Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Branqueamento de capitais: conferência

 

Por gentileza do Conselho Regional de Faro da Ordem dos Advogados, é-me grato poder participar neste evento. A assistência pode ser alcançada a partir daqui.

Branqueamento de capitais: uma tese

 


O livro é uma tese de doutoramento, mas uma tese [em Ciências Sociais/Estudos Estratégicos, sustentada ante o ICSP da Universidade de Lisboa], escrita em estilo prático por quem tem experiência no terreno, porque inspector, inspector-chefe na Polícia Judiciária, na área do combate à corrupção e  posteriormente a isso na Direcção do Departamento de Investigação Criminal de Setúbal daquela Polícia onde desempenha actualmente a função de Director da Unidade de Informação Financeira.

Reconhecer-se-á, pois, na obra não apenas o fruto das leituras e reflexões que o autor evidenciou, não apenas no domínio jurídico, mas por igual no campo sociológico, da economia e da teoria das organizações, como, de modo dominante, o produto da sua experiência no terreno: é disso evidência o que escreve a propósito da offshores [que, fazendo-se eco de uma doutrina firmada nos sectores teoria como pertencentes do domínio do "terror financeiro"], ou o que apelida de «breves considerações sobre o lucro ou ganho financeiro».

Antecedida de uma capítulo dedicado à metodologia da investigação, a obra [publicada em 2020]  divide-se em três partes, culminando com um apêndice documental de fontes e pistas para aprofundamento.

A primeira é dedicada ao "Teatro de Operações", centrada, em primeiro lugar, na caracterização da sociedade de risco e sua natureza global, e perspectivada, de seguida, na lógica jurídica, quer quanto ao enunciado do conceito de branqueamento e sua origem, à rememoração do bem jurídico em causa, como no que se refere à revisitação das noções típicas neste domínio, nomeadamente da criminalidade organizada transnacional, território onde se situa hoje o núcleo essencial do problema.

Na segunda parte centra-se no Direito em acção, logo o que decorre das propostas oriundas da EUROPOL e também da própria NATO [entroncado o tema numa lógica securitária global] e de seguida o papel que desempenham as estruturas nacionais de informação e investigação, o DCIAP, a UIF/PJ, a própria PJ como entidade de investigação e o GRA.

A terceira parte está orientada à actuação estratégica, a dois níveis: a da actuação, de acordo com um modelo operativo que o autor sugere como o adaptado às novas circunstâncias e o enunciados dos checklist a ter em conta  na investigação e na prevenção porque indiciadores de situações de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo.

Morte do assistente: efeitos


Decisão interessante, a resolver tema que a mesma considera polémica, a decorrente do Acórdão da Relação do Porto de 1301.2021 [proferido no processo n.º 345/18.3PASTS.P1, relator Borges Martins, texto integral aqui] quando consigna que a morte do assistente, que entretanto requerera instrução, não permite aos seus sucessores virem desistir da fase que aquele desencadeara.


Consta do sumário do aresto em causa: «A morte do/a assistente não extingue a instrução por ele/a requerida, mesmo que os seus sucessores indicados no artigo 113.º, n.º 2, do Código Penal pretendam essa extinção, não sendo aplicável analogicamente a esta situação o disposto nesse preceito.». 

Cita-se o artigo do Código Penal em causa para melhor compreensão do tema:

«Se o ofendido morrer sem ter apresentado queixa nem ter renunciado a ela, o direito de queixa pertence às pessoas a seguir indicadas, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime:

a) Ao cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou à pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, aos descendentes e aos adoptados e aos ascendentes e aos adoptantes; e, na sua falta
b) Aos irmãos e seus descendentes.»

Questão que o acórdão abordou, pela lógica da legitimação processual, foi, pois, a de saber se morto o assistente a ele sucediam em termos de adquirirem o respectivo estatuto, os respectivos sucessores, rememorando, para fundamentar o seu raciocínio, o previsto no artigo 68º do Código de Processo Penal [quando admite os ofendidos a integrarem, com legitimidade, o estatuto de assistentes] para depois ponderar a possibilidade de se equiparar em efeitos o previsto no artigo 113º, n,º 2 do Código Penal quanto à morte do ofendido ao caso de morte do assistente.

Citando o excerto relevante:

«No caso que nos interessa, tal faculdade pode ser atribuída ao ofendido, considerado na sua veste de titular do interesse que a lei quis proteger com a incriminação – al. a).
Também aqui se concebe o lugar paralelo ao analisado supra, no caso de morte do ofendido - atribuição da possibilidade de se constituírem assistentes tanto o cônjuge como outros familiares próximos. Igualmente se o ofendido não tiver renunciado à queixa, entretanto – presumindo-se que já a apresentou previamente – al. c).
Só no caso de o ofendido ter morrido sem se ter constituído assistente tem lugar a aplicação desta norma – cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 16.ª edição, 2007.
Como escreveu José António Barreiros (Processo Penal-1, Almedina, 1981, pág. 504), a posição judiciária de assistente extingue-se com a morte do individuo que revestia tal estatuto. Nesse caso, a lei permite que que se habilitem as pessoas previstas no n.º 4 do art.º 4.º do DL n.º 35 007 – norma correspondente ao actual art.º 68.º,n.º 1, al. c) do CPP.
Na hipótese dos autos, vemos que a Assistente, entretanto falecida, requerera abertura de instrução. Os substitutos legais possíveis renunciaram a tal faculdade.
Determina o art.º 69.º, n.º2, do CPP que compete, em especial, ao assistente oferecer provas; e requerer as diligências que se afigurarem necessárias, deduzir acusação independente da do MP e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza; interpor recurso das decisões que o afectem.
A Assistente exerceu tais poderes que a lei lhe confere.
Entretanto, deixou de haver nos autos Assistente como sujeito processual capaz ou interessado em exercer tais poderes no futuro.
Mas, e no que diz respeito ao RAI anteriormente deduzido?
Este tinha sido judicialmente admitido; e tinha sido publicado despacho determinativo de inquirição de duas testemunhas no mesmo indicadas; e de realização subsequente e imediata do debate instrutório.
No âmbito do processo civil – sempre a ter em conta, dado o disposto no art.º 4.º do CPP – vigora o princípio da aquisição processual: Os materiais (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo. São atendíveis mesmo que sejam favoráveis à parte contrária (…). Quanto ao seu outro aspecto, o princípio traduz-se na comunidade das provas. Desta comunidade deriva que a parte não pode renunciar às suas provas, uma vez produzidas – embora delas possa desistir antes disso (arg. do art.º 571.º) resulta claramente do disposto no art.º 515.º. – cfr. arts. 465.º, 594.º,n.º 4 e 595.º, todos do NCPC, Manuel da Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 383.
No novo CPC determina o art.º 498.º, n.2 que a parte pode desistir a todo tempo da inquirição de testemunhas que tenha oferecido, sem prejuízo da possibilidade de inquirição oficiosa, nos termos do art.º 526.º.
Não existe norma equivalente no CPP e cremos que a aplicação da mesma no processo penal é pelo menos polémica, dado o princípio de demanda da verdade material que constitui a sua trave mestra.
No caso dos presentes autos, constata que a Assistente ofereceu prova de duas testemunhas; não tendo as mesmas ainda sido inquiridas.
Ora, o JIC, nos termos do disposto no art.º 291.º, n.º1 do CPP tem a possibilidade de indeferir a produção de depoimento de testemunhas que entenda inúteis para a finalidade da instrução – que é comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem de submeter ou não a causa a julgamento. Pode inclusivamente rejeitar a repetição de depoimentos já prestados em inquérito – n.º 3 do citado art.º 291.º do CPP.
Se designou data para a sua inquirição e imediata realização do debate instrutório, foi porque considerou o respectivo depoimento como à partida útil para a realização daquela finalidade.
Por outro lado, a não presença do Assistente não afecta a regularidade deste, conforme teor do art.º 297.º do CPP; recordando que tal debate e decisão instrutória não deixarão de reflectir sobre os pressupostos processuais, maxime, legitimidade para prossecução do procedimento criminal – questão não abordada pela decisão recorrida.»

Ora o tema tem, permito-me opinar, um outro ângulo de perspectiva, o qual conduzirá, no entanto, ao mesmo nó problemático: é que sendo discutível que ao assistente falecido possam suceder, na aquisição do estatuto respectivo, os seus sucessores [e aí os que estão indicados do citado n.º 2 do artigo 113º do Código Penal quanto ao caso da morte do ofendido], tendendo eu, numa primeira reflexão, a divergir da conclusão do aresto a que me refiro, já parece que, centrando-se a análise da matéria agora na questão da admissibilidade da desistência da instrução, o tema ganha outra dimensão e outra generalidade: é que, admitir-se que, tratando-se de fase facultativa, pode ocorrer desistência da mesma [ainda que possa ser questão saber se uma vez admitida tal fase não se torna irrecusável], tal faculdade, a ser pecúlio do assistente constituído, não haverá, creio, razão para ser negada a quem lhe suceder no estatuto [a admitir-se, e voltamos ao início, que a norma de habilitação para tal sucessão seja, em aplicação analógica, o citado artigo 113º, n.º 2 do Código Penal].


Recusa de juiz: um tema no limiar


É tema delicado, o da recusa de juiz. Move-se no limiar da luta por uma justiça que seja tida, generalizadamente, como imparcial e a assunção por alguns, de que se trata de ofensa pessoal àquele cujo critério é posto em causa. Tudo depende, também, reconheça-se, do modo como o tema é equacionado. Mas a formulação legal não ajuda à clareza.

Tem, por isso, interesse a leitura deste Acórdão da Relação de Guimarães de 11.01.2021 [proferido no processo n.º 2944/17.1T9BRG-B.G1, relatora Teresa Coimbra, texto integral aqui], de cujo sumário consta:


«1. Da lei processual penal ( art. 43 nº 1 do Código de Processo Penal) não se retira o que deve entender-se por “motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade de um juiz” capaz de justificar a recusa da sua intervenção num processo e o consequente afastamento do princípio do juiz natural, razão pela qual se impõe uma análise casuística dos motivos invocados de acordo com parâmetros objetivos ou subjetivos, na certeza de que quando a imparcialidade de um juiz ou a confiança da comunidade nessa imparcialidade são justificadamente postas em causa, o juiz deve ficar impedido de administrar a justiça.
«2. Quando um processo chega a julgamento o juiz já teve contacto com o processo e já proferiu diversas decisões que o levaram a ponderar sobre a eventual prática do crime (já recebeu a acusação ou a pronúncia, já recebeu a contestação, já ponderou sobre os meios de prova a produzir…), mas nenhuma destas decisões é suscetível de comprometer a imparcialidade do juízo a fazer perante a prova que venha a resultar do julgamento.
«3. De igual modo se o juiz do julgamento, anteriormente, em serviço de turno, teve contacto com o processo e ordenou a realização de busca domiciliária, tal intervenção, por si só, não é suscetível de pôr em causa a posição “equidistante, descomprometida e desprendida em relação ao objeto da causa e a todos os sujeitos processuais” que necessariamente terá de ter no julgamento, sob pena de alienar o mais importante património moral que possui e que é pressuposto fundante da dignidade das funções que exerce.»

Permito-me opinar, quanto às afirmações vertidas nos ponto 2 e 3: se concordo com a primeira delas, permito-me pôr em dúvida a segunda, configurando, diga-se, o tema em abstracto, porque, face ao caso, e lendo o teor do decidido, flui a noção de que o comprometimento da juiz em causa com os pressupostos probatórios da busca domiciliária que ordenou não terão ficado evidenciados e foi com esse fundamento que a Relação decidiu. 
É que, creio, não pode concluir-se que o envolvimento em uma diligência tão gravosa como uma busca domiciliária, não possa pressupor genericamente uma avaliação rigorosa da indiciação que esteja em causa. O mesmo vale, por maioria [se não por identidade -] de razão para a autorização de intercepções telefónicas ou a selecção do fruto das mesmas: aquele acto, tal como estes, não são, não podem ser, actos tabelares, de mero escrutínio de legalidade formal, antes actos decisórios que implicam um juízo sobre o substracto de possível indiciação daquele que irá ser depois julgado.
Trata-se, pois, de uma avaliação a efectuar de forma casuística, como ressalta da decisão.
Tema é - mas não é o que está em causa - saber se só haverá fundamentação para a recusa quando a dúvida sobre a imparcialidade se traduzir em actos processuais do recusando cujo sentido a possam evidenciar como motivo razoável, ou se a autoria objectiva de actos processuais prévios já pode implicar, em regime automático, a impossibilidade de julgar, em lógica de escusa, ou quando não actuada, de recusa.
Avançando uma opinião, creio ser de relevar que, ao ter clausulado como impedimento [no artigo 40º do CPP] essa impossibilidade de julgar [em audiência de primeira instância ou recurso, ainda que de revisão] quando da prática prévia dos actos processuais ali elencados de modo tipificado, o legislador traduziu a ideia de que, a participação em outros actos processuais não gera o automatismo do impedimento, e só casuisticamente a situação terá de ser avaliado como fonte de recusa; mas, ainda assim, fica esta questão irresoluta pois a letra da lei não clausula que, a juntar à participação em actos processuais que não os previstos no artigo 40º, mas que sejam actos aptos a gerar a formação de uma determinada convicção quanto ao mérito, ainda que indiciário do caso, ou à sua valia jurídica, haja que se somar, a demonstração exuberante em julgamento [ou recurso] de que o comprometimento existe e o juiz já tem, contra o seu distanciamento legalmente exigível, o apriori de uma ideia que formou quanto à matéria relativamente à qual tem de decidir.

Para que haja Justiça, inexista o facto!

 


É uma leitura inocente e, no entanto, ilustrativa. A conferência é singela, o tema daria hoje azo a um turbilhão de comentários. Apenas o foro em que foi lida, a solene Academia das Ciências, lhe empresta uma certa áurea. Só que não só de grandeza ou grandiloquència é feita a vida, antes no inesperado e breve se surpreende o digno e notável..

Pedro Pitta foi várias vezes Bastonário da Ordem dos Advogados, de 1957 a 1971. Democrata, Homem de Cultura, a ele se deve a posição de antítese ao regime político que então nos governou contra o qual a Ordem dos Advogados se bateu, sabendo resistir e elevar a sua voz face à perseguição a que tantos advogados foram sujeitos.

Chegou-me seu este breve livrito, de trinta e oito páginas em oitavo, pelas mãos daquele a quem já chamo «o meu alfarrabista», o que me abre crédito de cem euros, que vou repondo em pontual conta-corrente, tendo de ser eu a perguntar se já esgotei já o plafond com o meu vício pelas velharias, pois a sua elegância quase o embaraça de lembrar-mo.

E entre velharias e a partir delas que o conferencista encontrou o seu tema, velho e gasto farrapo de jornal francês, que lhe embrulhara uns livros que nem chegou ler, sim o remanescente do periódico onde se deteve na notícia que lhe daria azo à prelecção, lida a 23 de Janeiro de 1930.

Narrava então o jornal uma insignificante notícia, a do caso de dois faroleiros, exaustos pela vigília a que se sujeitavam, em quartos sucessivos de sentinela, por dias e noites de tempestade, já no limite febril do esgotamento e da renúncia, mas porfiando em manterem-se no seu posto, para que as embarcações que ali arrostavam, atiradas pelo turbilhão marítimo,  tivessem, pela luz do farol e pelo ronco da sereia, o sinal salvífico que as poupariam ao naufrágio e nele a perda de vidas humanas e das fazendas com que iam carregadas.

Mestre na escrita, Pitta centra-nos na cena como se estivéssemos no hediondo lugar. 

E surge então, insidiosa, a trama trágica, ditada pelo sortilégio da má fortuna, o ciúme de um deles, fruto da descoberta no bolso do seu companheiro, de uma carta íntima que dava razão à suspeita de que era com ele que se consumava o adultério já pressentido de sua mulher.

Com o ciúme, eis a ideia do homicídio, passional no momento em que ideia irrompe, mas adiada esta, minado o espírito do assassino entre o desejo aguilhoante de o perpetrar, e a consciência de que deveria manter vivo aquele que, fosse morto, impossibilitado estaria de o render nos turnos de vigia, e deixaria o farol desamparado e com isso barcos, mercadorias e sobretudos vidas humanas entregues à sua sorte e funesta esta se adivinhava.

Adiada a consumação da morte, foi ela infligida precisamente no momento em que, acalmado o mar, chegava a guarnição que asseguraria a rendição dos dois. Morte testemunhada, o homicida a entregar-se voluntariamente à prisão; esta sua opção impedira-o de cometer um crime que, realizado tivesse sido no momento em que o pensou. passaria oculto pela história possível de que o companheiro desparecera, sim, mas tragado pelas ondas do mar revoltoso, versão que o encobriria e lhe traria a falsa inocência.

Jurista, Pedro Goes Pitta, centrando o seu auditório ante o caso, encara o tema de que fez conferência: no sistema do Código Penal de 1886, afinal nesta parte o que já ere desde 1852, a premeditação no homicídio - e era este um caso insofismável com essa natureza, formado que fora o desígnio criminoso com antecedência superior a vinte e quatro horas - agravava necessariamente a responsabilidade criminal, impedindo a sua atenuação, privando os juízes de aplicarem esta por causa do valor imperativo da agravação.

E eis a luta entre o ditame da lei e o que dita o coração: defrontando-se entre estas antinomias, o rigor legal e a compreensão humana do caso, o conferencista convoca argumentos em favor da ideia, que faz sua, da possibilidade de a atenuação, que no caso tinha por devida, poder ter o seu lugar. 

Socorre-se, incerto, do então artigo 40º do Código Penal quando este previa que as circunstâncias, indicadas como agravantes deixavam de o ser «quando a lei expressamente o declarar, ou as circunstâncias e natureza especial do crime indicarem que não devem agravar e devem atenuar a responsabilidade dos agentes em que concorram». 

Mas sabe que «alguns escritores da especialidade de muitos julgadores» consideravam que tal favor não se aplicaria à premeditação e honradamente reconhece-o, não ocultando o que desmente a tese que patrocina. 

Discorda, porém. E clama, em revolta. É este o ponto tocante da sua contenda, intelectual e emotiva, ante a Lei. 

Esgrimindo, advogado, face a um caso hipotético, que o acaso de um resto de jornal lhe trouxera, Pedro Pitta resiste, e virando-se ao que a regra da tipicidade traria em desfavor, clama, no anseio de Justiça: «não pode haver normas inflexíveis, sobretudo em matéria penal; definições, não são de admitir quando se trata de circunstâncias absolutamente variáveis, diversas de indivíduo para indivíduo, e que são influenciadas por tantas e tão diferentes causas».

Desamparado ante a sua própria inteligência, ciente que não advogará contra ela, e perde a razão quando a razão não lhe trouxer íntima convicção do fundamento do que argumenta, irrompe, em desespero: e se «há casos em que as circunstâncias que rodeiam o acto praticado o justificam, se não à face da lei, ao menos ante a consciência dos homens», este homicídio adiado em nome dos valores de outras vidas que o criminoso quis fossem salvas, teria de encontrar homens que impedissem a agravação pela ineludível premeditação. 

Fossem, pois, esses homens juízes ou jurados,  que, ao abrigo do poder de julgar o facto, impedissem a aplicação da lei, dando como não provada a premeditação, que assim ficaria sem aplicação ao caso.

Voz irada, voz dos sentimentos, voz da revolta: «[...] a minha revolta crescia, crescia sempre, contra essas normas legais quasi inflexíveis, que não apreciam em matéria criminal cada caso em si próprio, com as características que o revestem, o precedem e o seguem, e que apenas encontram correcção na consciência dos julgadores e na liberdade que a si próprios avaramente se reservam e muito bem».

Lê-se e um frémito de emoção irrompe, tantos anos depois.. 


O processo que cria o facto

 


O livro chegou há semanas. O autor, Filippo Sgubbi, morreu em Julho deste ano. Tenho estado a lê-lo, aquela leitura lenta, porque se pensa enquanto se lê. O que pareciam apenas 88 páginas expandiu-se ante o que elas contêm.

E nele encontro a ideia que a vida vai formando e que tantos livros de texto iludem: a de que frequentemente  não é o processo que vai em busca da realidade, tal como o historiador tenta reconstituir o passado, mas é pelo processo que se forma o que se assume como a realidade e como verdade prática passa a ser.

Mais: assume-se, melhor, assume a acusação pública, ao recortar na complexidade da vida e pelo processo, não a materialidade relevante para a norma incriminadora que possa estar em causa, mas as ocorrências e apenas essas que confiram consistência ao teorema prévio que se queira fazer valer:  trata-se não da demonstração de uma eventualidade, sim da legitimação de um apriori.

Mais ainda: traz-se ao poder judicial, sob a forma de acusação, não da realidade o todo, mas dela a parte construída, a qual será doravante a única cognoscível, submete-se a juízes, que se supõem independentes na decisão, a dependência de só julgarem o que lhes é submetido a julgamento: o silogismo judicial fica sofismado ante o construtivismo da premissa menor, como já seria discutível ante a incerteza interpretativa da premissa maior, a volubilidade jurisprudencial ajudando.

Através da miscigenação com os media, torna-se assim aquilo que é suposto ser uma "hipótese de trabalho", como se dizia ser a acusação pública, no veredicto que verdadeiramente conta, estigmatizante para o suspeito, que nem acusado ainda seja, aquele que, como seus efeitos colaterais, abre a oportunidade para o sujeitar à "morte civil", o cerco ao seu património, a privação da sua liberdade, assim haja juiz que seja complacente ante essa verosimilhança dita indiciária.

Que a sentença final venha a decretar tudo isso insubsistente, conta amiúde pouco, pois mesmo  absolvição chega, ao limite, a ser irrelevante; o sistema atinge pela sua desesperante duração e pela álea das suas decisões, um tal ponto tal de degradação social e anímica das pessoas que estas, enfim, na recta final do julgamento estão dispostas a aceitar o que seja, assim se libertem da opressão a que foram sujeitas.

Dir-se-á, como é costume dizer-se, que nem sempre é deste modo  e exagero ao criar a noção de que é maioritariamente assim. É o costume quando se analisa uma tendência; fica-se à mercê dos que, em nome das excepções, se envergonham da regra, por honradamente nela se não reverem.

DGPJ: notícias relevantes


A acompanhar, necessariamente, a actividade deste Departamento. Os elementos que se encontram no seu site [ver  aqui] são da maior utilidade. A newsletter que divulga vai já no número 3.

Processo contraordenacional: simplificação, mas não tanta!


O sério problema do processo contraordenacional decorre da conjunção de vários factores: primeiro, o carácter aberto da remissão feita no Regime Geral, para o processo criminal, a qual se presta ao arbítrio se ser feita ou não funcionar consoante o propósito decisório almejado, assim se expandido ou retraindo o que é tido por ser Direito Constitucional aplicado; depois a existência daquele Regime Geral que é desmentido por particularidades dos vários regimes privativos de cada regulador, regimes específicos que são, aliás, para ajudar à confusão e com ela à incerteza, diversos entre si; enfim, o carácter dito flexível dessa espécie de procedimento, que fazia sentido quando se tratava de encontrar alternativa adjectiva às contravenções e transgressões penais mas se torna perigosa e atentatória de direitos fundamentais quando falamos de uma forma, assim dúctil, qual jurisdição graciosa, de aplicar coimas de milhões de euros.

De saudar, pois, que haja Tribunal, como o da Relação de Coimbra, que no seu Acórdão de 11 de Novembro [proferido no processo n.º 351/19.0T8MBR.C1, relatora Maria José Nogueira, texto integral aqui] barrou caminho ao que seria uma ofensa a um dos princípios basilares da conformação do objecto do objecto do processo em função da totalidade dos elementos do tipo de proibição, ao não conter a decisão administrativa a menção ao título subjectivo da imputação.

Citando do esclarecedor sumário que uma pormenorizada fundamentação desenvolve:

«I – A natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do elemento subjectivo da concreta contraordenação em causa, nomeadamente em termos de saber se estamos perante uma imputação a título de dolo ou, diversamente, a título de negligência.

«II – Tal omissão, constituindo violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 58.º do RGCOC, determina, por aplicação da al. a) do n.º 1 do art. 379.º do CPP, ex vi do art. 41.º do primeiro dos referidos diplomas, a nulidade da decisão administrativa.

«III – Não estando descrito na decisão administrativa o elemento subjectivo, impõe-se, por falta de tipicidade, a absolvição do arguido.»

Funcionário demandado civilmente por crime: foro competente


O tema é mais geral do que se colhe do sumário do Acórdão da Relação de Guimarães de 9 de Novembro [proferido processo n.º 179/16.0T9VNF.G1, relatora Cândida Martinho, texto integral aqui], porquanto é da competência do tribunal criminal, em detrimento da jurisdição administrativa, para conhecer, na lógica do princípio da adesão, pedido civil indemnizatório formulado contra quem responda criminalmente por actos praticado no exercício de funções públicas

Fazendo prevalecer a regra geral, o aresto enuncia-o por esta forma: «Vem sendo pacificamente aceite na doutrina e jurisprudência que o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal tem de ter como causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido se encontra acusado ou pronunciado, no processo em que é formulado o pedido (Germano Marques da Silva, in Direito Processual Penal Português, Vol. I, Universidade Católica Portuguesa, 2013, pág. 136, Acs. do STJ de 10/12/2008, proc. 08P3638, de 15/03/2012, proc. 870/07.1GTABF.E1.S1, de 29/03/2012, proc. 18/10.5GBTNV e de 28/05/2015, proc. 2647/06.2TAGMR.G1.S1, todos acessíveis in www.dgsi.pt

E o afastamento do foro administrativo decorre desta asserção, que, porquanto esclarecedora, nos permitimos citar in extenso: «a simples presença simples presença de uma ou mais pessoas singulares em juízo (ou seja, de pessoas não coletivas de direito público) não determina a competência material deste Tribunal, pois que, nos termos do artigo 10.º, n.º 7, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o litisconsórcio voluntário passivo abrange as relações emergentes de responsabilidade solidária ou conjunta extracontratual ou contratual das entidades públicas e/ou de particulares, resultando deste último normativo a possibilidade de acionamento de entes públicos e de outros interessados (ainda que particulares, ou seja, mesmo que não sejam concessionários ou agentes administrativos), desde que a relação material controvertida lhes diga igualmente respeito, isto é, se o âmbito da sua previsão e estatuição envolver o litisconsórcio voluntário passivo emergente de responsabilidade solidária ou conjunta extracontratual ou contratual da entidade pública e de uma entidade particular (AROSO DE ALMEIDA/CARLOS CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 2005, págs. 80 a 82).Destarte, pese embora os demandados não sejam pessoas coletivas de direito público, certo é que a presença de um réu com tal qualidade é o bastante para julgar como competentes os Tribunais Administrativos para o conhecimento da questão (cfr., neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Março de 2009, processo nº 488/05.3TBCDR.P1, relator Sousa Lameira, in www.dgsi.pt).»

Código da Actividade Bancária: consulta pública

 


Segundo informa o Banco de Portugal [ver aqui] foi alargado para 18 de Dezembro o prazo para a consulta pública do Código da Actividade Bancária. 

Trata-se de substituir o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras – vigente desde 1993 e sucessivamente alterado, de acordo com o que decorre do Livro Branco sobre a regulação e supervisão do sector financeiro [ver aqui].

O anteprojecto pode ser consultado aqui e o índice respectivo aqui.

Os artigos 642º a 645º reportam-se à tutela penal e os artigos 646º a 690º ao ilícito contraordenacional, nisso incluindo as normas processuais.