Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Directiva Europeia: whistleblowers

Sob a moderação de Vítor Costa, Director Adjunto de Informação da agência LUSA, com a participação do jornalista António Tadeia e da eurodeputada Ana Gomes, teve lugar, no passado dia 7 de Maio, um debate sobre a nova Directiva europeia sobre a protecção dos "whistleblowers" que muito em breve será publicada [ver o texto aqui].

O meu contributo nesse debate centrou-se nos seguintes tópicos:

-» a legislação portuguesa em matéria criminal, centrada na Lei n.º 19/2008 [primitivamente aplicável apenas ao sector público, depois estendida ao sector privado por via da Lei n.º 30/2015] e no âmbito desta para uma remissão que torna aplicável a lei de protecção de testemunhas [Lei n.º 93/99, modificada pelas Leis ns. 29/2008 e 42/2010], é insuficiente do ponto de vista das garantias outorgadas aos denunciantes;

-» já no domínio contra-ordenacional e regulatório multiplicam-se as formas de tutela da auto-denúncia e do tutela da mesma, com incentivos a que a mesma ocorra para efeito de benefício de regime de clemência;

-» a situação internacional gerada pela política norte-americana, nomeadamente no que se refere ao combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo tem tornado irreversível a tendência no sentido do incremento da colaboração com a investigação criminal;

-» comparada com a realidade norte-americana, a Europa encontra-se ainda dentro dos limites de um significativo equilíbrio, até porque não se trata de um sistema que gratifique monetariamente os denunciantes;

-» entre os vários modelos em curso de discussão e desenvolvimento legislativo configura-se a protecção dos denunciantes, sobretudo face à reacção pública e das autoridades judiciárias no que se refere às situações reveladas pelos Panama Papers, Paradise Papers, Luxleaks, etc.;

-» o tema torna-se problemático tratando-se de denúncias relativas a informações obtidas de forma ilícita, nomeadamente punível criminalmente, sobretudo em face da legislação que torne esse tipo de prova, em geral, proibida, como é o caso do sistema português [artigo 126º do Código de Processo Penal];

-» mas o problema não se esgota com informações obtidas por essa forma, podendo tratar-se de conhecimento obtido pelo denunciante no quadro das suas funções profissionais no quadro de uma organização;

-» a Directiva restringe precisamente o seu âmbito aos denunciantes que se integrem em organizações e que hajam efectuado uma denúncia interna para as competentes entidades corporativas incumbidas de funções de compliance;

-» A Directiva cobre um amplíssimo território de tutela, praticamente toda a área sobre a qual a União Europeia emitiu normativos;

-» a Directiva oferece protecção não apenas aos denunciantes mas igualmente aos "facilitadores";

-» a Directiva enuncia um conceito aberto quanto à credibilidade da denúncia, ao prever que relevará a situação daqueles que tiverem «motivos razoáveis para crer que as informações comunicadas eram verdadeiras no momento em que foram comunicadas e são abrangidas pelo âmbito de aplicação da presente diretiva»;

-» a Directiva salvaguarda o segredo médico e de advogados e declara não prejudicar as normas internas sobre processo penal.

Assunto relevante é saber em que termos se verificará a transposição da Directiva para o Direito nacional, conhecidas como são as dificuldades que se verificaram no âmbito da transposição em matéria de branqueamento de capitais em que o previsto enferma de dúvidas e incongruências, ainda por resolver.

Importa igualmente relevar a cultura judiciária de cada país, nomeadamente quanto à prevalência nos tribunais superiores de exigências formais e de procedimento as quais, se facilitadas na recepção da denúncia e na sua valoração probatória, podem redundar no inêxito do sistema pela anulação das decisões judiciais sustentadas nesse tipo de prova.

1º de Maio

Se o princípio «cada poder, cada força, traz consigo o seu Direito», oriundo de Pierre-Joseph Proudhon, traduz a matriz de uma concepção libertária no domínio do jurídico, talvez seja este outro termo,  cunhado pelo filósofo alemão Johann Kaspar Schmidt [Max Stirner] «tu tens direito àquilo a que tens o poder de ser», que lhe dá mais sentido e significado.
Sentido, pois associa o direito próprio à capacidade de o poder exercer; significado, enquanto exprime concordância lógica com a regra «cada coisa traz em si mesma a sua lei, isto é o modo do seu desenvolvimento, da sua existência e da sua acção paralela», pensada pelo russo Mikhail Aleksandrovitch Bakunin.
Vem isto precisamente a propósito de ser hoje o dia 1º de Maio.
Filosofia de negação de uma fonte única do Direito, estadual sobretudo, trata-se, nesta sua visão anarquista, de ir ao encontro das forças colectivas como geradoras de direitos, afinal não transcendentes, mutáveis pois fruto da tensão social e da correlação de forças, fruto de uma, ainda que irracional, razão colectiva, direitos já como expressão de um Direito ainda sem regras porquanto anterior à sua formulação.
Vem isto a propósito do dia de hoje.
Passando do campo da teoria legal à Literatura, necessariamente à crónica de Eça de Queiroz sobre o 1º de Maio, publicado na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 1892, ei-lo, num daqueles arremessos de bom humor, em que, surpreende a farta, porque pingue, burguesia francesa ante a revolta dos famintos, a clamar a «justiça do pobre», mas, apesar de provida de paióis e fortunas, afinal tremente e espavorida
Naquele seu modo acre de trazer, pelo riso, sabedoria, Eça nota, perplexo, quanto essa burguesia ameaçada «treme e grita, à maneira daquele que, gozando à muito, além da sua leira de terra, a leira do seu vizinho, visse de repente surdir furiosamente esse vizinho com o seu direito e um grosso cajado». Precisamente.

Encontrando a frase e o caminho

Escrevo com a convicção de que leitores amáveis pensarão que não é verdade, antes vaidade. Mas decidi-me a estudar Direito. Aos setenta anos, sim. Depois de ter saído da Faculdade em 1971, é verdade. Depois de ter tentado ensinar Direito durante dezassete anos e porque não. 
A verdade é que há momentos na vida em que importa dar tudo como írrito e nulo e começar de novo. Li a frase, fantasiei que saiu da mente genial de Leonardo Coimbra, nas não a encontro. 
Dir-se-à que é uma neurose esta, a da ilusão de se voltar a ter vinte anos. Seja, mas se nem tudo quanto é saudável é necessariamente bom, a inversa pode ter o seu espaço de oportunidade.
Dei conta de um mundo carregado de leis, as nossas, as europeias, as outras internacionais. Muitas dessas leis são apenas regulamentos, porque ainda há diferença.
Percebi que muito do pensamento jurídico está carregado de pompa erudita, tornando-se de tal modo ilegível que a meio o leitor desiste e fica a amarga sensação de cansaço inútil. Sobretudo quando ao ler se tem um fim em vista.
Tanta escrita jurídica, arrastando em pé de página o aluvião de todos os outros, lembra a música wagneriana, torrencial, em fluxos helicoidais, expectante de um termo mas, afinal um sem-fim de tirar o fôlego.
Por tudo isso, regressando ao princípio, aqui estou. Saturado de encargos da profissão, menos resistente ao cansaço, a não querer esgotar-me no Direito, recomeço neste. Por onde não sei. A cada um encontrar o seu caminho. 
Um dia li um pequeno texto de João Baptista Machado sobre antropologia, existencialismo e Direito. Foi uma revelação. Imagine-se como uma obra que ficou lateral, pode tornar-nos outros. 
A vida, entretanto, com o castigo das suas obrigações, a prática como o saber o mínimo só para o caso, que outros há na linha de montagem em que a profissão se tornou, tal como a fábrica do Senhor Henry Ford, acabou por tudo soterrar. 
Urge, pois, cavar. Não como o conto do extraordinário José de Almeida Negreiros, O Cágado, que o cavador procurou, desesperado, inutilmente. Sim, jogando fora quanto inumou a mente e encontrando, não a frase, mas o sentido da frase, seja ela ou ou não do autor de A Alegria, a Dor e a Graça.

As consciências adormecidas

De todos os lados surgem avisos: os populismos sociais tornam-se autoritarismos políticos. Que sejam reposições do nazismo, do fascismo, supõe apenas que a História se repita pela mesma forma; pode ser diverso apenas o modo. Por isso no Direito há que ficar aviso: afinal, o totalitarismo também ajustou o jurídico às suas necessidades e dele se serviu e nele encontrou os seus servidores. E muitas das suas criaturas perduraram. 
Há os que, vivendo hoje o mundo da eficácia e do utilitarismo, trocam o saber como foi pela interesse quanto ao que há. 
Nem tudo está, porém, perdido. Fica para esses outros esta nota de leitura.

Eugenio Raul Zaffaroni, magistrados e professor argentino escreveu, Francisco Muñoz Conde, professor em Sevilha, prefaciou. Editado em 2017 em Buenos Aires. 
Trata-se de um aprofundado e documentado estudo sobre quanto o nazismo construiu para o seu Direito, desde a escola jurídica de Kiel [essa Stosstruppfakultät, Faculdade de Tropa de Assalto - e nela os nomes de dois dos seus fautores principais, Georg Dahm [1904-1963] e Friedrich Schaffstein [1905-2001] - à arquitectura do Estado total nacional-socialista, como estrutura que o Direito serviria, mas sobretudo dos conceitos jurídicos que dali emergiram como instrumentos de sustentação, defesa e disseminação do III Reich e seu espaço vital.


Estou ainda a ler, porque não é texto de apreensão imediata e alguma da forma de expor reconduz o leitor à necessidade de clarificar o sentido do discurso, por vezes reiterativo. 
Mas de imediato permito-me ir buscar ao texto do prefácio e da narrativa o elenco, parcial seguramente, do que foram os instrumentos  forjados pelos teóricos do nazismo jurídico, aptos a dar, à boa maneira alemã, consistência teórica e legitimação normativa às ideias que, oriundas da política que o Führerprinzip definia e que funcionavam como critério último de interpretação das leis e guia seguro para a sua correcta aplicação, corporizando esse autêntico "vendaval jurídico" na Europa dos anos trinta e quarenta do século vinte e a que poucos resistiram - entre estes Gustav Radbruch - e muitos cederam e se adaptaram- como Edmund Mezger.

Ei-los, pois  [entre tantos], no plano da dita "dogmática" jurídica:

-» violação do dever como núcleo do conceito de ilicitude [do "injusto"];
-» crítica ao conceito de bem jurídico como delimitador dos limites da tipicidade e critério orientador da interpretação normativa;
-» concepção de Direito Penal de autor;
-» formulação do Direito Penal da vontade;
-» hiper-valorização dos crimes omissivos;
-» crítica da teoria da não exigibilidade;
-» demolição do conceito de culpabilidade;
-» formulação de uma teoria unitária do crime;
-» admissão da analogia incriminatória;
-» profusão de tipos de crime de perigo abstracto;
-» punição da tentativa de instigação;
-» punição de actos preparatórios e de tentativas inidóneas;
-» tipificação da associação criminosa com fundamento no mero acordo de vontades;
-» sobrecarga punitiva nomeadamente em crimes contra interesses públicos.

Dir-se-à que há em alguns conformações oriundas do passado; sem dúvida, mas com uma reformulação apta a torná-los úteis à Nova Ordem.
É este o perigo das consciências que adormecem: forjam armas para a burocracia da repressão. Primeiro, para enfrentar o excepcional, depois, tarde demais, está o geral contaminado. Só lhes resta dizer que, afinal, não se tinham dado conta.


Ler e tentar escrever


Dei com esta frase que tinha escrito na página do FB que dedico à minha profissão, a ilustrar uma fotografia da sala onde trabalho:

«Livros. Advogar e ler. Ler e tentar escrever. A profissão hoje devora a capacidade de se parar e reflectir. Em cada dia surge o anseio e a tentativa de o resolver. Quem vive intensamente a prática tem de ter uma reflexão que a resolva, de outro modo convive com o absurdo. E com isso sofre.»

Hilgendorf & Valerius: 2ª edição traduzida

Publicado agora em 2019 pela Marcial Pons [que edita também livros em português], trata-se da tradução feita para português do Brasil da segunda edição obra de Eric Hilgendorf [Würzburg] e Brian Vallerius [Bayreuth].
O texto é reportado ao Direito Alemão vigente em 2015, pelo que, nessa parte haverá de relevar qualquer imprecisão por falta de actualização. 
Na apresentação da obra o tradutor explica que, tratando-se de um simples livro didáctico, ele é mais do que isso. Por um lado, porque todos os principais tópicos da disciplina do Direito Penal são ali tratados. Depois porque o livro contém inúmeras referências a literatura jurídica e jurisprudencial. 
Trata-se, como acentua Luís Greco, no prefácio, de um «livro acessível, despretensioso, escrito para um público de estudantes em busca de um primeiro contacto com a matéria».
Estas considerações talvez deixem a obra aquém da sua real valia, porque a narrativa do mesmo é objectiva.
Li hoje quanto nele se relata sobre a problemática dos crimes omissivos impróprios negligentes e penso que se fica com uma noção rigorosa da configuração dos problemas relevantes.
A tradução poderia, por ventura, ser melhorada, mas admito situar-me no quadro do português que se fala em Portugal e tratar-se, portanto, de crítica injusta.
Cito, por exemplo a tradução do § 13 do Código Penal Alemão [StGB]: «Aquele que se omite em evitar um resultado proibido por uma norma penal [...]» não é clara, porque ao verter expressamente a desinência "es" do original «Wer es unterläßt, einen Erfolg abzuwenden, der zum Tatbestand eines Strafgesetzes gehört [...]» ganha em literalidade o que perde em compreensão.
Do mesmo modo, sendo típica daquele Direito a diferença entre crimes [Verbrechen] e delitos [Vergehen], os primeiros puníveis com prisão superior a um ano, e fazendo o tradutor menção expressa a essa dicotomia [nota na página 53], usa generalizadamente o termo "delito» ao longo do livro quando afinal de trata de teoria sobre a problemática do crime.

Mysterios da Boa Hora


Sem ostensivo nome de autor, surgindo no final um abreviado José Maria, mas apenas o da tipografia Gutierres, ao 92 da Rua do Norte, onde fora impresso, o folheto está escrito naquele magnífico estilo irreverente que caracterizou a época, publicado que foi em 1882. Encontrei-o nem sei como, talvez por encomenda ao meu alfarrabista de eleição.

Abre a fantasiosa cena com uma caminhada para São Bento onde dois deputados, descritos pelo desconchavo, são seguidos por um jornalista. «A S. Bento, a S. Bento.. é a voz que se ouve repetir nas lojas e nos cafés». E porquê?

Siga a narrativa, pícara e esclarecedora [para ler, clicar na imagem, ampliando-a]:


Ora quando tudo parecia encaminhar-se para as Cortes, e para a magna questão das finanças judiciárias que ali se discutia, em pleno fontismo, eis que as palavras Escândalos! Maldita Boa Hora, distraindo-a da atenta vigilância em que se encontrava à conversa dos pais da Pátria, «lhe feriram o ouvido». E então:


E eis, por isso, que os passos se alteram e o infatigável jornalista, ávido de escândalo, segue pela Rua Formosa [hoje Rua do "Século", nome que tomou do vetusto jornal, entretanto falido], ali em busca de «dois íntimos», fontes alegadamente credível de informação. Segue a prosa:


Que se passaria na Boa-Hora? De que escândalos se trataria? Hoje, ficamos por aqui. Como nos folhetins, importa criar suspense. Aguardam-se, pois, cenas dos próximos capítulos.

Branqueamento de capitais: a rede 5G

Com ironia e trabalho minucioso Miguel da Câmara Machado orienta-nos desta versão actualizada do livro Regimes de Branqueamento de Capitais e Compliance Bancário pela profusa legislação sobre o sector.

A obra é antecedida de um prefácio que tem duas virtualidades (i) a de sistematizar a legislação que desde a década de noventa tem vindo a ser publicada no quadro europeu e transposta no plano nacional, arrumando o elenco por gerações [tal como nas gerações das comunicações, da 3G à 5G] (ii) fornecendo uma listagem da legislação em vigor, o que antecipa o índice do livro e melhor o permite compreender.

Segundo o autor são estas as cinco gerações normativas que se têm sucedido, em regime de sucessiva revogação:

-» a primeira geração, surgida no final dos anos oitenta, com início nos anos noventa, no contexto da luta contra o tráfico de droga, e que se consubstanciou (i) a nível europeu, na Directiva 91/308/CE, de 10 de Junho de 1991 (ii) a nível nacional no Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro [ver aqui, qual reviu a legislação sobre o tráfico de droga] e o Decreto-Lei n.º 325/95, de 2 de Dezembro [ver aqui], «que introduziu os primeiros deveres de prevenção do branqueamento no nosso ordenamento jurídico»;

-»  a segunda geração, editada tomando como contexto os acontecimentos do 11 de Setembro de 2001 e orientadas, portanto para a tutela ante situações de terrorismo e que consistiu no seguintes normativos (i) a nível europeu, na Convenção do Conselho da Europa relativa ao branqueamento, detecção, apreensão e perda dos produtos do crime e ao financiamento do terrorismo (ii) ainda a nível europeu, no Regulamento (CE) 2580/2001, do Conselho, de 27 de Dezembro de 2001 (iii) ao mesmo nível, a Directiva 2001/97/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Dezembro de 2001 (iv) enfim, o Regulamento (CE) 1889/2005, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Outubro de 2005 e (v) a nível nacional a Lei n.º 11/2004, de 27 de Março [ver aqui];

-» a terceira geração, caracterizada pelo reforço dos mecanismos internacionais ainda a propósito do terrorismo e da criminalidade internacional «que orientou os profissionais portugueses nesta matéria ao longo de uma época», expressa pelos seguintes instrumentos jurídicos (i) a nível europeu, a Directiva 2005/60/CE (ii) ainda a nível europeu, o Regulamento (CE) 178/2006, o qual foi concretizado entre nós pelo Decreto-Lei n.º 125/2008 (iii) ao mesmo nível, a Directiva 2006/70/CE, (iv) a nível nacional, transposta, tal como a Directiva anteriormente referida, pela Lei n.º 25/2008,  de 5 de Junho [ver aqui] sucessivamente alterada;

-»  a quarta geração, orientada ao combate contra a corrupção e os crimes fiscais, que se expressou (i) a nível europeu, na Directiva (UE) 2015/849, de 20 de Maio de 2015 (ii) ao mesmo nível na Directiva (UE) 2016/2258, de 6 de Dezembro de 2016 (iii) ainda a nível europeu nos Regulamentos (UE) 2018/1108, de 7 de Maio de 22018, (UE) 2016/1675, de Julho de 2016 e (UE) 2015/847, de 20 de Maio de 2015, o Regulamento (UE) 2018/1672, de 23 de Outubro e a Directiva (UE) 2018/1673, de 23 de Outubro (iii) no plano nacional pelo vulgarizado «pacote de 2017), formado pela Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto [ver aqui] e pelas Leis 89/2017, de 21 de Agosto [ver aqui], 92/2017,  de 26 de Agosto [ver aqui], 96/2017, de 23 de Agosto [ver aqui] e 97/2017, de 23 de Agosto [ver aqui]bem como em outros diplomas legais convergentes como a Lei n.º 15/2017, de 3 de Maio [ver aqui], o Decreto-Lei nº 123/2017, de 25 de Setembro [ver aqui], a Resolução do Conselho de Ministros n.º 88/2015, de 1 de Outubro [ver aqui] e a Portaria n.º 233/2018, de 21 de Agosto [ver aqui];

-» enfim, a quinta geração, traduzida na Directiva (UE) 2018/843, de 30 de Maio de 2018 [ver aqui], a qual deverá ser transposta para o Direito interno, até 10 de Janeiro de 2020

Crítico em relação ao que compendia, Miguel da Câmara Machado já havia, em prefácio à compilação anterior, perguntado sobre se estaríamos «entre um manual para branqueadores e um código sancionatório em branco». Agora, com humor, suscita a questão e saber se, tal como o quadro de Banski [ver aqui], estes regimes não se vão destruir «antes de acabarem de ser lidos (ou transpostos)», situação que, remata, seria «pior do que as dos filmes, onde as mensagens enviadas a Ethan Hunt se autodestruíam em 5 segundos», como o título do texto com que apresenta a obra: «Estes regimes vão autodestruir-se em 5 segundos».

Direito Penal de empresa: questões gerais

A obra foi publicada este ano, em Janeiro. Reproduz, em escrito, o ensino da autora em cursos de pós-graduação, desde há alguns anos, em Portugal e no Brasil.
É livro pequeno de 150 páginas. Mas os livros pequenos têm a vantagem de se candidatarem a serem lidos. Sobretudo quando escritos com clareza, e é o caso.
O tema é actual, o território jurídico em que se move, mutante.
Trata-se, a nível criminal, da responsabilidade dos administradores, da responsabilidade das pessoas colectivas e da responsabilidade do compliance. Mas para que tudo ganhe compreensibilidade, o capítulo inaugural ensaia uma rememoração dos conceitos fundamentais do Direito Penal de Empresa e a Teoria da Infracção Penal. 
O foco é precisamente o Direito Criminal Empresarial, o corporate crime, no quadro de uma sociedade técnica, progressivamente mais complexa e especializada.
Terminada a leitura dessa análise preambular, eis as notas que, traduzem o que retive como essencial:

-» a evolução de um Estado interventor para um Estado regulador, não diria recuo do Estado mas uma sua recolocação no território económico, financeiro e social, num ambiente contemporâneo de «desregulação da economia»;

-» a natureza «mutável, flexível e assistemático» desse novo Direito;

-» a configuração dos bens jurídicos em causa nesse Direito Penal Económico [de que o Direito Penal Empresarial seria espécie daquele género] como «relevantes para a sobrevivência do sistema económico»;

-» a dicotomia necessária entre a criminalidade na empresa e a criminalidade de empresa, esta a que lesa bens jurídicos e  interesses «externos, incluídos os próprios interesses dos colaboradores da empresa», abrangendo todo o universo de crimes que se situem no ambiente empresarial, desde o direito penal laboral ao de mercado de valores mobiliários, ao do consumidor, às insolvências puníveis, crimes contra a propriedade industrial, enfim os delitos societários.

Se esta é a configuração da arquitectura global do Direito em causa, Susana Aires de Sousa conduz-nos, seguidamente, para questões problemáticas que se suscitam na matéria:

-» a utilização pela lei de tipos penais abertos e indeterminados na formulação legal dos ilícitos, nomeadamente através do reenvio para normas extra-penais, inclusivamente de valor infra-legal (decreto, regulamento ou uma portaria) o que coloca problemas de constitucionalidade, pois que o reenvio «pode prejudicar a função de garantia que cabe ao tipo incriminador» [cita a exemplo quanto se passa com o artigo 509º do Código das Sociedades Comerciais, convoca a cascata remissiva do artigo 87º do RGIT - que considera, com ironia, uma das situações «caricatas e de duvidosa constitucionalidade» e cita, deixando a apreciação ao leitor, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Outubro de 1997, segundo o qual o princípio da legalidade incriminatória não está em causa quando o conceito indeterminado utilizado pelo legislador seja «determinável» pelo intérprete;

-» a natureza social e historicamente situa dos bens jurídicos em causa neste tipo de criminalidade [«afastada de um essência axiológica culturalmente consolidada»] e a sua distância relativamente a qualquer «referência individual imediata», valorando o mero «perigo da conduta face à lesão efectiva do bem jurídico» o que «levanta dúvidas sobre a legitimidade da intervenção penal» [e neste domínio chama à colação os denominados «delitos cumulativos», que enfrentam o risco de generalização de uma conduta, modalidade dos crimes de perigo abstracto, que aqui teriam expressão, no caso dos crimes fiscais e contra o mercado de valores mobiliários];

-» o tema da legitimidade para a constituição de assistente [por ampliação do quadro conceptual da noção de ofendido], concluindo que haverá casos nos quais «não obstante a natureza colectiva do interesse protegido pela incriminação, se deve admitir que a empresa pode aceder ao estatuto de sujeito processual», citando ser, em sua opinião, o caso dos crimes societários [artigos 509º a 529º do Código Penal];

-» a matéria da responsabilidade criminal pelo produto [no caso da produção e da distribuição] e que ao dano individual sucede a multiplicação do dano por um elevado número de consumidores e é, assim, um «dano duplamente anónimo», assunto relativamente ao qual, não só sublinha a existência de lacunas de previsão no Direito em vigor [concretamente ante a conjugação dos artigos 282º e 24º do Decreto-Lei n.º 28/84, apresentando proposta de redacção para um Direito a constituir];

-» e, enfim, em breve apontamento, uma nota quanto «às dificuldades dogmáticas para estabelecer a autoria e a participação nos crimes cometidos através de uma organização».

O Advogado e o cidadão

Não há apenas a contemporaneidade, também aquilo que o tempo soterrou mas permite reflectir. Isso torna-se imperioso num tempo, como o que vivemos, em que às novas gerações falta consciência histórica e sobretudo vontade de compreenderem que aquilo que hoje está na lei, ou no sentir da jurisprudência, resulta de um sedimentar histórico até se chegar aqui ou, quantas vezes, de tumultuosa luta jurídica por um outro Direito.
Entre o muito que encontrei em alfarrabista, esta pequena separata do Doutor Adelino da Palma Carlos, breve alegação de recurso para a Relação de Lisboa, merece ser revisitada, como excursão a um Direito que foi para que ganhe sentido o Direito que está e a vida como hoje se vive.
Era tempo em que os advogados publicavam as suas peças processuais. O hábito decaiu porque se considerou que era uma forma indevida de publicidade. Olhando para o mundo actual, em que a incessante publicitação ocupa todo o espaço disponível, é irónico.
Era tempo em que as peças processuais eram publicadas com os nomes dos envolvidos e o mesmo sucedia quanto à jurisprudência, pois não se via então gravame à honra das pessoas nem lesão do seu direito à privacidade.
Era tempo em que a alegação era breve [esta tem 29 páginas em oitavo] e não careciam de conclusões.
No caso, a alegação responde a um recurso interposto pelo Ministério Público.
O caso envolvida um funcionário, que fora condenado pelo crime que então se chamava de suborno e estava tipificado no artigo 318º do Código Penal.
Ao tempo, a matéria de facto dada como provada pelo colectivo era definitiva «ainda que não corresponda à prova produzida, como, neste caso, infelizmente aconteceu, na opinião de quantos acompanharam o julgamento», refere o alegante.
O núcleo do argumento da alegação é que a norma incriminadora em causa exigia ao agente «fazer» um acto de suas funções » e no caso aquilo que era imputado ao alegante era, numa parte da condenação, ter-se abstido de fiscalizar [na outra já a conduta era comissiva na forma de inutilizar ou extraviar processos]. 
Para além disso [precisamente em função deste segundo segmento da condenação, a conduta positiva] alegava-se que a mesma estava prevista em outro preceito do Código Penal, o artigo 312º e não o referido artigo 318º sendo «inadmissível que se conceba a existência, no Código de duas normas punindo a mesma infracção».
Lendo o argumentário, não ficam por aqui os motivos de reflexão.
Curioso [face aos parâmetros actuais] é que se pudesse argumentar que «um empregado dos serviços de fiscalização corporativa, no caso da Intendência Geral dos Abastecimentos] não fosse funcionário público e que para fins penais essa distinção [que tinha colhimento no Decreto-Lei n.º 35809, de 16 de Agosto de 1946, por curiosidade ver aqui] relevasse [e assim o considerou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Fevereiro de 1948, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, ano V, página 165]. Hoje, ante a noção amplíssima de funcionário público para efeitos criminais o argumento cairia por terra.
Igualmente interessante que outro tema da alegação haja sido o colocar em crise que, no caso, se tenha tratado de «acto de suas funções» [assim se referia o artigo incriminador em apreço] com fundamento na ideia que tal implicaria tratar-se de acto da competência legal do funcionário. ~
Em prol desta tese o ilustre professor de Direito mobiliza toda a sua erudição: desde a origem histórica do preceito [o Código Criminal «intentado pela Rainha D. Maria I, de Pascoal de Melo, aos Códigos Penais Francês de 1810 e Brasileiro de 1830 e o comentário do próprio Pascoal de Melo e de Levy Maria Jordão, os tratadistas franceses então em voga Chaveau & Hélie e Garraud, bem como o argumento histórico nacional, desde as Ordenações, das Afonsinas às Filipinas, o Direito Romano expresso na Lex Julia repetundarum, e, enfim, a opinião do alemão von Lizt].
Ciente da necessidade de reforçar a razão que tentava sustentar, Palma Carlos convoca por igual o Dicionário de Cândido de Figueiredo para o qual o «de», enquanto preposição, «exprime restricção da palavra que precede». Assim, o extravio de processos não seria acto «de» função.
No centro do tema, pressente-se, já está, porém, aquilo que viria a ditar a formulação actual da norma sobre corrupção. E, em honestidade intelectual, o alegante reconheco-o: «[...] há hoje quem sustente que na repressão do suborno deve punir-se não só a prática do acto da função, mas também a de todos os actos contrários aos deveres de função; e é possível que a defesa social justifique esta orientação, em face da onda de imoralidade que cobre o mundo».
Ao tempo, o alegante ainda poderia invocar, em lógica política, como o fez já na parte decisiva da sua peça processual: que o artigo 177º do Código Penal Francês era idêntico ao nosso mas quando «em França, como entre nós, a onda de corrupção alastrou, quando as liberdades individuais foram cerceadas e o livre direito de crítica ficou sufocado», então, o Governo de Vichy [de colaboracionismo ao invasor nazi] havia acrescentado em 16 de Março de 1943, ao mencionado artigo do Código Penal uma alínea que passara a abranger o caso de se tratar de acto que «ainda que fora das atribuições pessoais da pessoa corrompida, foi ou teria sido facilitado pela sua função ou pelo serviço que assegurava», modificação que seria mantida por Ordenança de 8 de Fevereiro de 1945, ainda a guerra não havia terminado.
Veja-se a honradez da conclusão. Fiel ao seu papel de advogado [o de defender o acusado de suborno] mas não abdicando da sua condição de cidadão, Adelino da Palma Carlos [professor de Direito, que era  então Bastonário da Ordem dos Advogados e viria a ser o primeiro-ministro da Democracia] escreve: «É mau o sistema? Decerto! Mas a culpa não é dos juízes; nem a deficiência da lei lhes dá o direito de passarem a criar direito, ou a punir, por preceito inaplicáveis que a lei não contempla».