Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Taxa sancionatória: natureza e alcance

Interessante o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2019 [proferido no processo n.º 136/13.8JDLSB.L2-A.S1, relator Manuel Augusto Matos, texto integral aqui] sobre a natureza e alcance da taxa sancionatória.

Está prevista no n.º 1 do artigo 531º do CPC, segundo o qual :

«Por decisão fundamentada do juiz, pode ser excepcionalmente aplicada uma taxa sancionatória quando a acção, oposição, requerimento, recurso, reclamação ou incidente seja manifestamente improcedente e a parte não tenha agido com a prudência ou diligência devida».

Por força do artigo 521º do CPP aplica-se ao processo penal, porquanto, de acordo com aquele preceito legal:

«À prática de quaisquer actos em processo penal é aplicável o disposto no Código de Processo Civil quanto à condenação no pagamento de taxa sancionatória especial.».

Regulamentando o artigo 10º do Regulamento das Custas Processuais, subsidiariamente aplicável por disposição expressa no artigo 524.º do CPP, determina que:

«A taxa sancionatória é fixada pelo juiz entre 2 UC e 15 UC».

Ora historiando a sua origem, o aresto citado remete para um acórdão antecedente do mesmo tribunal:

«Como se dá nota no acórdão deste Supremo Tribunal de 05-09-2019, proferido no processo n.º 222/18.8YUSTR.L1-A.S1 – 5.ª Secção[2], a taxa sancionatória excepcional prevista no citado artigo 531º do CPC «corresponde à que estava já em vigor no art. 447º-B do anterior CPC, aditado pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro, que aprovou o Regulamento das Custas Processuais, e em cujo preâmbulo se esclarecia tratar-se de “um mecanismo de penalização dos intervenientes processuais que, por motivos dilatórios, “bloqueiam” os tribunais com recursos e requerimentos manifestamente infundados. Para estes casos, o juiz do processo poderá fixar uma taxa sancionatória especial com carácter penalizador”.»

Trata-se, pois de um das situações em que a lei processual penal revê uma taxa com tal natureza, porquanto, segundo o acórdão que vimos citando: «Outras taxas sancionatórias estão previstas no CPP, como nos arts. 223º, nº 6, 420º, nº 3, e 456º, punindo também atos manifestamente infundados ou temerários.»

Circunscrevendo o âmbito da referida taxa [e ressalvando que com esta taxa «não se pretende sancionar erros técnico-jurídicos, pois estes são sancionados através do pagamento de custas»], louva-se o acórdão no sentenciado em outras decisões do Supremo Tribunal de Justiça que expressamente refere:

«Assim, deverá o processado revelar a presença de pretensões formuladas por um sujeito processual que sejam manifestamente infundadas, abusivas e reveladoras de violação do dever de diligência que dêem azo a assinalável actividade processual. Mas para fazer essa avaliação é de exigir ao juiz muito rigor e critério na utilização desta medida sancionatória de modo a salvaguardar o direito das partes à defesa dos seus interesses pela via processual limitando o seu uso a situações que tenham efectivamente, algum relevo na normal marcha processual [[3]].

«Somente em situações excepcionais em que o sujeito aja de forma patológica no desenrolar normal da instância, ao tentar contrariar ostensivamente a legalidade da sua marcha ou a eficácia da decisão praticando acto processual manifestamente improcedente é que se justifica a aplicação da taxa sancionatória – por isso chamada – excepcional. O sujeito processual que não tenha agido com a prudência ou diligência devida é o que agiu contra disposição de lei expressa ou sem fundamento legal de forma imperceptível na sua pretensão, ou actuando com fins meramente dilatórios [[4]].

«É que, além do mais, à criação da sanção não são de todo estranhas razões de celeridade processual e bem assim de gestão útil dos fundos postos ao serviço da Justiça e suportados por todos os cidadãos contribuintes para as receitas fiscais. E à sua utilização deverá subjazer a patente falta de prudência a respeito da prática de certo acto e a falta de utilidade de que esse dito acto se revestiria importando um acrescido e injustificado atraso no desfecho do processo [[5]].

«Se é certo que com a taxa sancionatória excepcional se não pretende sancionar erros técnicos pois a sanção para estes sempre adveio do pagamento de custas, não é menos certo também que com a sua imposição se pretende reagir contra uma atitude claramente abusiva de utilização do processo sancionando o sujeito que intencionalmente o perverte com uma actuação imprudente, desprovida da diligência exigível e como tal censurável [[6]]».


[2] Disponível nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt, como os demais acórdãos que se citarem sem outra menção.
[3] Ac STJ de 2017.01.04, proc 149/05.3PULSB.L1-B.S1 como os demais citados infra consultável em www.dgsi.pt.
[4] Ac STJ de 2017.05.10, proc 12806/04.7DLSB.L2-A.S1.
[5] Ac STJ de 2017.06.08, proc 1246/05.0TASNT.L1-B.S2. 

[6] Ac STJ de 2019.05.09, proc 565/12.4TATVR-C.E1-A.S1.

A meta

Não é que seja necessariamente uma corrida para ver quem chega primeiro à meta, nem que a celeridade seja necessariamente critério de boa justiça, mas a resposta tempestiva ainda é algo a relevar, sobretudo quando se atende à resposta que é divulgada. É este o ponto de situação actual no que se refere à publicação de acórdãos na dgsi:

TRL-16.01.20
TC-15.01.20
TRP-14.01.20
TRE-07.01.20
STJ-27.12.19
TRG-17.12.19

Segredo de advogado: a imprescindível defesa

Sempre em risco, a enfrentar várias frentes de ataque pelas mais variadas razões, o segredo profissional de advogado ainda consegue encontrar um espaço de consideração em aresto como o Acórdão da Relação de Évora de 07.01.2020 [proferido no processo n.º 422/14.0T9TMR-A.E1, relatora Maria de Fátima Bernardes, texto integral aqui], segundo o qual e de acordo com o respectivo sumário: «Só se justifica a quebra do segredo profissional de advogado se, no caso concreto, for absolutamente essencial e imprescindível à descoberta da verdade material, que se pretende alcançar.»

Eis a fundamentação do decidido:

«Em processo penal, a regra geral quanto ao dever de testemunhar é a que consta do n.º 1 do artigo 131º do Código de Processo Penal, o qual preceitua que: «Qualquer pessoa que se não encontrar interdita por anomalia psíquica tem capacidade para testemunhar e só pode recusar-se nos casos previstos na lei.»
Todavia, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 135º, que supra se transcreveu, os advogados e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional podem recusar-se a depor, invocando, precisamente, esse dever.
Mas o segredo profissional não é absoluto, sendo legalmente previstos casos em que pode ser dispensado ou quebrado.
Tratando-se de Advogado, existem duas[5] situações em que, excecionalmente, pode ser, por assim dizer desvinculado, do segredo profissional, sendo uma a das situações a da dispensa do segredo profissional, requerida pelo Advogado ao Presidente do Conselho Regional competente e por este autorizado, nos termos do artigo 92º, n.º 4 do EOA e a outra situação, a da quebra do segredo profissional, por via do correspondente incidente processual, regulado no artigo 135º do C. Processo Penal.
É esta última a situação que, in casu, é submetida à apreciação desta Relação.
Como resulta do disposto no n.º 3 do artigo 135º, o tribunal superior pode ordenar a prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que se mostre “justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos”.
O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, no caso concreto, sobrepor-se ao outro[6].
«Os interesses em confronto são, por um lado, o interesse do Estado na realização da justiça, especificamente, na realização da justiça penal, e por outro, o interesse tutelado com o estabelecimento do segredo profissional na Advocacia, ou seja, a tutela da relação de confiança entre o advogado e o cliente e da dignidade do exercício da profissão que a Lei Fundamental considera elemento essencial à administração da justiça (art. 208º da Constituição da República Portuguesa)[7].»
Nesta ponderação, os elementos a atender, pelo tribunal para aferir qual o interesse preponderante que deve prevalecer, em ordem a justificar a quebra do segredo profissional e a determinar a prestação de depoimento por quem se encontre obrigado ao mesmo, são, nomeadamente, a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.
Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque [8], «A imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade significa duas coisas: a descoberta da verdade é irreversivelmente prejudicada se a testemunha não depuser ou, depondo, o depoimento não incidir sobre os factos abrangidos pelo segredo profissional e, portanto, o esclarecimento da verdade não pode ser obtido de outro modo, isto é, não há meios alternativos à quebra do segredo profissional que permitam apurar a verdade.
A “necessidade” de protecção de bens jurídicos identifica-se com uma “necessidade social premente” (…) de relevação da informação coberta pelo segredo profissional, à luz da interpretação que o TEDH e o Comité de Ministros do Conselho da Europa têm feito do artigo 8º da CEDH [9] (…). Os “bens jurídicos” a que a lei se refere são os bens jurídicos tutelados pela lei penal Portuguesa, mas a quebra do sigilo profissional só é justificável se corresponder a um interesse social premente. (…)»
Portanto, nem todos os bens jurídicos tutelados pela lei penal justificam a quebra do sigilo profissional. O critério da necessidade da protecção dos bens jurídicos é ainda mais rigorosamente delimitado pelo critério da “gravidade do crime”. É aqui se reside o cerne do juízo de justificação feito pelo tribunal superior: na ponderação da gravidade do crime investigado em contrapeso com o prejuízo da intrusão na privacidade da pessoa obrigada ao segredo profissional. A gravidade dever ser aferida em abstracto e em concreto. Em abstracto, o conceito de “gravidade do crime” ou de “crime grave” deve ser condensado de acordo com a bitola fixada no artigo 187.º, nº 1, al.ª a) [10], isto é, considerando-se “crime grave” o crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos, atenta a similitude material entre a tutela do direito à privacidade pelo artigo 187º e a tutela do segredo profissional pelo artigo 135.º Ou seja, não deve o tribunal superior considerar justificada a quebra do segredo profissional nos casos de crime punível com pena de prisão até três anos. (…)
Isto não quer obviamente dizer que a revelação da informação sobre segredo profissional deva sempre ter lugar quando estiver em causa a investigação de crimes puníveis com pena superior a três anos de prisão. A ponderação da gravidade dos crimes puníveis com pena superior a três anos de prisão não é dispensável, pois a gravidade do crime deve ser aferida não apenas em abstracto, mas também em concreto, em face das concretas circunstâncias que envolveram a prática do crime. (…).»
É incontroverso que a quebra do segredo profissional, em favor do interesse da descoberta da verdade dos factos e da administração da justiça, tem carácter verdadeiramente excecional e, em nosso entender, só deve ser determinada por razões imperiosas, de outro modo inultrapassáveis, nomeadamente, estar a parte impedida de produzir a prova que lhe compete sem o depoimento da testemunha adstrita ao segredo profissional [11], ou, dito de outro modo, só é justificada a quebra «quando não haja meios alternativos à quebra do segredo profissional que permitam apurar a verdade.[12]»

Como resulta do disposto no n.º 3 do artigo 135º, o tribunal superior pode ordenar a prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que se mostre “justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos”.

O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, no caso concreto, sobrepor-se ao outro[6].

«Os interesses em confronto são, por um lado, o interesse do Estado na realização da justiça, especificamente, na realização da justiça penal, e por outro, o interesse tutelado com o estabelecimento do segredo profissional na Advocacia, ou seja, a tutela da relação de confiança entre o advogado e o cliente e da dignidade do exercício da profissão que a Lei Fundamental considera elemento essencial à administração da justiça (art. 208º da Constituição da República Portuguesa)[7].»

Nesta ponderação, os elementos a atender, pelo tribunal para aferir qual o interesse preponderante que deve prevalecer, em ordem a justificar a quebra do segredo profissional e a determinar a prestação de depoimento por quem se encontre obrigado ao mesmo, são, nomeadamente, a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.

Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque[8], «A imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade significa duas coisas: a descoberta da verdade é irreversivelmente prejudicada se a testemunha não depuser ou, depondo, o depoimento não incidir sobre os factos abrangidos pelo segredo profissional e, portanto, o esclarecimento da verdade não pode ser obtido de outro modo, isto é, não há meios alternativos à quebra do segredo profissional que permitam apurar a verdade.

A “necessidade” de protecção de bens jurídicos identifica-se com uma “necessidade social premente” (…) de relevação da informação coberta pelo segredo profissional, à luz da interpretação que o TEDH e o Comité de Ministros do Conselho da Europa têm feito do artigo 8º da CEDH[9] (…). Os “bens jurídicos” a que a lei se refere são os bens jurídicos tutelados pela lei penal Portuguesa, mas a quebra do sigilo profissional só é justificável se corresponder a um interesse social premente. (…)»

Portanto, nem todos os bens jurídicos tutelados pela lei penal justificam a quebra do sigilo profissional. O critério da necessidade da protecção dos bens jurídicos é ainda mais rigorosamente delimitado pelo critério da “gravidade do crime”. É aqui se reside o cerne do juízo de justificação feito pelo tribunal superior: na ponderação da gravidade do crime investigado em contrapeso com o prejuízo da intrusão na privacidade da pessoa obrigada ao segredo profissional. A gravidade dever ser aferida em abstracto e em concreto. Em abstracto, o conceito de “gravidade do crime” ou de “crime grave” deve ser condensado de acordo com a bitola fixada no artigo 187.º, nº 1, al.ª a)[10], isto é, considerando-se “crime grave” o crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos, atenta a similitude material entre a tutela do direito à privacidade pelo artigo 187º e a tutela do segredo profissional pelo artigo 135.º Ou seja, não deve o tribunal superior considerar justificada a quebra do segredo profissional nos casos de crime punível com pena de prisão até três anos. (…)

Isto não quer obviamente dizer que a revelação da informação sobre segredo profissional deva sempre ter lugar quando estiver em causa a investigação de crimes puníveis com pena superior a três anos de prisão. A ponderação da gravidade dos crimes puníveis com pena superior a três anos de prisão não é dispensável, pois a gravidade do crime deve ser aferida não apenas em abstracto, mas também em concreto, em face das concretas circunstâncias que envolveram a prática do crime. (…).»

É incontroverso que a quebra do segredo profissional, em favor do interesse da descoberta da verdade dos factos e da administração da justiça, tem carácter verdadeiramente excecional e, em nosso entender, só deve ser determinada por razões imperiosas, de outro modo inultrapassáveis, nomeadamente, estar a parte impedida de produzir a prova que lhe compete sem o depoimento da testemunha adstrita ao segredo profissional[11], ou, dito de outro modo, só é justificada a quebra «quando não haja meios alternativos à quebra do segredo profissional que permitam apurar a verdade.[12]»

Tendo presentes as considerações que se deixam expendidas e baixando ao caso concreto:

Antes de mais, importa referir que não se determinou a audição da Ordem dos Advogados, como se estabelece no n.º 4 do artigo 135º do C. Processo Penal, atendendo a que o Sr. Advogado, Dr. BB juntou aos autos cópia da notificação que lhe foi dirigida pelo Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados, de que foi proferido despacho de indeferimento do pedido de dispensa de sigilo profissional que, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 92º do EAO, formulou, tal audição se traduziria numa mera e desnecessária repetição e portanto, na prática de um ato inútil.

Por outro lado, a circunstância de não serem conhecidos nos autos, os fundamentos em que o órgão competente do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados se baseou para indeferir o pedido de dispensa de sigilo profissional apresentado pelo Dr. BB, ao abrigo do n.º 4 do artigo 92º do EAO e que constarão do despacho proferido que foi notificado ao Sr. Advogado que requereu aquela dispensa[13], não tem qualquer relevância para a apreciação da questão trazida à apreciação desta Relação, quer por que esse despacho recaiu sobre um pedido dirigido pelo Sr. Advogado ao Presidente daquele Conselho Distrital, de dispensa do sigilo profissional - seguindo o procedimento previsto no artigo 92º, n.º 4 do EOA e no Regulamento nº. 94/2006, de 12 de junho -, quer porque essa decisão é vinculativa apenas para o Sr. Advogado e não para este Tribunal. E por que assim é, o desconhecimento, no processo de onde foi extraído o presente traslado, dos fundamentos daquele despacho e, ressalvado o devido respeito por entendimento contrário, não pode servir para que o arguido, ora recorrente, possa invocar, como o faz, a inconstitucionalidade do artigo 135º, n.º 3, do CPP, na interpretação «de que pode ser decidido que o segredo profissional prevalece sobre o interesse da descoberta da verdade e da defesa do Arguido, sem que se conheça, mesmo de forma sumária, o interesse concreto subjacente à recusa do seu levantamento, por violação das garantias de defesa, tal como previstas no art. 32º, n.º 1, da C.R.P..»

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[1] In Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição, Almedina, anotação 2 ao artigo 135º, pág. 494.

[2] Cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 3ª Edição, Editora Rei dos Livro, 2008, pág. 961

[3] Cfr. Cons. Santos Cabral, in ob. cit., anotação 5 ao artigo 135º, pág. 499.

[4] E também no Regulamento nº. 94/2006, de 12 de junho (Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional da AO, pub. no DR IIª Série, de 25 de maio de 2006).

[5] Certo setor da jurisprudência considera ainda existir uma terceira situação que é a que decorre da desvinculação feita pelo próprio cliente, isto é, quando este autoriza a revelação do segredo– neste sentido, vide, entre outros, Ac. desta RE de 07/05/2019, proc. 248/12.5TAELV-B.E1 e Ac. da RC de 28/11/2018, proc. n.º 305/14.3T9LRA-A.C1, ambos acessíveis no endereço www.dgsi.pt e Paulo Pinto de Albuquerque –, não sendo este entendimento consensual, defendendo outro setor da jurisprudência e da doutrina, que do ponto de vista da desvinculação, o consentimento do cliente é irrelevante – neste sentido, vide, entre outros, Ac. da RP de 07/12/2018, proc. 430/14.0TAAMT.P1, também acessível no referenciado endereço –.

[6] Cf. referenciado Ac. da RC de 28/11/2018, proc. n.º 305/14.3T9LRA-A.C1,

[7] Idem.

[8] In Comentário do Código de Processo Penal …, 3ª edição, 2009, Universidade Católica Editora, anotações 8, 9 e 10 ao artigo 135º, páginas. 363 e 364.

[9] Normativo que têm por epigrafe, “Direito ao respeito pela vida privada e familiar” e que dispõe:

1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.

2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.

[10] Que se reporta à admissibilidade das escutas telefónicas.

[11] Cfr. Ac. da RL de 25/03/2014, proc. 602/08.7TBBNV-A.L1-7

[12] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit. anotação 11 ao artigo 135º, páginas 364 e 365.

Audição parlamentar da ministra da Justiça

Encontra-se aqui o vídeo da audição da ministra da Justiça na reunião em sessão conjunta da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e da Comissão de Economia e Finanças da Assembleia da República. Quanto ao texto inicial apresentado pela ministra, o mesmo está aqui. Foi nessa intervenção que a ministra anunciou a atribuição da presidência do grupo de trabalho incumbido da definição, a propor ao Governo, de uma estratégia contra a corupção. Nas suas palavras:

«O Governo identificou no seu Programa um amplo conjunto de medidas e tem em curso a promoção de uma estratégia nacional integrada, compreendo a prevenção e a repressão dos fenómenos corruptivos - robustecendo instrumentos jurídico-processuais já existentes e prosseguindo o processo de reforço dos recursos humanos e tecnológicos do Ministério Público e da Polícia Judiciaria. A definição das linhas dessa estratégia está a cargo de um grupo de trabalho liderado pela senhora professora Maria João Antunes, da faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.»

Depoimento indirecto: validade sem confirmação

Por lei, o depoimento indirecto é admissível desde que seja confrontado com a fonte em que se baseia, o que obriga o tribunal ao dever de apurar a fonte de ciência para que o possa valorar. A excepção reside, nos termos da mesma lei, quando a pessoa a quem se ouviu dizer não puder ser inquirida, por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada.

É o que dispõe o artigo 129º, n.º 1 do CPP: 

«Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.».

Ora no sentido da interpretação deste último requisito [«impossibilidade de serem encontradas»], o Acórdão da Relação de Guimarães de 17.12.2019 [proferido no processo n.º 602/16.3GBVVD.G1, relatora Ausenda Gonçalves, texto integral aqui] estatuiu:

«Para ser ultrapassada a proibição de valoração do conteúdo do testemunho indirecto, enunciada no comando do citado art. 129º, basta que a fonte da informação seja chamada ao processo - quer ela compareça em juízo quer se mostre impossível encontrá-la -, não impondo a lei que esse conteúdo venha a ser confirmado pela fonte material originária de onde provinha o conhecimento dos factos.»

Mas o cerne do entendimento plasmado é este excerto:

«Assim, a lei limita-se a impor que o tribunal diligencie no sentido de obter o depoimento da fonte, cessando a proibição de valoração inerente ao artigo 129.º do CPP com o chamamento a depor da fonte originária, mesmo que posteriormente a mesma se recuse legitimamente a depor, pois a valoração não depende do conteúdo do depoimento da mesma. Para ser ultrapassada a proibição de valoração enunciada nesse comando, basta que a fonte da informação seja chamada ao processo, quer ela compareça em juízo quer se mostre impossível encontrá-la para depor.»

Ou seja, e sendo claro, não estarei errado ao afirmar que onde a lei estatui restritivamente como excepção a impossibilidade de a testemunha-fonte ser encontrada, este acórdão basta-se com a mera notificação e não audiência, pois assumo que, assim interpretado, não fará sentido se não como lapso de formulação pela negativa o excerto «quer ela compareça em juízo».

Em abono do decidido o acórdão cita, para além de um estudo de Costa Pinto [Depoimento indirecto, legalidade da prova e direito de defesa” in Estudos e homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. III, Coimbra editora, 2010, págs. 1047-1048] outro da mesma Relação e secção, proferido no proceso n.º 3202/17.7T8GMR [relator por Cruz Bucho], segundo o qual:

«Como é sabido, na fase de transição que mediou entre a entrada em vigor da Constituição de 1976 e a entrada em vigor do novo Código de Processo Penal, os textos nacionais que estiveram na génese do novo regime apontavam genericamente para a proibição do testemunho de ouvir dizer [cfr. Parecer do Prof. Costa Andrade publicado na Colectânea de Jurisprudência (CJ), ano VI, 1981, tomo 1, págs 5-11, Figueiredo Dias, “Para uma reforma global do processo penal português”, in AAVV, Para uma nova justiça penal, Coimbra editora, 1983, págs. 207-209 e 219 e o parecer da Comissão Constitucional n.º 18/81 que esteve na base da resolução do Conselho da Revolução n.º 146/81, que declarou inconstitucional o artigo 439.º do CPP de 1929)]. A proscrição de testemunhos de outiva ou de ouvir dizer, na linha dos direitos de raiz anglo-saxónica que proibiam a “hearsey evidence”, não foi, porém, consagrada de forma absoluta.É hoje unânime o entendimento segundo o qual o Código português consagrou um regime de “admissibilidade condicionada” (cfr. Carlos Adérito Teixeira, “Depoimento Indirecto e Arguido”, in Revista do CEJ, n.º2, 1º semestre 2005, págs. 131-133, Paulo Dá Mesquita, A Prova do Crime e o que se disse antes do julgamento, Coimbra editora, 2011, pág. 520 e Costa Pinto, Depoimento indirecto, legalidade da prova e direito de defesa, cit., págs 1043 e ss). Na síntese de Dá Mesquita (A Prova do Crime e o que se disse antes do julgamento, cit., pág. 532):«O regime português do depoimento indirecto não compreende uma política preventiva que obste à admissão do ouvir dizer, o depoimento faz emergir os deveres procedimentais do tribunal (determinação da fonte e chamamento a depor da mesma) e as proibições não derivam do processo inferencial gerado pelo ouvir dizer, mas traduzem restrições por força do procedimento adoptado. Proibição irrestrita, no caso da fonte indeterminada e dependente do achamento a depor no caso da fonte determinada que não foi inquirida, admitindo-se excepções em que aquela não tem que ser chamada».

Convocando o tema à luz dos preceitos de salvaguarda dos direitos humanos, e louvando-se no aresto que citou em apoio ao que sufragou, acrescenta o decidido:

«A jurisprudência do TEDH admite a validade dos testemunhos de ouvir dizer desde que a ausência do testemunho directo esteja devidamente justificada (cfr. Sentenças do TEDH 19 de Dezembro de 1990, Delta c. França, § 37, de 19 de Fevereiro de 1991, Isgro c. Itália, § 35 ; de 26 de Abril de 1991, Asch c. Austria , § 28, de 28 de agosto de 1992, Artner c. Austria , §§ 22-24 e de 14 de Dezembro de 1999, A.M . c. Itália , § 25) e desde que a condenação não seja fundamentada (...) uniquement ou dans une mesure déterminante (...) sur des dépositions faites par une personne que l’accusé n’a pu interroger ou faire interroger ni au stade de l’instruction ni pendant les débats (CEDH 27 de Fevereiro de 2001, Lucà c Itália, § 40). Esta última regra dita “de la preuve unique ou déterminante » foi abandonada pelo Ac da Grande Câmara de 15-12-2011, n° 26766/05 et 22228/06, Al-Khawaja e Tahery v. Reino Unido (cfr. detalhadamente, Nicolas Hervieu, Admissibilité des preuves par ouï-dire et droit de contre-interrogatoire en matière pénale, in licithttp://combatsdroitshomme.blog.lemonde.fr), abandono reafirmado no Ac. Schatschaschwili c. Alemanha , n.º 9154/10, de 15 de Dezembro de 2015.».

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Este texto foi objecto de rectificações, incluindo o título, por ter havido lapsos na escrita que lhe desvirtuavam o sentido.

Despacho que converte multa em prisão: notificação postal simples

A eterna questão das notificações ao arguido, entre a celeridade, a economia financeira e a segurança jurídica. Eis a Relação de Coimbra a considerar, no seu acórdão de 15.01.2010 [proferido no processo n.º 43/14.7PFLRA-A.C1, relatora Alcina da Costa Ribeiro, texto integral aqui] que:

«A notificação da decisão que, ao abrigo do disposto no artigo 49.º, n.º 1, do CPP, converte a pena de multa em prisão subsidiária, pode ser efectuada via postal simples, para a residência escolhida pelo arguido quando da prestação do TIR».

Em causa estava um recurso do Ministério Público de despacho que indeferiu a notificação do arguido, via postal, com prova de depósito, do despacho que converteu a pena de multa em prisão subsidiária; o recorrente entendia que haveria lugar à notificação judicial simples para a morada declarada no termo de identidade e residência.

A decisão louva-se num raciocínio que, para efeitos da lógica de relativização das consequências do decidido, começa por qualificar o despacho em causa como não restritivo da liberdade do arguido, porquanto, porquanto como explicita: 

«[...] o despacho que converte a multa em prisão, nos termos do nº 1 do artigo 49º, do Código Penal, ainda não restringe a liberdade do arguido, pois entre o momento em que é decretada e o respectivo cumprimento, ainda o condenado pode evitar a privação da liberdade, pagando total ou parcialmente a multa.»

Para além disso, e em complemento argumentativo, o acórdão dá como assente a existência de um dever legal de manutenção de ligação à residência declarada em sede de TIR. Na expressão do aresto:

«O arguido prestou termo de identidade e residência, escolheu a morada para efeitos de notificação dos actos processuais, não tendo, como devia, indicado a alteração da morada.
Com a sentença condenatória em pena de multa, sabia o arguido que a sua relação com o Tribunal só terminaria com a extinção da pena.
Se, ao Estado cumpre diligenciar pela notificação do arguido, dando-lhe a conhecer o teor das decisões tomadas no processo-crime; ao condenado exige-se que tome as diligências adequadas para tornar efectivo esse conhecimento, com uma atitude simples e fácil, a de comunicar a alteração da morada que ele mesmo escolheu e indicou, para efeitos de notificação dos actos processuais. A facilidade do cumprimento deste dever, perante a importância dos fins que visa atingir, não o torna desproporcional ou ilegítimo.»

E, no sentido de enfrentar o tema da eventual inconstitucional de uma orientação como a que sufraga cita dois aresto do Tribunal Constitucional que decidiram sobre a valoração do desvalor das notificações por via postal simples: o Acórdão n.º 17/2010 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 22 de fevereiro de 2010) e o Acórdão nº 109/2012 do mesmo Tribunal.

Enfim, dando conta que o tema é polémico na jurisprudência, a decisão cita:

«É conhecida a abundante jurisprudência suscitada sobre o regime de notificações das decisões condenatórias em processo penal, abordando questões várias, de entre as quais, se salienta, para o caso, a forma que devem revestir.
Especificamente sobre a questão da notificação da decisão que converte a multa em prisão subsidiária, a divergência surge entre os que defendem que aquela notificação deve ser efectuada por contacto pessoal (v.g. entre outros, Acórdão desta Relação de 9 de Maio de 2012, Processo nº 100/08.9GBMIR-A.C1 e de 25 de Junho de 2014, Processo nº 414/99.7TBCVL-B.C1; da Relação de Évora de 30 de Outubro de 2012, Processo nº 63/09.3 PAOLH.E1 e de 19 de Março de 2013, Processo nº 99/05 3PATVR-B.E1; da Relação de Lisboa de 14 de Fevereiro de 2018, Processo nº 210/15.6PESNT.L1-3 e de 19 de Fevereiro de 2019, Processo nº 124/14.7PTOER-A-.L1-5; da Relação do Porto de 18 de Maio de 2011, Processo nº 241/10.2PHMTS-A.P1 e 14 de Dezembro de 2011, Processo nº 344/09.6PBMTS-B.P1) e os que entendem a notificação pode ser por via postal (Acórdão desta Relação de 22 de Maio de 2013; da Relação do Porto de 30 de Junho de 2018, Processo nº 92/15.8GBOAZ-A.P1, de 12 de Setembro de 2018, documento nº RP20180912390/13.5GBOAZ-A.P1; de 31 de Outubro de 2018, Processo nº 665/14.6GBOAZ-A.P1, de 6 de Fevereiro de 2019, Processo nº 1630/15.1T9VFR.P1 e de 29 de Novembro de 2016, processo nº 1239/06.0PTPRT-A.P1; da Relação de Évora de 22 de Setembro de 2015, Processo nº 385/11. 3GGSTB-A.E1).»



Gabinete de Política Legislativa: termo de funções

Cessou hoje, com exoneração a meu pedido, a presidência do Gabinete de Política Legislativa da Ordem dos Advogados. Faço aqui referência não como excepção à regra a que me amarrei de não trazer para este espaço a minha actividade como advogado, sim por se ter tratado de missão pública, sendo, pois, relevante, a meu ver, dar notícia do facto.
O fruto desse triénio está divulgado no Portal da Ordem dos Advogados, faltando apenas a difusão do relatório respeitante ao ano antecedente.

Leniência em cartéis: exemplo brasileiro

A Autoridade da Concorrência promove no próximo dia 24, pelas 16:00, um Seminário Aberto sob o tema “A leniência na luta contra cartéis – exemplos do CADE", em que será orador Alexandre Barreto de Souza. O evento terá lugar na Biblioteca de Concorrência Abel Mateus (instalações da AdC, Av. Berna, 19, 1.º andar - Lisboa. A entrada é livre, sujeita, embora a inscrição, a efectuar aqui.

Conselho Superior da Magistratura: audição parlamentar de candidatos


Está aqui o vídeo das audições, a 19 de Dezembro do transacto ano, dos candidatos a membros do Conselho Superior da Magistratura: Vítor Pereira Faria, Lício Lopes Martins, José António Pinto Ribeiro, António Vieira Cura, António Barradas Leitão, Inês Ferreira Leite, André de Oliveira Miranda, Paulo da Costa Valério, Luís Eleias Pereira e Telma Solange Carvalho.

Assembleia da República: iniciativas

É este o ponto de situação das iniciativas legislativas registadas na 1ª CACDLG em matéria de projectos de lei como relevo para o tema deste blog:

[178/XIV, PAN]: Regulamenta a atividade de lobbying e procede à criação de um Registo de Transparência e de um Mecanismo de Pegada Legislativa (procede à primeira alteração à Lei Orgânica n.º 4/2019, de 13 de setembro, e à décima quarta alteração à Lei n.º 7/93, de 1 de março)

TEDH: novas regras

As novas regras do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entraram em vigor no dia 1 de Janeiro. O texto das regras bem como indicações práticas pode ser encontrado aqui.

Conselho de Ministros: elisão fiscal


No Conselho de Ministros de ontem foram aprovados diplomas sobre a denominada elisão fiscal. Segundo o comunicado [texto integral aqui]:

«Foram aprovadas duas propostas de lei, a submeter à apreciação da Assembleia da República, relativas ao combate à elisão fiscal, designadamente através do estabelecimento:

- da obrigação de comunicação à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) de determinados mecanismos internos ou transfronteiriços com relevância fiscal, transpondo a Diretiva (UE) 2018/822 no que respeita à troca automática de informações obrigatória no domínio da fiscalidade em relação aos mecanismos transfronteiriços a comunicar.

Desta proposta de lei resulta um regime jurídico integralmente novo, revitalizado e reforçado, que integra de forma coerente as vertentes interna e externa da União Europeia, de comunicação obrigatória à AT de mecanismos que contenham determinadas características-chave bem tipificadas. Tais características traduzem a indiciação de um potencial risco de evasão fiscal, incluindo o contornar de obrigações legais de informação sobre contas financeiras ou de identificação dos beneficiários efetivos.

A Diretiva assume expressamente como objetivo um melhor funcionamento do mercado interno, desencorajando a utilização de mecanismos de planeamento fiscal agressivos, no pressuposto de que tal objetivo é mais bem alcançado ao nível da União, em termos que são conformes com os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade.

- de regras contra as práticas de elisão fiscal que tenham incidência direta no funcionamento do mercado interno no que respeita a assimetrias híbridas com países terceiros, mediante a transposição parcial da Diretiva (UE) 2016/1164, alterando o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas.

A proposta de lei introduz diversas alterações ao Código do IRC que visam essencialmente neutralizar os efeitos fiscais das práticas de elisão fiscal transfronteiriças realizadas com vista ao aproveitamento de disparidades entre os sistemas fiscais de diferentes jurisdições em matéria de fixação de base tributável, impedindo que as entidades envolvidas possam beneficiar de duplas deduções fiscais, taxas de tributação mais reduzidas ou, no limite, de uma redução da tributação efetiva dos seus lucros.

A neutralização dos efeitos de assimetrias híbridas é um instrumento de combate à elisão fiscal totalmente inédito no ordenamento jurídico nacional e que reforça o compromisso do Governo nesta matéria, em consonância com as recomendações do relatório final da ação 2 do Plano BEPS (Base Erosion and Profit Shifting Plan) apresentado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), com o apoio político do G20.»

DCIAP: quadro de procuradores


Considerando que «o DCIAP tem por vocação matricial a luta contra a criminalidade violenta, económico-financeira altamente organizada ou de especial complexidade, mediante intervenção em três vertentes: prevenção criminal, direção da investigação da criminalidade de natureza transdistrital (dispersão territorial) e coordenação da direção da investigação a nível nacional (desconcentração dos poderes hierárquicos de coordenação)», a Portaria n.º 9/2020 - Diário da República n.º 12/2020, de 17 de Janeiro, fixou, com flexibilidade, entre 30 a 36 o número de procuradores da República do quadro do DCIAP. A Portaria n.º 328/2006, de 6 de Abril, havia fixado o número em 12 mais o procurador-geral adjunto que o dirige. Em 1999, data da sua fundação, o número de procuradores do quadro era de oito.
No portal da Procuradoria-Geral da República estão publicados relatórios de actividades do Departamentos [o último de 2017].

Data Venia: uma revista


Acrescentei à lateral esquerda deste blog a revista jurídica on line Data Venia [acesso à mesma aqui], administrada pelo esforço do incansável juiz Joel Timóteo Ramos Pereira, a quem se deve, desde há anos, o serviço público de divulgação do Direito.

Cito o texto de apresentação:

«A Data Venia é uma revista digital de carácter essencialmente jurídico, destinada à publicação de doutrina, artigos, estudos, ensaios, teses, pareceres, crítica legislativa e jurisprudencial, apoiando igualmente os trabalhos de legal research e de legal writing, visando o aprofundamento do conhecimento técnico, a livre e fundamentada discussão de temas inéditos, a partilha de experiências, reflexões e/ou investigação.

As opiniões expressas são da exclusiva responsabilidade dos respectivos autores e não traduzem necessariamente a opinião dos demais autores da Data Venia nem do seu proprietário e administrador.

A citação, transcrição ou reprodução dos conteúdos desta revista estão sujeitas ao Código de Direito de Autor e Direitos Conexos.

É proibida a reprodução ou compilação de conteúdos para fins comerciais ou publicitários, sem a expressa e prévia autorização da Administração da Data Venia e dos respectivos Autores.

A Data Venia faz parte integrante do projecto do Portal Verbo Jurídico. O Verbo Jurídico é um sítio jurídico português de natureza privada, sem fins lucrativos, de acesso gratuito, livre e sem restrições a qualquer utilizador, visando a disponibilização de conteúdos jurídicos e de reflexão social para uma cidadania responsável.»


Multa em prestações

Estabelece o artigo 489º do CPP:

1 - A multa é paga após o trânsito em julgado da decisão que a impôs e pelo quantitativo nesta fixado, não podendo ser acrescida de quaisquer adicionais.
2 - O prazo de pagamento é de 15 dias a contar da notificação para o efeito.
3 - O disposto no número anterior não se aplica no caso de o pagamento da multa ter sido diferido ou autorizado pelo sistema de prestações.

Dispõe os n.ºs 3, 4 e 5 do artigo 47º do Código Penal:

3 - Sempre que a situação económica e financeira do condenado o justificar, o tribunal pode autorizar o pagamento da multa dentro de um prazo que não exceda um ano, ou permitir o pagamento em prestações, não podendo a última delas ira além dos dois anos subsequentes à data do trânsito em julgado da condenação.
4  -Dentro dos limites referidos no número anterior e quando motivos supervenientes o justificarem, os prazos de pagamento inicialmente estabelecidos podem ser alterados.
5  - A falta de pagamento de uma das prestações importa o vencimento de todas.

E decreta, enfim, o artigo 49 do mesmo Código:

1- Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do n.º 1 do artigo 41.º.
2 – O condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa em que foi condenado.
3 – Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de um a três anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Se os deveres ou as regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta.

Conjugando estes preceitos, determinou o Acórdão da Relação de Coimbra de 18.12.2019 [proferido no processo n.º 51/17.6T9CVL.C1, relatora Maria José Nogueira, texto integral aqui] que:

«Revestindo o prazo fixado no n.º 2 do artigo 489.º do CPP natureza peremptória, o pagamento fraccionado (em prestações) da multa, por constituir também uma forma de execução voluntária, deve ocorrer no mesmo limite temporal de 15 dias, sob pena de preclusão do direito consagrado naquele normativo.»

O aresto tem consciência de que o decidido não é unânime na jurisprudência e, por isso, convoca outras decisões em abono da que teve por conforme do Direito e, direi, à Justiça, e assim se exprime:

«Em suma, pese embora a questão não seja pacífica no seio da jurisprudência dos tribunais superiores, concluímos no sentido de revestir o prazo fixado para o pagamento voluntário da pena de multa no n.º 2 do artigo 489.º do CPP, natureza perentória, pelo que consubstanciando o seu pagamento fracionado (em prestações) uma forma de execução voluntária da multa criminal, não sendo o mesmo requerido no dito prazo – uma vez ultrapassado - resulta precludido o direito de mais tarde o exercer (cf. artigos 104.º do CPP e 139.º, n.º 3 do CPC).

«Semelhante orientação tem sido igualmente defendida em arestos proferidos por esta Relação, sendo disso exemplo os acórdãos de 03.07.2013 (proc. n.º 74/07.3TAMIR-A.C1) 18.09.2013 (proc. n.º 68/11.3GBLSA-A.C1), de 11.02.2015 (proc. n.º 12/12.1GECTB-A.C1), de 29.06.2016 (proc. n.º 158/14.1GATBU-A.C1).»

Equidade, questão de Direito?

A chegada de Paulo Ferreira da Cunha ao Supremo Tribunal de Justiça haveria de marcar novidade, e por isso polémica, quanto modo de decidir e sobretudo um refrescamento dos fundamentos eruditos das decisões, para o que contribui a génese filosófica do seu percurso. Avulta isso de um recente Acórdão proferido a 17.12.2019 [processo n.º 669/16.4T8BGC.S1, texto integral aqui, com um voto de vencido de Alexandre Reis, maioria formada com o voto de Maria Clara Sottomayor].

Em causa dois temas: a possibilidade de o Supremo Tribunal poder conhecer, em revista, o tema do quanto indemnizatório [matéria relativamente à qual se suscitou o voto de vencido] e a definição do critério de equidade como modo de aferição de danos não patrimoniais.

Pelo seu interesse e sobretudo pela argumentação expendida para a decisão, mormente no que se refere à configuração da questão da equidade como tema de Direito que não de facto [passível pois de conhecimento pelo Supremo Tribunal], permito-me citar:

«5.No seu Manual de Processo Civil, 2.ª ed., p. 378, Antunes Varela (que – deve referir-se – sempre desejou acautelar a unidade do sistema jurídico), depois de explicar que a equidade é a “justiça do caso concreto”, avança que o significado da expressão na lei é o da possibilidade, dada ao juiz, de se afastar claramente da norma aplicável, em certas circunstâncias.

O que para nós tem mais relevância, hic et nunc, é que o ilustre civilista sublinha o desvio da norma aplicável permitido ao juiz. Tal parece, assim, encontrar-se do lado das funções jurisdicionais especificamente de direito do julgador, e não meramente no domínio dos factos. Por razões de equidade não procede o juiz dando como apurados ou não estes ou aqueles factos, mas usando a norma de maneira menos convencional, no limite, com finalidade de justiça do caso concreto.

6.No mesmo sentido vão António Ferrer Correia e Vasco Lobo Xavier, na “Revista de Direito e Estudos Sociais”, vol. IV, p. 124 que, igualmente depois de definirem a equidade como a justiça do caso concreto, referem: “Ao julgar segundo a equidade dá-se ao caso a solução que parecer mais justa, atendendo unicamente à sua especificidade e prescindindo das normas gerais e abstractas eventualmente aplicáveis”.

7.Já Aristóteles debateu a questão da relação entre o équo e o justo, tendo chegado à conclusão que “o équo, sendo superior a uma certa justiça, é em si mesmo justo, e não é como pertencendo a um outro género diferente que ele é superior ao justo” (Ética a Nicómaco, V, 14 – 1137 b). Acrescentando: “Há assim realmente identidade entre o justo e o equitativo, e ambos são bons, embora o équo seja o melhor dos dois.” (Ibidem), dando mesmo célebre exemplo da Régua da Ilha de Lesbos, adaptável, pela sua ductilidade, aos objetos a medir (Ibidem). Para mais desenvolvimentos cf. Francesco D’Agostino, Epieikeia. Il tema dell’equità nell’antichità greca, e La tradizione dell’epieikeia nel medioevo latino, editados nos anos ’70 do séc. XX pela Giuffrè (e Paulo Ferreira da Cunha, L’Équité: Le legs realiste classique et la pensée de Michel Villey, “Notandum”, ano X, n.º 15, 2007, p. 5 ss..).

8.É globalmente este, com efeito, o significado prevalecente na doutrina e mesmo na vox populi. Esta última acaba por, sem os conhecer, sintonizar com máximas tais como: non omne quod licet honestum est (D. 50.17.144), semper in dubiis benigniora praeferenda (D. 50.17.56), et dubia sunt in meliore parte interpretanda (Summa Th. IIa, IIae, q. 60, art. 4).

9.Podem, porém, descortinar-se três funções para a equidade, e por essas funções ser-nos-á possível cunhar três tipos de equidade e três entendimentos a seu respeito:

1) “instrumento de individualização das normas”;

2) “fonte subsidiária de integração” das mesmas – e contudo, para alguns, como Maggiore e Recasens-Siches, ela seria uma espécie de “super-fonte”, “fonte universal do direito”.

3) “corretivo para as consequências injustas da norma jurídica” – esta última, aliás, muito próxima da posição de Cabral de Moncada ainda. (Cf. o erudito artigo de José Hermano Saraiva, “Equidade” in VELBC, vol. VII, cols. 731 ss.)

10.Como facilmente se retira desta enunciação, em nenhum caso se está no plano dos simples factos, mas sempre no plano do direito. Metodologia ou instrumentarium de recorte mais adequado de normas é direito, é prática de direito, de indagação e construção jurídica; fonte de direito, ainda que subsidiária, é igualmente questão de direito; e mesmo quando corretivo do direito não pode deixar de ser ainda direito – porque corretivo de um certo direito, de uma sua interpretação e não do direito que se tem por justo.

11.No mesmo sentido, vários autores, entre os quais Vives, aproximam a equidade do Direito Natural (que é – embora pouco na moda - Direito – embora haja quem o posso considerar filosofia ou moral ou mesmo política). O não recurso à equidade, nos casos em que ela é a solução aconselhável (como em casos mais singulares ou excecionais, mas não apenas), seria uma violação do Direito Natural segundo o Aquinate (Summa..., IIa IIae, q. 60, 5, 2).

12.Mesmo autores geral e fundamentalmente avessos à categoria, como parece haver sido o nosso Correia Teles (Discurso sobre a equidade, 1824), acabam por não prescindir inteiramente da mesma, e dentro do sistema: assim, a equidade “natural” remete para perspetivas jusnaturalistas (que são ainda jurídicas), e a equidade “hipotética” acaba por confundir-se com os princípios gerais do sistema jurídico. Estes últimos, como se sabe, têm uma interessante história, entre o art. 16 do Código de Seabra e o art. 10, n.º 3 do Código Civil em vigor, e ao nível internacional os princípios são reconhecidos pelo art. 38 do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, devendo, embora a concreta expressão constante dessa norma ser objeto de uma interpretação atualista (Cf. Paulo Ferreira da Cunha, Teoria Geral do Direito, Oeiras, A Causa das Regras, 2019, e Idem, Repensar o Direito Internacional, Almedina, 2019, p. 181 ss. V. ainda, por todos (e são muitos), o clássico Clapham, Andrew, Brierly’s Law of Nations, 7.ª ed., Oxford, Oxford Univ. Press, 2012, p. 63 ss..).

13.Insiste-se: uma identificação da equidade com o Direito Natural não a retira do âmbito jurídico; mas, mesmo que assim se pensasse (considerando o Direito Natural metajurídico, moral, etc.), sempre restaria a perspetiva da equidade como equivalente aos princípios jurídicos, e, nessa medida, plenamente jurídica (“Que todo o ordenamento jurídico é constituído por normas de tipos diferentes, expressas ou não (...) e que algumas dessas possuem (...) o estatuto ou valor de ‘princípios’ é coisa que os juristas sabem e teorizam desde sempre” – começa por afirmar Riccardo Guastino em prefácio ao tratado de Humberto Ávila, Teoria dos Princípios, 19.ª ed., São Paulo, Malheiros, 2019, p. 13).

14.Neste tipo de casos, importa precisar que tipo de equidade está em causa. Não é, verdadeiramente, corretivo da norma que implique consequências injustas; antes se encontra entre a fonte auxiliar de integração (ajudando à individualização, rectius, concretização da norma no caso como justiça do caso concreto).

15.Em nenhuma dessas modalidades ou funções parece ser apenas questão de facto, ou de facto não já transmutado em Direito. Para lembrar a metáfora do mítico rei Midas, aliás usada por Hans Kelsen na sua Reine Rechtslehre (trad. port. e prefácio de João Baptista Machado, Teoria Pura do Direito, 4.ª ed. port., Coimbra, Arménio Amado, 1976, p. 376) e mais remotamente o brocardo ex facto oritur ius. Mas, para além desse problema complexo, da mutabilidade do facto em direito, ou da origem factual do direito (e isso nos levaria para a falácia naturalística), sabemos que do que há que curar aqui é da cisão metodológico-processual entre facto e direito (a célebre Questão-de-facto / questão de direito da tese de António Castanheira Neves). Que tem consequências na decisão ou não da questão nesta sede.

16.Com muita agudeza de espírito alude ao problema a tese, bem mais recente, de Delphine Louis-Caporal, La Distinction du Fait et du Droit en Droit Judiciaire Privé, na Universidade de Montpellier, defendida em 2014. E afirma, logo no início da sua longa indagação:

“Por que o jurista se ocupou do direito, sabe distingui-lo do facto. Porque o direito se distingue do facto (...) ele ganha em importância e o jurista, conhecendo-o, firma-se numa legitimidade no campo social (...). Para se assegurar essa legitimidade, o jurista será tentado a limitar o seu estudo ao objeto ‘direito’, e excluindo dele o facto. A distinção entre o facto e o direito passa assim a ser garantia de cientificidade.” (p. 15).

17.E acabará por, pouco depois, se perguntar pelo fenómeno da juridificação dos próprios factos:

“Podemos legitimamente perguntar-nos se estes factos a que o direito determina um regime não entraram no domínio jurídico, se não se trata de factos qualificados, se não existe uma categoria jurídica ‘facto’” (p. 16).

O facto tende a aproximar-se do Direito, ou o Direito a absorver o facto.

18.E afinal, ainda que mal se pergunte, de que Direito se trata? O que temos por Direito, para este efeito, pelo menos? Não desejamos uma indagação teórica e erudita, mas encontrar noção operacional, que nos esclareça o problema em mãos.

O problema, quando se afirma a colocação da equidade do lado dos factos e não do Direito, não terá na sua base um quadro de identificação, ao menos tendencial do Direito com a lei? É que, evidentemente, a equidade não é, em si, direito “legal” – muito importante mas apenas uma das modalidades jurídicas, das formas de direito (v., v.g., Francisco Puy, Tópica Jurídica, Santiago de Compostela, Paredes, 1984, p. 269 ss..). É, porém, em geral, direito jurisprudencial (cfr. ibidem, p. 531 ss.). Ou seja, direito que pode ser feito pelos tribunais, e mesmo pelos juristas em geral, de acordo com parâmetros do sistema jurídico e de justiça, obviamente, e não subjetivamente, ou como “direito livre” (cf. Juan Vallet de Goytisolo, Metodología Juridica, Madrid, Civitas, 1988, p. 183). É o que se retiraria também já de Aristóteles, Ética a Nicómaco, livro V, quando afirma que o équo (ou equitativo) é justo, mas não no sentido de legal ou segundo a lei, mas (precisamente) enquanto uma forma de retificação da justiça legal. E especificamente se explica que há coisas que estão por natureza fora da previsão legal (que não pode ser nem totalizante nem totalitária): “Esta também é causa de que nem tudo se regule pela lei, porque sobre algumas coisas é impossível estabelecer uma lei”.

19.Ora, evidentemente, não pode haver lei que seja precisa e justa na consagração de critérios (nem um algoritmo, hoje em dia, certamente) capazes de resolver plenamente as questões indemnizatórias, como esta.

E não se esqueça que a equidade não é um super-conceito (Oberbegriff) espúreo, errático, ou sequer categoria de um para-direito, pré-direito, ou meta-direito. É antes um conceito rigorosa e cabalmente jurídico, que nem se pode dizer sequer apenas ou simplesmente “admitido” pela ordem jurídica, porque está mais que apenas isso: nela se encontra plenamente integrado, dela sendo plena parte constituinte. E mesmo parte do direito positivo e para que o “direito legal” ou “legislado” remete.

Não nos devemos deixar iludir pela formulação (em pano de fundo positivista legalista, naturalmente) um tanto defensiva do art. 4.º do Código Civil. Ao de-limitar os casos de aplicação da equidade legalmente admissíveis, desde logo no início desse corpus iuris, a lei deixa de fora qualquer dúvida sobre uma sua pretensa ajuridicidade ou qualidade de mero critério moral, etc.

E na questão que nos importa até a lei é clara e explícita, remetendo para danos não patrimoniais designadamente no n.º 1 do art. 496 do CC.

20.São multidão as definições, descrições e tópicas aproximativas das noção, conceito e ideia de Direito (e mesmo autores como Michel Villey e Francisco Puy, que da matéria têm uma visão panorâmica, renunciaram a um empreendimento desse tipo; dizia também o romanista Sebastião Cruz que definir é de-limitar, o que empobrece). Contudo, sempre nos serviremos, para deixar as ideias mais claras, do incontestado privatista francês François Gény, no seu clássico Science et Technique em droit prive positif (2.ª tir., Paris, Sirey, 1922). Note-se que não é um tratado de esotérica jusfilosofia, mas de uma obra que, logo no título, se quer científica e técnica e no domínio específico do Direito Privado positivo. Nada, pois, de mais diretamente adequado ao nosso problema.

Procurando uma aproximação ao Direito através do estudo de vários tipos de normas, acaba por encontrá-lo em normas sem dúvida com tendência a um constrangimento social (vol. I, p. 48), mas também considera que “as regras de Direito visam necessariamente, e, creio, exclusivamente, a realização da justiça” (vol. I, p. 49). E não estaremos a pensar em juízos equitativos e afins quando lemos esta passagem, além do mais de imensa atualidade (dados os rumos doutrinais nesse sentido):

“Em si, o Direito positivo é antes de mais, essencialmente, uma arte, se por tal entendermos todo o mecanismo de concretização dos preceitos vitais (leis adquiridas e crenças), em vista de um fim prático. Mas a arte (assim entendida), que não faz senão adaptar os meios aos seus fins, supõe estabelecidos os fins em si mesmos (...) De forma que, no seu conjunto, o Direito nos surge como uma arte fundada na ciência.”.

Arte boa e équa (jus est ars boni et aequi), já se dizia do Direito entre os Romanos.

21.Sem ser necessário entrar em doutrina estrangeira e nas subtilezas da expressão “equity” (cf. os nossos artigos “Equity” e “Equity law” na “Verbo. Edição do Século XXI”, Lisboa / São Paulo, vol. X, cols. 545 ss. e 547 ss.), sempre se recordará, de entre os mais modernos clássicos, um John Rawls considerando a “justiça como equidade” (justice as fairness – embora esta palavra possa também ser traduzida, por exemplo, por lisura – A Theory of Justice, ed. revista, Cambridge, Ms., Harvard Univ. Press, 1991, p. 3 ss. et passim) e, entre nós, a equidade como “momento da concreta realização do direito” (A. Castanheira Neves, Lições de Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, 1968-1969, p. 244) (cf. estes e outros passos na apologia da equidade – por exemplo citando Orlando de Carvalho – que constitui o artigo de Alexandre Libório Dias Pereira, «Ius est Ars Boni et Aequi»: Da Equidade e da Arte de Bem Interpretar toda a Regra Jurídica, in RJLB, Ano 1 (2015), nº 3, p. 86 ss., máx. p. 87).

22.Se a equidade é “momento da concreta realização do Direito” (Castanheira Neves, op. loc. cit.), ou “medida das medidas” (Orlando de Carvalho, Ius — Quod iustum?, BFDUC, LXXII, 1996, p. 10) não pode estar no simples plano da factualidade a ter em consideração, a interpretar (Théodore Ivainier, L'Interprétation des faits en Droit, Paris, LGDJ, 1988) ou a dar como provada. Está noutro plano, não do ser (sein), mas do dever-ser (sollen), ou no caminho para ele.

23.E, por outro lado, o que são factos? Comecemos pelo facto jurídico: Acontecimento que produz efeitos na ordem jurídica (Marcello Caetano), acontecimento ou evento que produz efeitos jurídicos (Castro Mendes), evento juridicamente relevante (João Baptista Machado), todo o evento ou mudança que provoca efeitos jurídicos (José de Oliveira Ascensão), indo este mais longe: “Toda a situação jurídica é mesmo por natureza um efeito de factos” (Direito Civil. Teoria Geral, vol. II, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 10).

Carlos Alberto da Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed. por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto), por exemplo, é dos que distinguem, com recorte certeiro, factos jurídicos (os “juridicamente relevantes”) e os “factos sociais ou naturais indiferentes ao direito, isto é, desprovidos de qualquer eficácia jurídica” (p. 355 ss).

24.De qualquer forma, sempre os factos são do domínio do fenómeno, e apesar de as suas motivações, se forem voluntários, poderem estar tingidas de sentido e consequências ético-jurídicas, não são facilmente confundíveis com o Direito na sua vertente judicatória. Os atos jurídicos e os negócios jurídicos têm, é certo, uma forte componente de ligação com o Direito que em alguns momentos os podem fazer considerarem-se juridicidade (e pense-se até, por exemplo, nos atos reais ou operações jurídicas – a que a lei liga certos efeitos jurídicos – v. ibidem, p. 358). Mas não são entidades da mesma natureza. O que os separa não é medida, não é grau, nem mesmo perspetiva, é mesmo uma radical e essencial diversidade ontológica. Factos são factos, Direito é Direito.

25.É verdade que a juridicidade, em sentido lato, pressupõe entidades como “norma, facto e valor” (tridimensionalidade sobretudo divulgada por Miguel Reale, Filosofia do Direito, 19.ª ed., São Paulo, Saraiva, 1999), e ainda texto (José Calvo González) e até justiça (Paulo Lopo Saraiva) (cf. o Paulo Ferreira da Cunha, Filosofia do Direito, 2019, p. 371 ss.). Simplesmente, há a distinguir de um lado o facto e o texto, que são elementos materiais, dos elementos propriamente normativo-axiológicos, como a norma (e o princípio, que é norma também; sendo inclusivamente norma a Constituição, mesmo a principiológica, como sublinhou, v.g., García de Enterria), e o valor. Ora a Equidade tem que ter em consideração factos (isso é essencial, é uma sua conditio sine qua non). Tem que se balizar no contexto das normas (donde alguma doutrina se preocupe em delimitar os casos em que a equidade pode legalmente agir), que são hoje em dia sempre escritas (plasmadas num texto), e reportar-se aos valores, e muito especialmente ao valor Justiça. Mas o dever ter em consideração os factos não faz da equidade facto ou conjunto de factos, em vez de Direito e aplicação de Direito.

26.A distinção entre questão-de-facto e questão-de-direito, sendo sem dúvida complexa, como sublinham Henke e Kuchinke, inter alia, e nessa linha é reconhecido por um Jauernig, contudo pode aquilatar-se com clareza muito nítida a partir do sucinto texto que ao tema dedicou no seu Direito Processual Civil (trad. port. de Silveira Ramos, Coimbra, Almedina, 2002, p. 386):

“Visto que a instância de revista realiza apenas em princípio um exame jurídico, é necessária a distinção de questões de facto de questões de direito. A delimitação é difícil (...). Às questões de direito pertencem o menosprezo da norma jurídica aplicável, dos elementos constitutivos abstratos, a subsunção à norma dos factos constatados (p. ex., a conceitos como a negligência, atentado aos bons costumes, culpa comum, motivo ponderoso, pertinência do vício, ofensa da boa fé, erro, dissensão, etc.). (...) Nas questões de facto tem de contar-se a determinação de um facto concreto, por ex., que a declaração foi expressa e qual o seu teor, e ainda a apreciação das provas, por ex., a credibilidade duma testemunha, a força probatória de uma carta como documento particular de informação. Também a interpretação duma declaração de vontade habitual é questão de facto. Contudo, é questão de direito se a interpretação infringe normas de interpretação (...), leis do raciocínio ou regras de experiência ou não observa disposições legais (...)”.

O conjunto de questões que a Equidade coloca parece, assim, muito mais pender para o conjunto das que são consideradas aqui explicitamente como de Direito que para o rol aqui avançado como sendo questões de facto. Parece haver, na verdade, uma até intuitiva homologia de problemas, um ar de família entre essas questões (vejam-se designadamente os conceitos como a negligência, atentado aos bons costumes, culpa comum, motivo ponderoso, pertinência do vício, ofensa da boa fé, erro, etc.) e a Equidade. O mesmo não ocorrendo com os problemas elencados como sendo “de facto”.

27.Assim, não pareceria haver dúvidas “de que lado estará” a Equidade. Como disse Placentino de Montpellier, a equidade é convenientia rerum, sim, é adequação à coisa (deve estar adequada aos factos...), mas não é a própria coisa, a coisa em si mesma, porque, como dizia Baldo, é antes “aquilo a que a razão natural persuade”. Há até uma alusão ou sabor retórico nesta fórmula.»

Chegado a este ponto e assente para o decidido que se trataria de matéria jurídica que integraria o âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal, restava alcançar critério de concretização do que em termos de equidade resultasse. E eis, para tal, o que flui deste excerto:

«32.Tudo ponderado, afigura-se-nos, salvo melhor opinião, que se trata essencialmente de um rigor classificatório que na prática não obsta ao vero conhecimento em sede de uma equidade prática e concreta. Porquanto “controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado” realmente, na grande maioria dos casos, desde que feito com espírito (animus) de Justiça que sempre deve animar o julgador, conseguirá obter resultados muito idênticos, se não até exatamente os mesmos, que o uso de uma equidade sem limites (que na verdade é uma componente da Justiça, como bem recorda António Braz Teixeira, Reflexão sobre a Justiça, in “Nomos. Revista Portuguesa de Filosofia do Direito e do Estado”, n.º 1, Janeiro-Junho 1986). Parte da Justiça que é, da equidade dificilmente se consegue prescindir, quando tenha pertinência para a concretização (precisamente concretização) dessa mesma Justiça. Sobre a ligação da Equidade e da Justiça, especificamente em sede de dano moral, v.g., Maria Francisca Carneiro, na sua obra Método de valuación del daño moral, Buenos Aires, Hammurabi, 2001, assim comenta o nosso sistema (tradução nossa): “na nossa opinião, no direito português do ((dano)) moral, o que mais chama a atenção, o particular e diferente do que predomina no Ocidente, é que a fixação do montante da indemnização se deve dar pela equidade (própria da natureza da justiça) e não pelo arbítrio (que é uma falácia arbitrária)” (p. 105).

33.E permita-se-nos assinalar que a consideração dos pressupostos normativos do recurso à equidade (que é óbvia baliza imposta pela ordem jurídica – desde logo na dimensão da legalidade) e os limites de proporcionalidade e igualdade que permitam atingir um valor razoável na indemnização, como é o que se discute, são critérios absolutamente pertinentes.

Ou seja, ainda que não se considere a equidade tout court e na sua máxima e livre extensão aplicativa uma matéria de direito, ao limitar a sua apreciação a questões de proporcionalidade e igualdade com vista à obtenção da razoabilidade no valor encontrado, não se fecha a porta à Justiça pela total limitação dessa sua válvula de segurança, e tal poderá certamente apreciar-se pela justeza dos julgados nessa ordem de ideias.

34.Cremos assim que o obstáculo por assim dizer epistemológico (porque de ordem conceitual) que se poderia colocar à consideração da equidade acaba por poder ser entendido, no limite, um problema de designação e (concedamos) de algumas cautelas (essas justificadas) para que não se caísse no que consideramos ser já negação da equidade, ou seja, juízos desvinculados e subjetivistas de “direito livre”. Não repugna, de modo algum, balizar a equidade nos termos e limites da proporcionalidade, da igualdade e da razoabilidade (parâmetros que também de forma alguma estão isentos de polissemia e possíveis derrapagens semânticas). E é o que faremos sempre que a ela nos referirmos. Também, por exemplo, a jurisprudência germânica quando desenvolve o seu labor no domínio da boa fé (cf., entre nós, Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1984) acaba por se abeirar, se não mesmo por adentrar-se no terreno da Equidade. Havendo, assim, um diálogo e por vezes mais ou menos subtil fungibilidade entre categorias, conceitos, institutos. O que, se torna difícil categorizações rígidas e didáticas, pode contribuir para o objetivo principal do trabalho jurisprudencial, que não pode deixar de ser a constante e perpétua vontade de justiça.

35.O desenvolvimento doutrinal e jurisprudencial (v., v.g., já Martim de Albuquerque, com a colaboração de Eduardo Vera Cruz, Da Igualdade. Introdução à Jurisprudência, Coimbra, Almedina, 1993; Acórdãos do Tribunal Constitucional 563/96, 319/00, 232/03 e 254/07) mais recente sobre aqueles três conceitos, que são princípios, e, pelo menos no caso da igualdade, valor, leva mesmo a ponderar que, pelo menos por vezes e em certo sentido, o uso do conceito, mais antigo (mas nem por isso muito mais elaborado), “equidade” acaba por ser deles “um outro nome”, uma forma de os sintetizar de uma forma prática e com pergaminhos históricos mais antigos e reconhecidos. (v., em geral, inter alia, José Sérgio da Silva Cristóvam, Colisões entre Princípios. Razoabilidade, Proporcionalidade e Argumentação Jurídica, Curitiba, Juruá, 2006; Willis Santiago Guerra Filho, Notas em torno ao Princípio da Proporcionalidade, in Perspectivas Constitucionais. Nos 20 anos da Constituição de 1976, ed. de Jorge Miranda, Coimbra, Coimbra Editora, 1996; Carolina Pereira Saéz, Una Contribución al estudio del empleo del Principio de Proporcionalidade en la jurisprudência reciente del Tribunal Constitucional Español, Separata do “Anuario da Facultade de Dereito da Universidade da Coruña”, 8, p. 1043 ss.) Embora também haja riscos interpretativo / aplicativos na convocação da igualdade, por exemplo (cf. Paulo Ferreira da Cunha Direito Constitucional Anotado, Lx., Quid Juris, 2008, p. 128 ss.). E já tenha havido quem lhe preferisse, até constitucionalmente, a equidade – mas decerto por daquela ter uma visão muito aritmética e estática e não geométrica e dinâmica.»

Comentários

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