Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




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Assembleia da República: últimas iniciativas legislativas



Segundo o portal da Assembleia da República, são estas as últimas iniciativas legislativas com reflexo na área jurídico-criminal e contraordenacional:

-» Projecto de Lei 832/XIII [PS]: Procede à 47.ª alteração ao Código Penal e regula as condições especiais para a prática de eutanásia não punível. Ver aqui

-» Projecto de Lei 837/XIII [PCP]: Abre um período extraordinário de entrega voluntária de armas de fogo não manifestadas ou registadas. Ver aqui

-» Projecto de Lei 838/XIII [PEV]: Define o regime e as condições em que a morte medicamente assistida não é punível. Ver aqui

-» Proposta de Lei 125/XIII [Governo]: Aprova as regras relativas ao tratamento de dados pessoais para efeitos de prevenção, deteção, investigação ou repressão de infrações penais ou de execução de sanções penais, transpondo a Diretiva (UE) n.º 2016/680. Ver aqui

-» Proposta de Lei 126/XIII [Governo]: Altera o regime jurídico aplicável ao tratamento de dados referentes ao sistema judicial. Ver aqui

Notícias ao Domingo!


Manda a honradez que diga: seja eutanásia, seja morte assistida, tudo quanto seja a vontade de uma pessoa sobre a sua própria sobrevivência ou a vontade de outros, subrogando-se à do próprio, encontra em mim um fundo reflexo de rejeição.
Poderia ser religiosa essa recusa, assim eu tivesse religião de que me reconhecesse fiel; ou ideológica, assim houvesse estrutura político a que pertencesse; ou filosófica, fosse membro de agrupamento com tal natureza. Não é. Trata-se da expressão existencial, diria, de uma reflexão pessoal e íntima. É um problema de mim comigo mesmo.
Não é, porém, resultado de individualismo; antes pelo contrário, exprimo o que verifico ser tanto da sociedade concreta em que estamos.
Primeiro, um princípio que não consigo ultrapassar: a nossa vida não nos pertence. O próprio verbo pertencer com a carga possessória que arrasta, é alheio e ofensivo àquilo de que estamos falando: o ser humano é insuceptível de apropriação, à liberdade junta-se, como sua essência, a dignidade que o impede.
Não tendo o amparo transcendental de um Ser que seja da vida origem e destino, julgo, no entanto, que, sem que tantas vezes tenhamos disso consciência, a nossa vida faz sentido para quantos nesta Terra nos tomam como amparo e referência, aqueles para quem somos arrimo, os outros que a nosso lado comungam da mesma luta pela sobrevivência e por ideais que tentem garantir um melhor mundo. Só quem não viveu a dor solitária e anónima de alguém a quem a ausência de outrem é vazio e desespero relegará este princípio para a categoria das secundárias circunstâncias da pieguice.
Segundo, vivemos a tragédia de um mundo em que no interior de tantas famílias se semeou a violência e a agressão, o egoísmo e a cupidez, famílias em que, na hora da herança a dividir-se, mostram os dentes da sua verdadeira natureza feroz, famílias para quem os velhos e os doentes são um fardo insuportável ou um tempo inútil até à abertura sucessória.
Mais: vivemos uma circunstância histórica em que a vivência doméstica se faz, para tantos milhares, em casulos raquíticos onde se acumulam, em sobreposição explosiva, a geração antecedente e a subsequente, em promiscuidade, sobrecarga de encargos, ante a penúria de meios, somando ressentimentos e alienações.
Como não pensar que, para esses amaldiçoados pela carência, o doente terminal não esteja para além dos limites da suportabilidade e uma janela que a lei abra possa surgir como uma forma, cruel que seja, dolorosa mesmo para a própria consciência, de libertação?
Não só nas famílias, porém. Temos hospitais sobrelotados de doentes e a urdir-se, uma lógica que campeia em certa doutrina administrativa em que se pondera, como vector da racionalidade gestionária do sistema, o custo doente/cama ocupada/expectativa de sobrevivência.
Como não temer que, nesta perspectiva mercantilista das coisas surja quem, em pura aritmética, sobrepese o encargo público dos casos perdidos e onerosos, face à possibilidade de alocar meios aos que, em selecção dos mais aptos, ainda possam ser convenientemente assistidos?
E não digam que há fantásticas famílias e notáveis profissionais de saúde, estóicos, dedicados, jogando amor e esforço para além de todos os limites e vencidas as exigíveis obrigações. Sei que sim, mas não é por esses que os demais deixam de existir. E, em verdade, sabemos que existem, uns e outros.
Enfim, há, seguramente, a dor, a doença que martiriza o corpo e rasga de comoção a sensibilidade de quantos a isso assistem. Convocar-se-ão aqui os argumentos dos bons sentimentos, a alegação de que uma morte moralmente higiénica gera a assepsia nos remorsos possíveis. E se medicamente legitimada, se desejada pelo próprio ou por alguém por si, se confirmada a vontade, o que haveria então a barrar o caminho a esse abreviar do fim, condenados que estamos, afinal, todos, a ir deste local transitório onde ganhámos forma humana pela vida que nos deram?
É este o ponto nevrálgico do problema. À moral sacrificial, em que se assume o destino, cruel que seja, até ao último alento, sucedeu hoje o hedonismo pelo qual, breve que é, e passageira, a vida é para ser gozada e, triunfo do reino da quantidade, quanto mais, melhor.
Como pedir aos que carregam já a sua carga de responsabilidade e de traumas que coexistam com mais este esforço derradeiro e garantam a uma vida a escoar-se a naturalidade de finar-se no momento em que tiver de ser, sem mão humana que corte do fio invisível o laço que a sustenta?
Chegado aos 67 anos já vi a morte nos olhos. Sobrevivo, tendo visto morrer. Por nada deste mundo desejaria ter de decidir. Chamaria a mim a dor terminal alheia para não ter que sofrer a dor de a suprimir, eliminando a vida dolorosa.
Sei que vem aí um projecto legislativo sobre a matéria pelo qual a morte voluntária passa a ser possível. Sei que quanto escrevi tem pouco de jurídico, no sentido esquálido e descarnado a que o positivismo reduziu o Direito. Tenta, porém, em apelo vindo das entranhas de mim, ser o que de humano o Direito tem de supor ou eu, sem isso, não o entendo.

O amor e a morte: os sentimentos e o Direito

Rui Januário e André Figueira escreveram um livro chamado "Eutanásia: direito a morrer ou dever de viver". Livro de juristas acabou por ostentar como ante-título "O Crime de Homicídio a Pedido". É um livro que tem como seu pressuposto uma tragédia íntima. O primeiro autor exprime um pensamento que formou primeiro como exerecício intelectual depois como experiência vivida quando seu pai entrou numa doença terminal contra a qual lutou até à desistência. Escrevi o texto de apresentação. Permito-me arquivá-lo aqui. Encontrei-me com um Direito, enfim, humano, e não com uma técnica burocratizada.

Este livro suscita um problema inesperado: o valor dos sentimentos no Direito. A questão surge a dois níveis diferenciados: como caso pessoal de um dos autores, como faceta imponente do tema que aqui se trata.
A obra inaugura-se como uma introdução intimista. O Dr. Rui Januário traz ao leitor a intrínseca humanidade de uma confissão sobre como o tópico lhe surgiu, primeiro como problema intelectual, como exercício da razão, depois como tragédia pessoal, como imposição da sensibilidade.
Raras vezes a epistemologia se vê confrontada com tal processo, o ser pensante a ter de testar na experiência vivida a consistência do seu pensamento.
Mas mais. Este livro é o produto da reformulação do pensado face ao experimentado. É um exercício de reconstrução.
É, por isso, uma obra de humildade, de relativização das ideias adquiridas, de recusa da absolutização dos valores, de negação do radicalismo das opiniões.
Para além do seu valor intrínseco, este livro coloca a grave problemática dos limites do racionalismo, é um solene aviso quanto aos perigos do intelectualismo.
Nele está presente uma reflexão existencial, pois que vivida sobre a existência.
Para as gerações que se formaram no Direito construído pelo positivismo, para o qual a ordem material das coisas é a aparência da sua ordenação lógica e a congruência, afinal, o sumo critério do sistema recto e por isso do código justo, isto é heresia.
Desvio, heterodoxia, será também para todos os outros para os quais o teste final da estrutura legal será o da sua eficácia como instrumento e meio da regulação social ou de dominação de classe, mas sempre, num igual registo, o pensável como única forma do cognoscível, o sustentável como único meio de legitimação, a prática o estupendo critério último do útil.
Eis, pois, neste contexto incerto, o real valor desta obra, a sinceridade.
O interessante do livro é ser uma excursão a um território jurídico de limites indefinidos.
Primeiro, pela confluência da eutanásia e do homicídio a pedido. A diferença é maior do que a semelhança entre estes dois conceitos: no segundo, bem pode supor-se a vontade de morte maior naquele que fenecerá do que no outro que lha trará, no fundo, um suicídio a pedido, no primeiro, bem pode suceder que o desejo de morrer não seja já compartilhado pelo que vai deixar de viver.
Além do mais, por serem múltiplas as possibilidades de materialização da eutanásia, sendo mais problemática a conduta omissiva, o live and let die, porque situada numa zona de fácil encobrimento, por bastar a não mobilização de meios de prolongamento artificial da vida ou de reanimação da mesma.
Por isso, tudo é relativo nestas paragens em que o direito a morrer se pode confundir com o direito a matar. E, sobretudo, tudo é evanescente.
O tema é o reverso da obstinação terapêutica em que a vida é mantida pertinazmente para além do tempo natural da própria vida; e, ironia trágica, o tema surge-nos de novo, em surpreendente aparição, neste mundo de espelhos enganadores, quando a suavização clínica da dor, gesto humanitário que toda a moralidade aplaude e o Direito cauciona, se alcança à custa de fármacos que, ao limite, trazem a inexorabilidade da morte.
Percorrendo assim as sombrias galerias ao longo das quais o Direito Penal expõe todos os casos em que a morte está presente, este livro leva-nos a surpreender a diversidade, a compreender as distinções, a aceitar a necessidade da diferenciação, a aprender, enfim, que julgar como indistinto o que é plural é a forma dos ignorantes serem injustos, o meio de a injustiça poder exercitar-se, recusando-se a compreender a diferença.
Como não apartar quem tira a vida alheia daquele que suprime a vida própria, aquele criminoso por haver vítima, este impune porque o crime foi, afinal, a própria punição, criminoso e carrasco num acto só?
Como não aceitar que a incapacidade de viver possa coexistir com a incapacidade de morrer, o não saber já como viver-se ser irmã siamesa do não saber ainda como morrer?
A tudo isto o Direito tem de dar reposta. Só que é uma resposta impossível em abstracção, inviável em generalidade. É que há zonas da vida em que o sombreado das situações é tal que o jurista legislador tem de ter o pudor de confessar-se incapaz de compreender as diferenças.
É nessa abstenção de regulamentação esgotante, nesse abdicar da tentação totalitária do tudo prever, regulamentando, nesse não intervencionismo normativo, que o Direito tem de encontrar-se com a sua finitude, fragmentário, limitado, provisório, parcial.
E, no entanto, razões pragmáticas exigem que haja normas, ao menos para aquele perfil de situações para as quais, ainda que a traço grosso, se exige uma definição essencial. É a vida quem o impõe ao trazer para a realidade o inescapável. Mas não existirão já essas normas ainda que gerais? Não haverá grave risco em escrevê-las agora em lógica de especialidade?
Note-se sobre o que se legislaria.
Por ler este livro pressente-se a medida em que o determinismo da vida pode estar condicionado pela vontade de viver, a ausência desta ser a agonia daquela, o homem senhor do seu destino, o triunfo da vontade a única garantia da subsistência do ser vivente. A fragilidade do humano é o ser tão ténue o fio vital que o anima. Um sopro de hesitação e é o abismo.
E depois, condições há em que a grandeza da sobrevivência é a miséria da sua precariedade, em que mais do que saber resistir estoicamente já só há, num sobejo de latência, o remanescer aquém da dignidade, inexpressivamente. O maior risco do homem é pensar se a vida vale a pena. O nascer da dúvida é um passo para a precipitação.
Além disso há os outros, aqueles para quem, mais do que não sermos indiferentes, somos parte da sua própria existência, quantas vezes seu fundamento, sua razão de ser. O maior perigo do humano é haver quem caia com a nossa queda. No dia seguinte a nós o mundo pode não ser o mesmo.
E no fundo, como nada disso faz sentido quando se atingiu por esgotamento o ponto terminal da existência, as funções vitais minimizadas, o ser vegetativo e a dor, essa experiência agónica que martiriza a carne a atormenta os nervos, a perseguir-nos, castigo sem redenção, maldade desnecessária a escarnecer de um fim que se eterniza.
É neste confluir de extremos que nasce, grave, o problema da vida, a questão da morte, a problemática do existir, a lógica deste livro.
Através dele descobre-se que o Direito Penal comum pode afinal oferecer, com mero recurso às categorias conceituais consignadas na parte geral do Código Penal, a saída para a impunidade da eutanásia activa. Profundamente desvalorizados pela lei penal, tais actos, encontrariam uma razão de exclusão da punibilidade, sobretudo quando médicos, mormente quando orientados a garantir uma morte digna, misericordiosa, a casos terminais, irreversíveis, nomeadamente quando em situações insuportavelmente dolorosas.
Usando uma imagem, trata-se de uma situação semelhante àquele que tendo veneno no armário se abstém de o usar.
A mão dessa abstenção, num país que não tenha para o caso outra lei que não seja a lei geral, terá de ser a mão judicial.
Neste plano, ao perigo da lei especial, cuja própria existência se pode configurar em perversão de efeitos como instigação pública ao acto, generalizando-o, através do acto sedutor da sua condicionada legitimação, sucede uma casuística de agraciamento do excepcional corpo de situações em que a justiça exija piedade para com a misericórdia de ter feito cessar uma vida que já só era um simulacro residual de vida.
Dir-se-á que é esta lógica conservadora, de dissuasão do acto pela não previsão do acto, que durante décadas levou à não admissão de excepções aos casos de aborto: é a ideia segundo a qual a primeira brecha que se abrir ao mandamento do não matarás fenderá a muralha protectora da vida de modo imperscrutável e sobretudo imprevisível. Talvez assim seja, e neste dubitativo esconde-se a insegurança quanto à perfeita homologia das situações.
Mas uma coisa é certa: há por vezes mais risco em entregar a questão a leis do que os problemas a juízes.
Estamos na recta final do que gostaríamos de trazer como apresentação a este livro.
Estivesse em causa uma jurisprudência sobre a eutanásia e já seria difícil, por se tratar então de encontrar o critério escapatório que legitimasse o perdão do acto em nome da nobreza do acto.
O problema surge quando estiver em causa uma legislação sobre a eutanásia. É que então, todo o mundo desumanizado da morte nas nossas sociedades irromperá, com todo o seu cortejo necrológico de horrores, agredindo o limiar doloroso das nossas consciências morais.
Ei-los então, os doentes terminais que saturam os já saturados hospitais e cuja manutenção em vida é um empecilho na engrenagem que conduz da enfermaria à morgue, esse corredor da morte em que cada um é um número, uma estatística, uma fita colorida atada ao pulso, aqueles cuja morte liberta a cama, economiza gastos clínicos, poupa energias de gestão, todos eles, à mercê.
Ei-los, os sem o abrigo de uma família, entregues ao desinteresse de um lar sem condições, à solidão de uma qualquer pensão mercenária, à miséria de um qualquer ermo de vagabundos, aqueles para quem o abafador de uma almofada, uma discreta sufocação bastam para, sem história, quase sem dor, lhes retirar o ténue sopro vital sem o qual ninguém dará conta de que já não existem, todos também, sujeitos.
Ai dos fracos, dos indefesos, caídos em estertor no campo de batalha dos saudáveis.
É por haver neste nosso desventurado mundo não pessoas, mas indivíduos, não comunidades, mas sociedade, que a eutanásia legal se torna num perigo público, as normas criminais possivelmente criminosas.
Falássemos nós daquela agonia horrível em que a morte é infligida, o coração destroçado, como uma forma última de amor, o autor do acto a chamar a si a dor, a mesma que quer poupar àquele a quem tira a vida, e estaríamos aí, nesse instante trágico, ante o humano na sua mais pungente condição, o tiro de misericórdia nesta guerra impiedosa pela qual toda a vida que se vai é uma outra vida que assim poderá nascer.
Só que, infelizmente, haver quem se sorria desta poética é sinal de que a preguiça, o egoísmo, a conveniência e o desinteresse bem podem ser as mãos que desligariam a máquina, selariam as narinas, injectariam o discreto soro além do qual todos ficam tranquilos e muitos aliviados. A eutanásia passaria então, a ser uma forma mercantilizada, disponível, possível em suma, de nos vermos livres dos que já estão a mais.
Terminei. Obrigado aos autores por terem escrito o livro. Sem ter pensado no que nele se diz, a minha alma teria ficado mais pobre, estiolada por normas, desfigurada por abstracções, iludida pela hipnose da generalização.