando a fazer no planície do Direito. Pouco, como se vê. Nas escarpas da cultura jurídica, ainda menos. Oxalá mude. Luto por isso.
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Na vida tudo é relativo. Sepultado em Igreja de São Domingos de Benfica, em túmulo de mármore de Montelavar, João das Regras, tem direito de menção aos pés do cavalo de El-Rei D. João I. Ali na Praça da Figueira. 
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Fonte da imagem: aqui.

Branqueamento de capitais: esta quarta-feira

Agradecido à Delegação da Ordem dos Advogados de Setúbal que me confiou a responsabilidade. O tema tornou-se complexo e mais ainda com a pendência no Parlamento de uma iniciativa legislativa que estabelece medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, transpondo a Diretiva (UE) n.º 2015/849 e executando o Regulamento (UE) n.º 2015/847. Ver aqui o texto respectivo e o estado dos trabalhos parlamentares.

Regime e Oposição: a Ordem dos Advogados no epicentro da Revolução Nacional


Fez ontem 91 anos, a Ordem dos Advogados. Publico o texto de uma intervenção que, no âmbito do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas na Universidade Nova de Lisboa me foi permitido efectuar.


Surgiu a Ordem dos Advogados como «pessoa jurídica», sem mais qualificativos, em 1926, em plena Revolução Nacional; conheceu em 1933 o período em que passou a integrar a categoria jurídica de Sindicato único dos Advogados, elemento primário da organização corporativa. A sua plena integração nas estruturas do corporativismo nunca veio, porém, a alcançar-se, pois, pela sua protecção à sombra do Estatuto Judiciário, desde 1927, foi a ligação ao Ministério da Justiça que em 1944, dentro dos limites do viável, lhe salvaguardou a autonomia, enfim consagrada como lei em 1984.


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Fundada a 12 de Junho 1926 [i] , a Ordem dos Advogados surgiu duas semanas após a Revolução do 28 de Maio, dando corpo a um projecto que se atribuiu ao ministro da Justiça da República. António Abranches Ferrão [ii] , na sequência de vários outros projectos que provinham desde meados do século dezanove, um dos quais o de José da Veiga Beirão, levado ao Parlamento em 1887 [iii]. Durante oitenta anos se tentara, em vão, ir mais além do que a simples Associação dos Advogados de Lisboa, criada em 1838, sob determinação de D. Maria II, associação que, segundo lei fundadora da Ordem, ficou incumbida de convocar a assembleia geral que instalaria o novo corpo representativo da totalidade dos advogados portugueses.

Surgiu ao mesmo tempo que a Câmara dos Solicitadores, e curiosa e mesmo irónica é a razão pela qual se manteve a dicotomia destes dois organismos, entre os quais se repartia o mandato judicial.

Dando a palavra ao ministro Manuel Rodrigues Jr., [iv] ao qual se deve o diploma fundador:

«A repartição do mandato judicial não existe em vários países, nem parece absolutamente necessária; mas existe entre nós e é uma razão para que subsista, talvez a única».

Manuel Rodrigues, como ficaria conhecido [v] , havia sido nomeado ministro da Justiça e dos Cultos dias antes, a 3 de Junho. Invulgar pela inteligência, num só ano fizera todo o ensino liceal e alcançara o diploma do curso complementar de ciências jurídicas, em Coimbra, com a nota máxima de 20 valores. Doutorado, seria um dos da plêiade de Cabral de Moncada, Beleza dos Santos, Mário de Figueiredo, escol de altíssima craveira intelectual e todos com obra no campo da Justiça.

Em dois anos de ministério, pois cessaria funções a 11 de Abril de 1928, haveria de dar corpo a realizações de enorme vulto: reorganizara o Conselho Superior Judiciário, reformara o processo civil e o criminal, as regras atinentes ao funcionamento dos serviços de justiça, reorganizara o Arquivo de Identificação, regulando e tornando obrigatório o uso do bilhete de identidade. No mesmo dia em que é firmado o diploma da criação da Ordem dos Advogados foi nomeado José Albertos dos Reis, professor da Faculdade de Direito de Coimbra, para elaborar os projectos de alteração dos Códigos de Processo Civil e Comercial.

Quando em 1993 deu à estampa um pequeno opúsculo [vi] em cujas 95 páginas compila, em linguagem clara, o que fora parte da sua obra na Justiça, sublinha da mesma, menos a ideologia do que considerara ser a «Pátria regenerada» fruto da «gente nova, verdadeira intérprete da alma nacional», libertadora de uma Nação que estava «a saque», mas o que, no campo da eficácia, da organização, da pragmática lograra construir, visando a celeridade e segurança.

Cito [páginas 18 e 19] este trecho elucidativo: 

«Quando, em 1926 dispus que nenhum juiz podia tomar posse dos lugares para que fosse transferido ou promovido sem apresentar certidão comprovativa de haver proferido sentença nos processos conclusos, encontraram-se muitos pendentes há 40 ou 50 anos, e certo juiz ate um julgou um processo que tinha entrado no tribunal no dia em que fizera exame de instrução primária».

Regressaria ao Ministério em 1932 para um mandato que perduraria até a 28 de Agosto de 1940. Faleceria em 1946. Num comovido discurso de memória, proferido na terra natal do homenageado, a freguesia da Bemposta, concelho de Abrantes [vii] , o advogado António de Sousa Madeira Pinto, Vogal do Conselho Superior, em representação do Conselho Geral, sublinharia precisamente que, fundador da Ordem dos Advogados, Manuel Rodrigues vira ser a advocacia, sonho da juventude, breve episódio na sua vida, ele que deu vida à Ordem dos Advogados.

Integrara o que se chamaria o «grupo de Coimbra» - Fezas Vital, Mendes dos Remédios, Costa Leite (Lumbrales) e Oliveira Salazar – que os “espadas” do 28 de Maio chamaram ao poder, vitorioso o 28 de Maio e instaurada, assim, a Ditadura Nacional. Quando, incompatibilizados com a situação política e militar, Salazar e Mendes dos Remédios regressam a Coimbra, Manuel Rodrigues fica e prossegue a sua obra sob o Triunvirato de que faziam parte pelo Almirante José Mendes Cabeçadas, Jr., Óscar Fragoso Carmona e Gomes da Costa.

Eclético do ponto de vista político, chegando a granjear fama de socialista, como diria Marcelo Caetano, era um republicano conservador, alinhado com o ideário jurídico que em Itália encontrara expressão no pensamento de Alfredo Rocco, em despique de ideias e de ambição com Salazar, relativamente ao qual publicou no último dia do ano de 1938 um artigo irónico em O Século intitulado O Homem que Passou, pelo qual perpassava a ideia de que aquele se deveria retirar da política.

Cito, com a grafia original, este excerto, em que à prosa de fino estilo, se junta como se uma dorida mensagem:

«Cada homem que passa traz, na medida própria, o seu contributo ao mundo; enriquece-o com o esfôrço do seu braço e com a fulguração do seu cerebro e, quando o braço descai fatigado ou o cerebro já não fulgura, o seu contributo está prestado. Disse a sua mensagem e doravante a sua mensagem não sugestiona, perturba; a sua presença não anima, embaraça; e até a sua ternura não aquece, fatiga. E avanço mesmo em dizer que para êle próprio é um bem. Em um mundo em que tudo cansa também a vida cansa; mesmo quando se desenhou um alto ideal e êle se fez realidade, mesmo quando a fada que doba os fios da existencia os dobou sem os enredar.»

Um «sobrevivente nato», o apodou Filipe Ribeiro de Menezes, um dos mais recentes e conceituados biógrafos de Salazar [viii] .

O diploma, pelo qual deu vida à Ordem dos Advogados, tenta, como se diz no preâmbulo, uma arquitectura de compromisso entre o modelo liberal francês e o modelo italiano.

Quais eram eles, resume-o, muito oportunamente, Alberto Luís, em artigo publicado na Revista da Ordem dos Advogados [ix] .

Segundo o primeiro, o exercício da Advocacia pressupunha licenciatura em Direito por Universidade do Estado, e, apesar do carácter liberal da profissão, a mesma era governada por leis e regulamentos públicos, havendo lugar a um juramento que, entronizado em 1810 e sucessivamente abrogado e reposto, era no sentido de impedir os advogados de criticarem as leis e as autoridades públicas; enfim, caracterizava tal sistema a criação, alcançada em 1920, de uma Associação Nacional de Advogados.

Já o modelo italiano, decorrente de uma Lei de 25 de Março de 1926 assentava numa estruturação da advocacia que implica a sua funcionalização. Por um lado, impunha-se o elitismo decorrente de um estágio de cinco anos, seguidos de um exame de habilitação, e da existência de um quadro privativo de advogados a quem era permitido pleitear junto dos tribunais superiores; por outro, impôs um juramento de fidelidade aos superiores interesses da Nação, o que implicou a irradiação de mais de dois mil advogados, considerados refractários à ordem política vigente; enfim, a Lei Rocco 3 de Abril de 1926, uma das leis fascistíssimas, as ordens dos advogados e procuradores ficaram enquadrados como «sindicatos únicos».

Prevendo-se no mesmo que para a sua entrada em vigor haveria de cuidar-se da respectiva regulamentação, a conturbada evolução do tempo haveria, porém, de surpreender, pois ao invés do expectável, o que surgiu a 18 de Setembro foi um novo e extenso diploma que revogaria aquele que era suposto apenas regulamentar [x] e procederia, num extenso articulado de oitenta e oito artigos, à publicação de um novo estatuto da Ordem, a qual era, assim, refundada.

Qual a razão de uma tal opção legislativa perde-se na penumbra dos dias, pois que o novo diploma legal, que tornou o anterior mero «apontamento de trabalho» [xi] está desprovido de preâmbulo que lhe explique o sentido; e não cabe aqui proceder à comparação entre este novo diploma legal e o seu antecedente.

Fundador da Ordem dos Advogados, Manuel Rodrigues cuidou da sua subsistência em autonomia financeira, condição essencial da sua sobrevivência e assim atribuiu-lhe verba obtida com a procuradoria judicial e a remuneração das defesas oficiosas contadas em processos judiciais.

A 26 de Janeiro de 1927 [xii] eram 1720 o número de Advogados inscritos. O primeiro Bastonário foi Vicente Rodrigues Monteiro [xiii] . Fora durante a Monarquia Governador Civil de Lisboa, Presidente da Câmara dos Deputados, Advogado da Casa Real durante os últimos três reinados, e da Casa de Bragança.

Seguir-se-ia, entre 1930 e 1932, o mandato do Bastonário Fernando Martins de Carvalho, um republicano cujo partido abandonara para se filiar nas hostes de João Franco, pelo que, proclamada a República tivera de se exilar no Brasil onde se licenciaria no ano de 1911, só regressando a Portugal em 1915.

Eram então tempos de conservadorismo e de organização da Ordem e de convivência pacífica desta com o poder político.

Sucessivamente presente como sua parte integrante nos dois Estatuto Judiciários que se seguiram em 1927 e 1928, a Ordem dos Advogados encontraria, a partir de 1933, com a entronização do Estado Novo de formato corporativo o seu momento agónico, abrindo-se brecha quanto à questão da sua autonomia face ao novo figurino para a estruturação as entidades de Direito Público. Era então Bastonário, pois que iniciara o seu mandato a 21 de Março de 1933, José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães, deputado que fora à Constituinte de 1910, três vezes ministro da República democrática – Justiça, Negócios Estrangeiros e Instrução Pública – e directo colaborador de Afonso Costa.

O modelo político corporativo havia sido introduzido entre nós, como confluência de duas linhas de pensamento: pela positiva, a doutrina do Integralismo Lusitano – de António Sardinha, Hipólito Raposo, Alberto de Monsaraz, Pequito Rebelo e tantos – e a doutrina da Encíclica Pontifícia do Papa Leão XIII, a Rerum Novarum, acolhida que fora, precisamente em Coimbra, junto do Centro Académico de Democracia Cristã, fundado em 1901, cidade alfobre das mentes que, inspirados pelos princípios da Acção Católica, tornariam, no quadro tumultuoso do 28 de Maio de 1926, a Revolução Nacional no Estado Novo - Gonçalves Cerejeira, António de Oliveira Salazar, Francisco Veloso, Carneiro Mesquita, Diogo Pacheco de Amorim, Joaquim Dinis da Fonseca e José Nosolini - ; pela negativa, como reacção ao sindicalismo revolucionário que levaria Francisco Rolão Preto, um dissidente do Integralismo, à cadeia em 1934 e ao exílio, e em geral à jacobina e maçónica democracia demo-parlamentar, que orientara o regime republicano saído da Revolução de 1910.

Proferindo, a 13 de Março de 1935, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, a lição inaugural do Curso de Direito Corporativo, que por via do Decreto-Lei n.º 23 23 382, de 20 de Dezembro de 1933, havia sido introduzido no currículo universitário, em substituição do curso de economia social, Marcelo José das Neves Alves Caetano, lembrando aquelas fontes como sendo as da doutrina corporativa, [xiv] aditaria:

«Nalguns países o corporativismo recebe ainda influências da doutrina socialista, e aceita grande parte do pensamento soreliano. O sistema corporativo português, porém, parece-me apenas filho destas duas correntes: a nacionalista e a católico-social. Pode apenas admitir-se a acção das doutrinas do socialismo catedrático, muito favoravelmente acolhidas na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra pelo eminente Prof. Marnoco e Sousa» [xv] .

E, no seu característico estilo, formal e sistematizado, os princípios fundamentais do sistema corporativo [xvi] :


«1- A vida económica não segue uma direcção inelutável, depende da vontade humana.


«2- A actividade económica deve guiar-se por uma profunda preocupação moral.

«3- Não há duas classes sociais irredutivelmente opostas: mas um número indefinido de grupos económicos que devem operar em colaboração harmónica.

«4- A personalidade humana deve respeitar-se em toda a ordem política, económica e social.

«5- A actuação social do individuo deve desenvolver-se através do seu grupo económico.

«6- É às categorias juridicamente organizadas e dotadas de funções de autoridade pública, que o Estado deve deixar a resolução dos problemas da vida económica.

«7- A Nação é o quadro natural em que se organizam e movimentam as classes. O interesse nacional está acima de todos os interesses particulares.

«8- O Estado tem deveres a cumprir na vida económica e social. Incumbe-lhe orientar, dirigir e fiscalizar toda a actividade nacional.»


A estruturação da vida social e política portuguesa sob a égide do corporativismo deu-se por via legal. Não é de estranhar, vindo a ideia de um espírito para cuja compreensão o jurídico tem de ser convocado, como meio e como limite: António de Oliveira Salazar via no Direito forma natural de expressão das suas ideias sobre o Estado e, numa outra dimensão, limitação ao próprio Estado e com ele comungavam os que, com espírito legista, deram forma jurídica à substância política do regime. Daí que Portugal, sob a sua égide, e porque limitado pela Lei, não tenha sido um totalitarismo, o que acentuam aqueles que com isenção não toldada pela ideologia analisam o regime.

Publicado a 23 de Setembro de 1933, Decreto-Lei n.º 23 048, que aprovou o Estatuto do Trabalho Nacional, através dele se construíram três pilares fundamentais da nova ordem: primeiro, os indivíduos, a Nação e o Estado na ordem económica e social; segundo, a organização corporativa e, finalmente, a magistratura do trabalho.

Já a 11 de Abril de 1933 entrara em vigor uma Constituição, que definia no seu artigo 5º o Estado português como uma República unitária e corporativa e onde, ao enunciar o que denominou serem os «elementos políticos» considerou revestirem tal qualidade a família, as corporações e as autarquias, sendo que nas corporações morais e económicas «estarão organicamente representados todos os elementos da Nação» (artigos 17º e 18º), que ao Estado incumbia «reconhecer» (artigo 14º), havendo uma Câmara Corporativa, meramente consultiva, a funcionar junto da Assembleia Nacional (artigo 102º) [xvii] .

Interessante que num diploma, como o Estatuto do Trabalho Nacional, cuja sistemática é ele próprio a tradução de uma filosofia, a magistratura do trabalho tenha encontrado o seu lugar relevante, significativo, aliás, de novo se retoma a ideia do primado do Direito sobre a estruturação política tout court.

Num ritmo sequencial, sucessivos a este Estatuto, foi aprovado um conjunto de diplomas que complementaram a fisionomia do edifício cuja construção estava em causa:

O Decreto Lei n.º 23 049, sobre os Grémios, organismos corporativos das entidades patronais;

O Decreto-Lei n.º 23 050, sobre os sindicatos nacionais;

O Decreto Lei n.º 23 051, sobre as Casas do Povo;

O Decreto-Lei n.º 23 052, sobre a construção de casas económicas;

O Decreto Lei n.º 23 053, que cria o Subsecretariado das Corporações e Previdência Social e o Instituto Nacional do Trabalho e Previdência.

De todos eles seria este último aquele que marcaria a pedra de toque do sistema e o diferenciaria do corporativismo fascista italiano porquanto entre nós tratou-se de fazer entroncar o sistema na dependência de uma entidade administrativa com ligação directa ao Governo, no caso, o Sub-Secretariado das Corporações e Previdência Social, ocupado desde o seu início até 1936, pelo matemático Pedro Teotónio Pereira, o qual seria extinto em 1950 para dar origem ao Ministério das Corporações e Previdência Social, dando-se, assim, mais um passo na governamentalização global do sistema.

Nesse ano, a 23 de Março, e precisamente a propósito desta governamentalização, Marcelo Caetano, a convite do Gabinete de Estudos Corporativos do Centro Universitário de Lisboa, proferia na Sociedade de Geografia, fazendo eco a uma revolta mansa vinda do recôndito do seu espírito essencialmente conservador, daria o mote a dúvidas que seriam, afinal, críticas:

«Ora a verdade é que no fim de 17 anos de regime corporativo não temos corporações. Portugal é um Estado-corporativo em intenção: não de facto. O mais que se pode dizer é que temos um Estado de base sindical-corporativa ou de tendência corporativa, mas não um Estado corporativo» [xviii] .
E adiante:

«Dever-se-ia ter criado nessa altura o Ministério das Corporações? Salvo o devido respeito pelas opiniões em contrário, eu penso que num regime corporativo não há lugar para o Ministério das Corporações. Parece um paradoxo.» [xix]

E, em remate lógico do seu pensamento:

«E essas grandes corporações nacionais não devem ser direcções-gerais de um Ministério: o lugar do seu encontro umas com outras e de todas com os órgãos superiores do Estado é, por definição, a Câmara Corporativa. Aí devem poder formular os seus votos, aí devem poder tratar com o Governo; aí devem pronunciar-se, como consultoras, sobre as leis da Nação.» [xx]
De corporativismo de Estado se tratou, pois, governamentalizado logo desde a sua génese, orientado a abranger a representação nacional através da sua inserção profissional, complementarmente à representação nacional através de uma Câmara electiva, alcançada por sufrágio directo, a Assembleia Nacional, que era, ao lado do Chefe do Estado, do Governo e dos Tribunais, órgão de soberania.

Mostrando a solução de compromisso alcançada, escreveria Marcelo Caetano nas suas lições universitárias de Direito Constitucional [xxi] :

«O desfavor em que se achava a ideologia democrática não o impediu [ao legislador] de consagrar na Constituição alguns dos seus princípios fundamentais, equilibrando-os com as normas relativas aos órgãos do governo e às relações entre os respectivo poderes.»
Implementado o regime corporativo, assim a questão da Ordem dos Advogados – e afinal a das Ordens profissionais cujos membros exerciam em regime liberal a sua profissão – se colocava como um dilema: ou prevalecia o espaço de liberdade em que vinham situadas, e a independência da actuação profissional dos seus filiados, que não sendo patrões não seriam também trabalhadores, no sentido dicotómico em que o binómio capital/trabalho se delineava; ou, a integrá-las no sistema corporativo, as profissões respectivas teriam de inserir em um dos termos em presença: a opção fez-se no sentido de consagrar as Ordens, e, destarte também a dos Advogados como sindicato, no caso «sindicato único».

Explicando, assim resumiria o conceito em presença João Pinto da Costa Leite (Lumbrales), em livro [xxii] publicado precisamente nesse ano de 1936, a lógica da unicidade sindical tal como a via o regime deposto a 25 de Abril: «A constituição dos sindicatos é facultativa, mas em cada distrito o Estado só dá o seu reconhecimento – que confere ao sindicato o carácter de entidade de direito público – a um único, e só esse reconhecimento lhe dá direito de se intitular sindicato nacional»,

O Estatuto do Trabalho Nacional já previa no seu artigo 40º que, no quadro da organização corporativa, «a organização profissional abrange não só o domínio económico mas também o exercício das profissões livres e das artes, subordinando-se a sua acção neste caso a objectivos de perfeição moral e intelectual que concorram para elevar o nível espiritual da Nação».

E a lei que regulamentava a Câmara Corporativa – o Decreto n.º 24 683, de 27 de Novembro de 1934 previa também no seu artigo 4º, que pertencia à referida Câmara, por direito próprio, um representante do «Sindicato Nacional» dos Advogados, a Ordem dos Advogados.

Foi em parte na decorrência deste princípio que foi promulgado o Decreto-Lei n.º 24 904, de 10 de Janeiro de 1935, o qual expressamente situaria a Ordem dos Advogados no território da organização política da Nação.

Facto sintomático: no dia seguinte abriria em sessão solene a Assembleia Nacional, encerrada que tinha estado desde 1926. Presidiria à mesma José Alberto dos Reis, ele também professor da Faculdade de Direito de Coimbra no domínio do processo civil.

Efectivamente, de acordo com o Decreto-Lei n.º 23 050, de 23 de Setembro de 1933, as profissões livres organizar-se-iam em regime de sindicato único sob a designação específica de “Ordens”, que assim manteriam.

Ora no caso específico da Ordem dos Advogados, e pois que inserida nesta estrutura, entenderia o diploma em referência, o Decreto-Lei n.º 24 904, visando-a expressamente, que «constitui elemento primário da organização corporativa», e ficaria, pois, sujeita àquele diploma legal n.º 23 050 «salvo no que se encontra especialmente regulado quanto à sua organização interna e à sua função técnica e profissional», pois aí mantinha a sua dependência do Ministério da Justiça e apenas no que se refere à sua «acção social, disciplina do trabalho, salários, organismos de assistência e previdência e relação com os demais organismos corporativos» é que teria ligação de dependência ao Sub-Secretariado de Estado das Corporações e Previdência Social através do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência.

Era uma tentativa de disciplinar uma entidade cuja autonomia escapava à lógica política do sistema.

Mas não apenas de colocação do órgão representativo dos Advogados se tratava. Lendo outros preceitos do famigerado diploma legal, captava-se o seu sentido já repressivo, de polícia e de controlo pela política governamental. Assim, segundo o artigo 3º do diploma legal em causa, a Ordem dos Advogados:

-» Subordinaria os interesses da sua categoria aos interesses da economia nacional, em colaboração com o Estado e com os órgãos superiores da produção e do trabalho;

-» Exerce a sua acção exclusivamente no plano nacional e com respeito absoluto pelos superiores interesses da Nação, sendo-lhe por isso vedada a filiação em quaisquer organismos de carácter internacional ou a representação em congressos ou manifestações internacionais sem autorização do Governo e não pode também, sem a referida autorização, contribuir monetariamente para a manutenção de organismos estrangeiros, nem receber deles quaisquer donativos ou empréstimos.

E, em remate, tornando claro ao que se vinha, proclama o artigo 4º do Decreto: «A Ordem dos Advogados constitui factor de cooperação activa com todos os outros factores da actividade nacional e repudia simultaneamente a luta de classes e o predomínio das plutocracias».

Para além disso, e na lógica de se tratar de um Sindicato, a eleição dos seus corpos directivos ficava dependente, como condição de validade, de homologação por parte do Sub-Secretário de Estado das Corporações e da Previdência Social, ingerência insuportável e atentatória da autonomia da Ordem.

Logo se faria ouvir, pronta e firme, a posição da Ordem. Convocados, em reunião urgente e conjunta, os Conselhos Superior e Disciplinar, Geral e os Distritais de Lisboa, Porto e Coimbra para o dia 14 de Janeiro, quatro dias após a publicação do diploma, foi nessa magna assembleia resolvido [xxiii], sob proposta de Domingos Pinto Coelho :


«1º Considerar o Decreto-Lei n.º 24 904 absolutamente inaceitável.


«2º Encarregar o Conselho Geral de continuar as diligências junto do Ministério da Justiça no sentido de evitar o ingresso da Ordem no regime corporativo.»


Repudiado pela classe dos advogados, o novo figurino viria a ser suspenso uns dias depois pelo Decreto n.º 25 037 de 12 de Fevereiro até à publicação das disposições reguladoras dos Sindicatos Nacionais com a natureza de “Ordens”.

Curioso, o facto legislativo: colocada, enquanto sindicato único, sob a alçada do corporativismo, por Decreto-Lei, e assim sob a assinatura de Oliveira Salazar, a Ordem dos Advogados, libertar-se-ia de tal dependência, por mero Decreto, firmado apenas pelo ministro da Justiça, Manuel Rodrigues.

Retirada ao sistema corporativo, a Ordem encontraria o seu local de referência nas definições do Estatuto Judiciário, que a situavam na égide do Ministério da Justiça.

Fazendo o balanço histórico do momento, Adelino da Palma Carlos – que seria, aliás, entre 1954 e 1973 Procurador à Câmara Corporativa, na secção da Justiça – diria, referindo-se precisamente ao papel da Ordem, a propósito da memória do Bastonário Barbosa de Magalhães [xxiv] :

«Neste embate, a Ordem triunfou, porque a sua razão foi reconhecida; e há-de sê-lo sempre, enquanto se mantiver intransigentemente, mas exclusivamente, na defesa dos princípios que a estruturam e orientam.»

Assim se viveu até à total libertação da Ordem de qualquer tutela governamental.

Ao comemorar, a 25 de Março de 1988, os 150 anos da Associação dos Advogados de Lisboa, génese histórica da Ordem, Augusto Lopes Cardoso, Bastonário, diria [xxv] que «o uso no Estatuto Judiciário do termo “corporação”, reportada à Ordem, mantinha todo o seu valimento depois da repulsão do corporativismo e sem ter que recear confusão com este. (…) Pelo que vem exposto é-nos lícito concluir, sem a mais pequena reserva, que, ao tempo da revolução de 1974, jamais a Ordem dos Advogados poderia ser taxada de organismo corporativo ou, similiter, de organização fascista, que a fizesse incorrer, em dissolução automática, como houve quem ousasse pretender».

Em 1984, sob a égide do Bastonário José Manuel Coelho Ribeiro, foi aprovado o novo Estatuto da Ordem dos Advogados pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de Março, em cujo artigo 1º, n.º 2 se proclamava, enfim: «A Ordem dos Advogados é independente dos órgãos do Estado, sendo livre e autónoma nas suas regras.»




[i] Decreto n.º 11 715, de 12 de Julho de 1926.
[ii] António Abranches Ferrão, pai de Fernando Abranches Ferrão, foi ministro da Justiça de 7 de Dezembro de 1922 a 15 de Novembro de 1923.
[iii] Outros projectos são referidos pelo preâmbulo do diploma como o de Mesquita de Carvalho, de 1912 e Álvaro de Castro, de 1913.
[iv] Manuel Rodrigues, A Justiça no Estado Novo, Empresa Jurídica Editora, Lisboa, 1933, página 45.
[v] Beleza dos Santos,  O fundador da Ordem dos Advogados, Revista da Ordem dos Advogados, n.º 1, 4º trimestre, páginas 317 a 329. Paulo Dá Mesquita publicaria na colectânea Figuras do Judiciário, séculos XIX-XX, editado pela Almedina em 2014, o estudo Manuel Rodrigues Júnior e o perfil do processo penal português.
[vi] Citado A Justiça no Estado Novo.
[vii] Revista da Ordem dos Advogados, ano 18 (1958), áginas 357-360.
[viii] Salazar, D. Quixote, 2010.
[ix] Revista da Ordem dos Advogados, ano 60, volume 3 (Dezembro de 2 000), páginas 1473-1491.
[x] Decreto n.º 12 334, de 18 de Setembro de 1926.
[xi] A expressão, interessante, é de Alberto Luís.
[xii] O quadro está publicado no Diário do Governo, 2ª série, de 26 de Janeiro de 1927.
[xiii] A História da Ordem dos Advogados foi recentemente enriquecida com o início de publicação de dois volumes de uma obra intitulada Os Bastonários da Ordem dos Advogados Portugueses, o primeiro referente a 1926-1971 e o segundo a 1972-2004.
[xiv] Lições de Direito Corporativo, Lisboa, 1935, sem indicação de editor, página 12.
[xv] Marnoco e Sousa, Economia Nacional, 1909, páginas 150-154 e 168-172. Trata-se de algo que impropriamente se denominará de socialismo, doutrina assente na intervenção do Estado e na democracia e na equação entre a liberdade pessoal e a coesão e a solidariedade social.
[xvi] Ibidem, página 13,
[xvii] E que seria regulamentada pelo Decreto n.º 24 683, de 27 de Novembro de 1934.
[xviii] Posição actual do Corporativismo Português, Lisboa, 1950, sem indicação de editor, página 12.
[xix] Ibidem, página 13.
[xx] Ibidem, página 27.
[xxi] Manuel de Ciência Política e Direito Constitucional. Cito da 4ª edição, página 413.
[xxii] A Doutrina Corporativa em Portugal, Livraria Clássica Editora, 1936, página 128.
[xxiii] Alberto Sousa Lamy, A Ordem dos Advogados Portugueses – história, órgãos, funções, edição da Ordem dos Advogados, 1984, páginas 47-48.
[xxiv] Adelino da Palma Carlos, Elogio histórico do Dr. José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães, proferido a 26 de Novembro de 1959, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 20 (1960).
[xxv] Da Associação dos Advogados de Lisboa à Ordem dos Advogados: subsídios históricos e doutrinais para o estudo da natureza jurídica da Ordem dos Advogados, Revista da Ordem dos Advogados, ano 48, n.º 1 (Abri, 1988), áginas 329-363. No mesmo sentido da impossibilidade de considerar a Ordem dos Advogados como organismo corporativo, a alegação subscrita pelo Advogado Honorário José de Azeredo Perdigão, publicada na Revista da Ordem dos Advogados, ano 3º, ns.º 3-4, páginas 186-190.