Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




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Regime e Oposição: a Ordem dos Advogados no epicentro da Revolução Nacional


Fez ontem 91 anos, a Ordem dos Advogados. Publico o texto de uma intervenção que, no âmbito do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas na Universidade Nova de Lisboa me foi permitido efectuar.


Surgiu a Ordem dos Advogados como «pessoa jurídica», sem mais qualificativos, em 1926, em plena Revolução Nacional; conheceu em 1933 o período em que passou a integrar a categoria jurídica de Sindicato único dos Advogados, elemento primário da organização corporativa. A sua plena integração nas estruturas do corporativismo nunca veio, porém, a alcançar-se, pois, pela sua protecção à sombra do Estatuto Judiciário, desde 1927, foi a ligação ao Ministério da Justiça que em 1944, dentro dos limites do viável, lhe salvaguardou a autonomia, enfim consagrada como lei em 1984.


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Fundada a 12 de Junho 1926 [i] , a Ordem dos Advogados surgiu duas semanas após a Revolução do 28 de Maio, dando corpo a um projecto que se atribuiu ao ministro da Justiça da República. António Abranches Ferrão [ii] , na sequência de vários outros projectos que provinham desde meados do século dezanove, um dos quais o de José da Veiga Beirão, levado ao Parlamento em 1887 [iii]. Durante oitenta anos se tentara, em vão, ir mais além do que a simples Associação dos Advogados de Lisboa, criada em 1838, sob determinação de D. Maria II, associação que, segundo lei fundadora da Ordem, ficou incumbida de convocar a assembleia geral que instalaria o novo corpo representativo da totalidade dos advogados portugueses.

Surgiu ao mesmo tempo que a Câmara dos Solicitadores, e curiosa e mesmo irónica é a razão pela qual se manteve a dicotomia destes dois organismos, entre os quais se repartia o mandato judicial.

Dando a palavra ao ministro Manuel Rodrigues Jr., [iv] ao qual se deve o diploma fundador:

«A repartição do mandato judicial não existe em vários países, nem parece absolutamente necessária; mas existe entre nós e é uma razão para que subsista, talvez a única».

Manuel Rodrigues, como ficaria conhecido [v] , havia sido nomeado ministro da Justiça e dos Cultos dias antes, a 3 de Junho. Invulgar pela inteligência, num só ano fizera todo o ensino liceal e alcançara o diploma do curso complementar de ciências jurídicas, em Coimbra, com a nota máxima de 20 valores. Doutorado, seria um dos da plêiade de Cabral de Moncada, Beleza dos Santos, Mário de Figueiredo, escol de altíssima craveira intelectual e todos com obra no campo da Justiça.

Em dois anos de ministério, pois cessaria funções a 11 de Abril de 1928, haveria de dar corpo a realizações de enorme vulto: reorganizara o Conselho Superior Judiciário, reformara o processo civil e o criminal, as regras atinentes ao funcionamento dos serviços de justiça, reorganizara o Arquivo de Identificação, regulando e tornando obrigatório o uso do bilhete de identidade. No mesmo dia em que é firmado o diploma da criação da Ordem dos Advogados foi nomeado José Albertos dos Reis, professor da Faculdade de Direito de Coimbra, para elaborar os projectos de alteração dos Códigos de Processo Civil e Comercial.

Quando em 1993 deu à estampa um pequeno opúsculo [vi] em cujas 95 páginas compila, em linguagem clara, o que fora parte da sua obra na Justiça, sublinha da mesma, menos a ideologia do que considerara ser a «Pátria regenerada» fruto da «gente nova, verdadeira intérprete da alma nacional», libertadora de uma Nação que estava «a saque», mas o que, no campo da eficácia, da organização, da pragmática lograra construir, visando a celeridade e segurança.

Cito [páginas 18 e 19] este trecho elucidativo: 

«Quando, em 1926 dispus que nenhum juiz podia tomar posse dos lugares para que fosse transferido ou promovido sem apresentar certidão comprovativa de haver proferido sentença nos processos conclusos, encontraram-se muitos pendentes há 40 ou 50 anos, e certo juiz ate um julgou um processo que tinha entrado no tribunal no dia em que fizera exame de instrução primária».

Regressaria ao Ministério em 1932 para um mandato que perduraria até a 28 de Agosto de 1940. Faleceria em 1946. Num comovido discurso de memória, proferido na terra natal do homenageado, a freguesia da Bemposta, concelho de Abrantes [vii] , o advogado António de Sousa Madeira Pinto, Vogal do Conselho Superior, em representação do Conselho Geral, sublinharia precisamente que, fundador da Ordem dos Advogados, Manuel Rodrigues vira ser a advocacia, sonho da juventude, breve episódio na sua vida, ele que deu vida à Ordem dos Advogados.

Integrara o que se chamaria o «grupo de Coimbra» - Fezas Vital, Mendes dos Remédios, Costa Leite (Lumbrales) e Oliveira Salazar – que os “espadas” do 28 de Maio chamaram ao poder, vitorioso o 28 de Maio e instaurada, assim, a Ditadura Nacional. Quando, incompatibilizados com a situação política e militar, Salazar e Mendes dos Remédios regressam a Coimbra, Manuel Rodrigues fica e prossegue a sua obra sob o Triunvirato de que faziam parte pelo Almirante José Mendes Cabeçadas, Jr., Óscar Fragoso Carmona e Gomes da Costa.

Eclético do ponto de vista político, chegando a granjear fama de socialista, como diria Marcelo Caetano, era um republicano conservador, alinhado com o ideário jurídico que em Itália encontrara expressão no pensamento de Alfredo Rocco, em despique de ideias e de ambição com Salazar, relativamente ao qual publicou no último dia do ano de 1938 um artigo irónico em O Século intitulado O Homem que Passou, pelo qual perpassava a ideia de que aquele se deveria retirar da política.

Cito, com a grafia original, este excerto, em que à prosa de fino estilo, se junta como se uma dorida mensagem:

«Cada homem que passa traz, na medida própria, o seu contributo ao mundo; enriquece-o com o esfôrço do seu braço e com a fulguração do seu cerebro e, quando o braço descai fatigado ou o cerebro já não fulgura, o seu contributo está prestado. Disse a sua mensagem e doravante a sua mensagem não sugestiona, perturba; a sua presença não anima, embaraça; e até a sua ternura não aquece, fatiga. E avanço mesmo em dizer que para êle próprio é um bem. Em um mundo em que tudo cansa também a vida cansa; mesmo quando se desenhou um alto ideal e êle se fez realidade, mesmo quando a fada que doba os fios da existencia os dobou sem os enredar.»

Um «sobrevivente nato», o apodou Filipe Ribeiro de Menezes, um dos mais recentes e conceituados biógrafos de Salazar [viii] .

O diploma, pelo qual deu vida à Ordem dos Advogados, tenta, como se diz no preâmbulo, uma arquitectura de compromisso entre o modelo liberal francês e o modelo italiano.

Quais eram eles, resume-o, muito oportunamente, Alberto Luís, em artigo publicado na Revista da Ordem dos Advogados [ix] .

Segundo o primeiro, o exercício da Advocacia pressupunha licenciatura em Direito por Universidade do Estado, e, apesar do carácter liberal da profissão, a mesma era governada por leis e regulamentos públicos, havendo lugar a um juramento que, entronizado em 1810 e sucessivamente abrogado e reposto, era no sentido de impedir os advogados de criticarem as leis e as autoridades públicas; enfim, caracterizava tal sistema a criação, alcançada em 1920, de uma Associação Nacional de Advogados.

Já o modelo italiano, decorrente de uma Lei de 25 de Março de 1926 assentava numa estruturação da advocacia que implica a sua funcionalização. Por um lado, impunha-se o elitismo decorrente de um estágio de cinco anos, seguidos de um exame de habilitação, e da existência de um quadro privativo de advogados a quem era permitido pleitear junto dos tribunais superiores; por outro, impôs um juramento de fidelidade aos superiores interesses da Nação, o que implicou a irradiação de mais de dois mil advogados, considerados refractários à ordem política vigente; enfim, a Lei Rocco 3 de Abril de 1926, uma das leis fascistíssimas, as ordens dos advogados e procuradores ficaram enquadrados como «sindicatos únicos».

Prevendo-se no mesmo que para a sua entrada em vigor haveria de cuidar-se da respectiva regulamentação, a conturbada evolução do tempo haveria, porém, de surpreender, pois ao invés do expectável, o que surgiu a 18 de Setembro foi um novo e extenso diploma que revogaria aquele que era suposto apenas regulamentar [x] e procederia, num extenso articulado de oitenta e oito artigos, à publicação de um novo estatuto da Ordem, a qual era, assim, refundada.

Qual a razão de uma tal opção legislativa perde-se na penumbra dos dias, pois que o novo diploma legal, que tornou o anterior mero «apontamento de trabalho» [xi] está desprovido de preâmbulo que lhe explique o sentido; e não cabe aqui proceder à comparação entre este novo diploma legal e o seu antecedente.

Fundador da Ordem dos Advogados, Manuel Rodrigues cuidou da sua subsistência em autonomia financeira, condição essencial da sua sobrevivência e assim atribuiu-lhe verba obtida com a procuradoria judicial e a remuneração das defesas oficiosas contadas em processos judiciais.

A 26 de Janeiro de 1927 [xii] eram 1720 o número de Advogados inscritos. O primeiro Bastonário foi Vicente Rodrigues Monteiro [xiii] . Fora durante a Monarquia Governador Civil de Lisboa, Presidente da Câmara dos Deputados, Advogado da Casa Real durante os últimos três reinados, e da Casa de Bragança.

Seguir-se-ia, entre 1930 e 1932, o mandato do Bastonário Fernando Martins de Carvalho, um republicano cujo partido abandonara para se filiar nas hostes de João Franco, pelo que, proclamada a República tivera de se exilar no Brasil onde se licenciaria no ano de 1911, só regressando a Portugal em 1915.

Eram então tempos de conservadorismo e de organização da Ordem e de convivência pacífica desta com o poder político.

Sucessivamente presente como sua parte integrante nos dois Estatuto Judiciários que se seguiram em 1927 e 1928, a Ordem dos Advogados encontraria, a partir de 1933, com a entronização do Estado Novo de formato corporativo o seu momento agónico, abrindo-se brecha quanto à questão da sua autonomia face ao novo figurino para a estruturação as entidades de Direito Público. Era então Bastonário, pois que iniciara o seu mandato a 21 de Março de 1933, José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães, deputado que fora à Constituinte de 1910, três vezes ministro da República democrática – Justiça, Negócios Estrangeiros e Instrução Pública – e directo colaborador de Afonso Costa.

O modelo político corporativo havia sido introduzido entre nós, como confluência de duas linhas de pensamento: pela positiva, a doutrina do Integralismo Lusitano – de António Sardinha, Hipólito Raposo, Alberto de Monsaraz, Pequito Rebelo e tantos – e a doutrina da Encíclica Pontifícia do Papa Leão XIII, a Rerum Novarum, acolhida que fora, precisamente em Coimbra, junto do Centro Académico de Democracia Cristã, fundado em 1901, cidade alfobre das mentes que, inspirados pelos princípios da Acção Católica, tornariam, no quadro tumultuoso do 28 de Maio de 1926, a Revolução Nacional no Estado Novo - Gonçalves Cerejeira, António de Oliveira Salazar, Francisco Veloso, Carneiro Mesquita, Diogo Pacheco de Amorim, Joaquim Dinis da Fonseca e José Nosolini - ; pela negativa, como reacção ao sindicalismo revolucionário que levaria Francisco Rolão Preto, um dissidente do Integralismo, à cadeia em 1934 e ao exílio, e em geral à jacobina e maçónica democracia demo-parlamentar, que orientara o regime republicano saído da Revolução de 1910.

Proferindo, a 13 de Março de 1935, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, a lição inaugural do Curso de Direito Corporativo, que por via do Decreto-Lei n.º 23 23 382, de 20 de Dezembro de 1933, havia sido introduzido no currículo universitário, em substituição do curso de economia social, Marcelo José das Neves Alves Caetano, lembrando aquelas fontes como sendo as da doutrina corporativa, [xiv] aditaria:

«Nalguns países o corporativismo recebe ainda influências da doutrina socialista, e aceita grande parte do pensamento soreliano. O sistema corporativo português, porém, parece-me apenas filho destas duas correntes: a nacionalista e a católico-social. Pode apenas admitir-se a acção das doutrinas do socialismo catedrático, muito favoravelmente acolhidas na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra pelo eminente Prof. Marnoco e Sousa» [xv] .

E, no seu característico estilo, formal e sistematizado, os princípios fundamentais do sistema corporativo [xvi] :


«1- A vida económica não segue uma direcção inelutável, depende da vontade humana.


«2- A actividade económica deve guiar-se por uma profunda preocupação moral.

«3- Não há duas classes sociais irredutivelmente opostas: mas um número indefinido de grupos económicos que devem operar em colaboração harmónica.

«4- A personalidade humana deve respeitar-se em toda a ordem política, económica e social.

«5- A actuação social do individuo deve desenvolver-se através do seu grupo económico.

«6- É às categorias juridicamente organizadas e dotadas de funções de autoridade pública, que o Estado deve deixar a resolução dos problemas da vida económica.

«7- A Nação é o quadro natural em que se organizam e movimentam as classes. O interesse nacional está acima de todos os interesses particulares.

«8- O Estado tem deveres a cumprir na vida económica e social. Incumbe-lhe orientar, dirigir e fiscalizar toda a actividade nacional.»


A estruturação da vida social e política portuguesa sob a égide do corporativismo deu-se por via legal. Não é de estranhar, vindo a ideia de um espírito para cuja compreensão o jurídico tem de ser convocado, como meio e como limite: António de Oliveira Salazar via no Direito forma natural de expressão das suas ideias sobre o Estado e, numa outra dimensão, limitação ao próprio Estado e com ele comungavam os que, com espírito legista, deram forma jurídica à substância política do regime. Daí que Portugal, sob a sua égide, e porque limitado pela Lei, não tenha sido um totalitarismo, o que acentuam aqueles que com isenção não toldada pela ideologia analisam o regime.

Publicado a 23 de Setembro de 1933, Decreto-Lei n.º 23 048, que aprovou o Estatuto do Trabalho Nacional, através dele se construíram três pilares fundamentais da nova ordem: primeiro, os indivíduos, a Nação e o Estado na ordem económica e social; segundo, a organização corporativa e, finalmente, a magistratura do trabalho.

Já a 11 de Abril de 1933 entrara em vigor uma Constituição, que definia no seu artigo 5º o Estado português como uma República unitária e corporativa e onde, ao enunciar o que denominou serem os «elementos políticos» considerou revestirem tal qualidade a família, as corporações e as autarquias, sendo que nas corporações morais e económicas «estarão organicamente representados todos os elementos da Nação» (artigos 17º e 18º), que ao Estado incumbia «reconhecer» (artigo 14º), havendo uma Câmara Corporativa, meramente consultiva, a funcionar junto da Assembleia Nacional (artigo 102º) [xvii] .

Interessante que num diploma, como o Estatuto do Trabalho Nacional, cuja sistemática é ele próprio a tradução de uma filosofia, a magistratura do trabalho tenha encontrado o seu lugar relevante, significativo, aliás, de novo se retoma a ideia do primado do Direito sobre a estruturação política tout court.

Num ritmo sequencial, sucessivos a este Estatuto, foi aprovado um conjunto de diplomas que complementaram a fisionomia do edifício cuja construção estava em causa:

O Decreto Lei n.º 23 049, sobre os Grémios, organismos corporativos das entidades patronais;

O Decreto-Lei n.º 23 050, sobre os sindicatos nacionais;

O Decreto Lei n.º 23 051, sobre as Casas do Povo;

O Decreto-Lei n.º 23 052, sobre a construção de casas económicas;

O Decreto Lei n.º 23 053, que cria o Subsecretariado das Corporações e Previdência Social e o Instituto Nacional do Trabalho e Previdência.

De todos eles seria este último aquele que marcaria a pedra de toque do sistema e o diferenciaria do corporativismo fascista italiano porquanto entre nós tratou-se de fazer entroncar o sistema na dependência de uma entidade administrativa com ligação directa ao Governo, no caso, o Sub-Secretariado das Corporações e Previdência Social, ocupado desde o seu início até 1936, pelo matemático Pedro Teotónio Pereira, o qual seria extinto em 1950 para dar origem ao Ministério das Corporações e Previdência Social, dando-se, assim, mais um passo na governamentalização global do sistema.

Nesse ano, a 23 de Março, e precisamente a propósito desta governamentalização, Marcelo Caetano, a convite do Gabinete de Estudos Corporativos do Centro Universitário de Lisboa, proferia na Sociedade de Geografia, fazendo eco a uma revolta mansa vinda do recôndito do seu espírito essencialmente conservador, daria o mote a dúvidas que seriam, afinal, críticas:

«Ora a verdade é que no fim de 17 anos de regime corporativo não temos corporações. Portugal é um Estado-corporativo em intenção: não de facto. O mais que se pode dizer é que temos um Estado de base sindical-corporativa ou de tendência corporativa, mas não um Estado corporativo» [xviii] .
E adiante:

«Dever-se-ia ter criado nessa altura o Ministério das Corporações? Salvo o devido respeito pelas opiniões em contrário, eu penso que num regime corporativo não há lugar para o Ministério das Corporações. Parece um paradoxo.» [xix]

E, em remate lógico do seu pensamento:

«E essas grandes corporações nacionais não devem ser direcções-gerais de um Ministério: o lugar do seu encontro umas com outras e de todas com os órgãos superiores do Estado é, por definição, a Câmara Corporativa. Aí devem poder formular os seus votos, aí devem poder tratar com o Governo; aí devem pronunciar-se, como consultoras, sobre as leis da Nação.» [xx]
De corporativismo de Estado se tratou, pois, governamentalizado logo desde a sua génese, orientado a abranger a representação nacional através da sua inserção profissional, complementarmente à representação nacional através de uma Câmara electiva, alcançada por sufrágio directo, a Assembleia Nacional, que era, ao lado do Chefe do Estado, do Governo e dos Tribunais, órgão de soberania.

Mostrando a solução de compromisso alcançada, escreveria Marcelo Caetano nas suas lições universitárias de Direito Constitucional [xxi] :

«O desfavor em que se achava a ideologia democrática não o impediu [ao legislador] de consagrar na Constituição alguns dos seus princípios fundamentais, equilibrando-os com as normas relativas aos órgãos do governo e às relações entre os respectivo poderes.»
Implementado o regime corporativo, assim a questão da Ordem dos Advogados – e afinal a das Ordens profissionais cujos membros exerciam em regime liberal a sua profissão – se colocava como um dilema: ou prevalecia o espaço de liberdade em que vinham situadas, e a independência da actuação profissional dos seus filiados, que não sendo patrões não seriam também trabalhadores, no sentido dicotómico em que o binómio capital/trabalho se delineava; ou, a integrá-las no sistema corporativo, as profissões respectivas teriam de inserir em um dos termos em presença: a opção fez-se no sentido de consagrar as Ordens, e, destarte também a dos Advogados como sindicato, no caso «sindicato único».

Explicando, assim resumiria o conceito em presença João Pinto da Costa Leite (Lumbrales), em livro [xxii] publicado precisamente nesse ano de 1936, a lógica da unicidade sindical tal como a via o regime deposto a 25 de Abril: «A constituição dos sindicatos é facultativa, mas em cada distrito o Estado só dá o seu reconhecimento – que confere ao sindicato o carácter de entidade de direito público – a um único, e só esse reconhecimento lhe dá direito de se intitular sindicato nacional»,

O Estatuto do Trabalho Nacional já previa no seu artigo 40º que, no quadro da organização corporativa, «a organização profissional abrange não só o domínio económico mas também o exercício das profissões livres e das artes, subordinando-se a sua acção neste caso a objectivos de perfeição moral e intelectual que concorram para elevar o nível espiritual da Nação».

E a lei que regulamentava a Câmara Corporativa – o Decreto n.º 24 683, de 27 de Novembro de 1934 previa também no seu artigo 4º, que pertencia à referida Câmara, por direito próprio, um representante do «Sindicato Nacional» dos Advogados, a Ordem dos Advogados.

Foi em parte na decorrência deste princípio que foi promulgado o Decreto-Lei n.º 24 904, de 10 de Janeiro de 1935, o qual expressamente situaria a Ordem dos Advogados no território da organização política da Nação.

Facto sintomático: no dia seguinte abriria em sessão solene a Assembleia Nacional, encerrada que tinha estado desde 1926. Presidiria à mesma José Alberto dos Reis, ele também professor da Faculdade de Direito de Coimbra no domínio do processo civil.

Efectivamente, de acordo com o Decreto-Lei n.º 23 050, de 23 de Setembro de 1933, as profissões livres organizar-se-iam em regime de sindicato único sob a designação específica de “Ordens”, que assim manteriam.

Ora no caso específico da Ordem dos Advogados, e pois que inserida nesta estrutura, entenderia o diploma em referência, o Decreto-Lei n.º 24 904, visando-a expressamente, que «constitui elemento primário da organização corporativa», e ficaria, pois, sujeita àquele diploma legal n.º 23 050 «salvo no que se encontra especialmente regulado quanto à sua organização interna e à sua função técnica e profissional», pois aí mantinha a sua dependência do Ministério da Justiça e apenas no que se refere à sua «acção social, disciplina do trabalho, salários, organismos de assistência e previdência e relação com os demais organismos corporativos» é que teria ligação de dependência ao Sub-Secretariado de Estado das Corporações e Previdência Social através do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência.

Era uma tentativa de disciplinar uma entidade cuja autonomia escapava à lógica política do sistema.

Mas não apenas de colocação do órgão representativo dos Advogados se tratava. Lendo outros preceitos do famigerado diploma legal, captava-se o seu sentido já repressivo, de polícia e de controlo pela política governamental. Assim, segundo o artigo 3º do diploma legal em causa, a Ordem dos Advogados:

-» Subordinaria os interesses da sua categoria aos interesses da economia nacional, em colaboração com o Estado e com os órgãos superiores da produção e do trabalho;

-» Exerce a sua acção exclusivamente no plano nacional e com respeito absoluto pelos superiores interesses da Nação, sendo-lhe por isso vedada a filiação em quaisquer organismos de carácter internacional ou a representação em congressos ou manifestações internacionais sem autorização do Governo e não pode também, sem a referida autorização, contribuir monetariamente para a manutenção de organismos estrangeiros, nem receber deles quaisquer donativos ou empréstimos.

E, em remate, tornando claro ao que se vinha, proclama o artigo 4º do Decreto: «A Ordem dos Advogados constitui factor de cooperação activa com todos os outros factores da actividade nacional e repudia simultaneamente a luta de classes e o predomínio das plutocracias».

Para além disso, e na lógica de se tratar de um Sindicato, a eleição dos seus corpos directivos ficava dependente, como condição de validade, de homologação por parte do Sub-Secretário de Estado das Corporações e da Previdência Social, ingerência insuportável e atentatória da autonomia da Ordem.

Logo se faria ouvir, pronta e firme, a posição da Ordem. Convocados, em reunião urgente e conjunta, os Conselhos Superior e Disciplinar, Geral e os Distritais de Lisboa, Porto e Coimbra para o dia 14 de Janeiro, quatro dias após a publicação do diploma, foi nessa magna assembleia resolvido [xxiii], sob proposta de Domingos Pinto Coelho :


«1º Considerar o Decreto-Lei n.º 24 904 absolutamente inaceitável.


«2º Encarregar o Conselho Geral de continuar as diligências junto do Ministério da Justiça no sentido de evitar o ingresso da Ordem no regime corporativo.»


Repudiado pela classe dos advogados, o novo figurino viria a ser suspenso uns dias depois pelo Decreto n.º 25 037 de 12 de Fevereiro até à publicação das disposições reguladoras dos Sindicatos Nacionais com a natureza de “Ordens”.

Curioso, o facto legislativo: colocada, enquanto sindicato único, sob a alçada do corporativismo, por Decreto-Lei, e assim sob a assinatura de Oliveira Salazar, a Ordem dos Advogados, libertar-se-ia de tal dependência, por mero Decreto, firmado apenas pelo ministro da Justiça, Manuel Rodrigues.

Retirada ao sistema corporativo, a Ordem encontraria o seu local de referência nas definições do Estatuto Judiciário, que a situavam na égide do Ministério da Justiça.

Fazendo o balanço histórico do momento, Adelino da Palma Carlos – que seria, aliás, entre 1954 e 1973 Procurador à Câmara Corporativa, na secção da Justiça – diria, referindo-se precisamente ao papel da Ordem, a propósito da memória do Bastonário Barbosa de Magalhães [xxiv] :

«Neste embate, a Ordem triunfou, porque a sua razão foi reconhecida; e há-de sê-lo sempre, enquanto se mantiver intransigentemente, mas exclusivamente, na defesa dos princípios que a estruturam e orientam.»

Assim se viveu até à total libertação da Ordem de qualquer tutela governamental.

Ao comemorar, a 25 de Março de 1988, os 150 anos da Associação dos Advogados de Lisboa, génese histórica da Ordem, Augusto Lopes Cardoso, Bastonário, diria [xxv] que «o uso no Estatuto Judiciário do termo “corporação”, reportada à Ordem, mantinha todo o seu valimento depois da repulsão do corporativismo e sem ter que recear confusão com este. (…) Pelo que vem exposto é-nos lícito concluir, sem a mais pequena reserva, que, ao tempo da revolução de 1974, jamais a Ordem dos Advogados poderia ser taxada de organismo corporativo ou, similiter, de organização fascista, que a fizesse incorrer, em dissolução automática, como houve quem ousasse pretender».

Em 1984, sob a égide do Bastonário José Manuel Coelho Ribeiro, foi aprovado o novo Estatuto da Ordem dos Advogados pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de Março, em cujo artigo 1º, n.º 2 se proclamava, enfim: «A Ordem dos Advogados é independente dos órgãos do Estado, sendo livre e autónoma nas suas regras.»




[i] Decreto n.º 11 715, de 12 de Julho de 1926.
[ii] António Abranches Ferrão, pai de Fernando Abranches Ferrão, foi ministro da Justiça de 7 de Dezembro de 1922 a 15 de Novembro de 1923.
[iii] Outros projectos são referidos pelo preâmbulo do diploma como o de Mesquita de Carvalho, de 1912 e Álvaro de Castro, de 1913.
[iv] Manuel Rodrigues, A Justiça no Estado Novo, Empresa Jurídica Editora, Lisboa, 1933, página 45.
[v] Beleza dos Santos,  O fundador da Ordem dos Advogados, Revista da Ordem dos Advogados, n.º 1, 4º trimestre, páginas 317 a 329. Paulo Dá Mesquita publicaria na colectânea Figuras do Judiciário, séculos XIX-XX, editado pela Almedina em 2014, o estudo Manuel Rodrigues Júnior e o perfil do processo penal português.
[vi] Citado A Justiça no Estado Novo.
[vii] Revista da Ordem dos Advogados, ano 18 (1958), áginas 357-360.
[viii] Salazar, D. Quixote, 2010.
[ix] Revista da Ordem dos Advogados, ano 60, volume 3 (Dezembro de 2 000), páginas 1473-1491.
[x] Decreto n.º 12 334, de 18 de Setembro de 1926.
[xi] A expressão, interessante, é de Alberto Luís.
[xii] O quadro está publicado no Diário do Governo, 2ª série, de 26 de Janeiro de 1927.
[xiii] A História da Ordem dos Advogados foi recentemente enriquecida com o início de publicação de dois volumes de uma obra intitulada Os Bastonários da Ordem dos Advogados Portugueses, o primeiro referente a 1926-1971 e o segundo a 1972-2004.
[xiv] Lições de Direito Corporativo, Lisboa, 1935, sem indicação de editor, página 12.
[xv] Marnoco e Sousa, Economia Nacional, 1909, páginas 150-154 e 168-172. Trata-se de algo que impropriamente se denominará de socialismo, doutrina assente na intervenção do Estado e na democracia e na equação entre a liberdade pessoal e a coesão e a solidariedade social.
[xvi] Ibidem, página 13,
[xvii] E que seria regulamentada pelo Decreto n.º 24 683, de 27 de Novembro de 1934.
[xviii] Posição actual do Corporativismo Português, Lisboa, 1950, sem indicação de editor, página 12.
[xix] Ibidem, página 13.
[xx] Ibidem, página 27.
[xxi] Manuel de Ciência Política e Direito Constitucional. Cito da 4ª edição, página 413.
[xxii] A Doutrina Corporativa em Portugal, Livraria Clássica Editora, 1936, página 128.
[xxiii] Alberto Sousa Lamy, A Ordem dos Advogados Portugueses – história, órgãos, funções, edição da Ordem dos Advogados, 1984, páginas 47-48.
[xxiv] Adelino da Palma Carlos, Elogio histórico do Dr. José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães, proferido a 26 de Novembro de 1959, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 20 (1960).
[xxv] Da Associação dos Advogados de Lisboa à Ordem dos Advogados: subsídios históricos e doutrinais para o estudo da natureza jurídica da Ordem dos Advogados, Revista da Ordem dos Advogados, ano 48, n.º 1 (Abri, 1988), áginas 329-363. No mesmo sentido da impossibilidade de considerar a Ordem dos Advogados como organismo corporativo, a alegação subscrita pelo Advogado Honorário José de Azeredo Perdigão, publicada na Revista da Ordem dos Advogados, ano 3º, ns.º 3-4, páginas 186-190.

Dia 31, 18:00: apresentação de livro

Honroso convite para proceder à apresentação dos dois primeiros volumes do livro Os Bastonários da Ordem dos Advogados Portugueses da autoria da investigadora Maria João Figueiroa Rego. Será na próxima quarta-feira, na sede da Ordem.

Dia 6: A Ordem dos Advogados no epicentro da Revolução Nacional


Permitam-me que a todos estenda o convite. Nascida sob a égide do Estado Novo, a Ordem dos Advogados soube assumir-se como espaço de liberdade. Nas contradições da política, ela é o exemplo.

António Pires de Lima: Bastonário


No momento em que retorno a este espaço sei da morte do Bastonário António Pires de Lima. Não posso omitir uma palavra de saudosa memória. Anos de advocacia, a ter iniciado estágio em Janeiro de 1974, levaram-me já Ângelo de Almeida Ribeiro, Mário Raposo, António Carlos Lima, José Manuel Coelho Ribeiro. Cada um uma referência: de António Pires de Lima, a frontalidade tenaz.


Ver aqui o elenco dos Bastonários.

Notícias ao Domingo!


-» Conselho Superior da Magistratura/Regulamento: foi publicado o Regulamento do Conselho Superior da Magistratura, revogando o que estava em vigor desde 1993. O texto pode ser lido aqui.

-» Blawgs/Vexata Quaestio: entre os blogs  jurídicos que surgiram [e a designação blawgs quadra bem à sua designação] e tantos foram, os que se finaram, e isso a imensos sucedeu, o Vexata Quaestio [ver aqui] mantém-se. Blog jurídico, de facto, presta um importante serviço público. Celebrou onze anos esta semana que agora finda. Muitos parabéns e longa vida!

-» Acórdão do TConst/defesa em fase de reenvio: o Acórdão do TC de 3 de Novembro de 2916 [relator João Pedro Caupers, texto integral aqui] estatuiu que não são julgadas inconstitucionais as normas conjugadas dos artigos 315.º e 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de não ser de conceder prazo de defesa ao arguido, para apresentação de contestação e rol de testemunhas, no âmbito da decisão de reenvio para novo julgamento por tribunal superior. Com efeito, o objeto do processo fixa-se em momento processual anterior ao da audiência de julgamento, com a dedução da acusação e/ou decisão de pronúncia, sendo evidente que a anulação do julgamento não importa qualquer modificação do objeto do processo, que se mantém essencialmente uno e idêntico em todas as fases do processo penal e sendo exatamente igual a matéria sobre a qual o arguido teve a possibilidade de se pronunciar e produzir prova e aquela sobre que recairá, por força da decisão de reenvio, o novo julgamento. Nestes termos, mantendo-se a instância estável, não pode o arguido, a pretexto da decisão anulatória do tribunal superior, pretender fazer o que não fez em tempo oportuno, contestar e arrolar testemunhas.

Sustentando a sua fundamentação, considerou o TC que: «impondo a Constituição que a causa penal seja objeto de apreciação e decisão judiciais no «mais curto prazo» (artigo 32.º, n.º 2), e não apenas «em prazo razoável», como exige para os demais processos judiciais (artigo 20.º, n.º 4) - sendo à luz desta particular exigência, e dos valores que a justificam, que se deve entender a estruturação faseada e progressiva do processo penal -, não se vê como sustentar, no plano constitucional, a reivindicação, por parte do recorrente, de um novo prazo de defesa, para apresentação de contestação e rol de testemunhas, quando já lhe foi reconhecido, no processo, o direito processual de contestar os factos imputados na acusação e carrear prova que demonstre a sua inocência, e há muito que decorreu o prazo legal previsto para o efeito.»

-» AC/efeito dos recursos: segundo se informa no site respectivo [ver aqui]: «O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, em acórdãos de 11 de outubro e 27 de outubro de 2016, que os recursos de decisão interlocutória da AdC não têm efeito suspensivo, mas sim efeito meramente devolutivo. A AdC vê agora confirmado o seu entendimento de que, sem prejuízo da normal sindicância de quaisquer atos da AdC, a Lei da Concorrência prevê expressamente que a investigação de uma determinada infração não fica prejudicada pela litigância que possa existir durante o procedimento, sob pena de paralisação das investigações em curso.»

OA/Estatuto em e-book: a Ordem dos Advogados Portugueses acaba de publicar o seu Estatuto em formato ebook. Pode aceder-se a ela aqui.

-» Leituras/Media, Corrupção Política e Justiça: coordenado por Inês Ferin Cunha e Estrela . São estudos sobre a relação entre os media e a justiça nomeadamente na cobertura por aqueles de processos relativos a processos de corrupção efectivados pelo Centro de Investigação Media e Jornalismo.
Análise casuística em grande parte dos trabalhos, a partir de determinados processos denominados "mediáticos" (António João Maia, Patrícia Contreiras e Èrica Anita Baptista, Brun Bernardo de Araújo e Helder Rocha Priro, Mafalda Lobo, Lorela Broucher), só algumas das análises se propõem uma avaliação global da questão (Estrela Serrano, do Centro de Investigação Media e Jornalismo e Bruno Paixão, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra). 
O universo em análise cobre o período de 2005/2012. 
Alguns dos trabalhos focam a problemática do segredo de justiça e da natureza diversa da investigação jornalística e da investigação criminal, bem como a problemática da admissão dos jornalistas como assistentes em processo penal.
A obra foi editada este ano pela "Mariposa Azul".

Imunidade dos Advogados


Fica aqui, em primeiro apontamento, o texto da intervenção ontem efectivada na conferência organizada pelo Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados. A minha gratidão pela oportunidade e a intenção de continuar o estudo do tema, melhorando este mero esboço.


A CRP e a Advocacia: primeiro, o facto sintomático: a Constituição da República Portuguesa, que dispõe no título dedicado aos tribunais um capítulo próprio para os juízes e outro para o Ministério Público, nenhum espaço sistemático reserva para os Advogados ou para a advocacia, o que só pode ser entendido como uma desconsideração no quadro do travejamento estruturante da Lei Fundamental destes profissionais e desta função de natureza, aliás, pública.
E, no entanto, trata-se de corpo normativo em que os legisladores não terão sido membros daquelas duas magistraturas, pois os advogados têm significativa expressão no hemiciclo parlamentar a ponto de se colocar reiteradamente a problemática da cumulação da profissão de Advogado com a da função política de deputado.
Apesar deste apoucamento normativo, é ali que encontramos o artigo 208º, segundo o qual «a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça.». E, eis, a baliza que enuncia o objecto do nosso tema.
Trata-se, pois, num primeiro encontro com o enunciado jurídico-constitucional, de uma situação duplamente limitada na sua formulação: está prevista, primeiro, sob reserva de lei e considerada, depois, como atinente às imunidades «necessárias». Nesta segunda vertente, diga-se, a fórmula usada lembra o texto da Constituição de 1933 quando previa que ao arguido se conferiam em processo penal, não «todas as garantias de defesa», como actualmente lautamente se promete na Constituição desde 1976, sim as «necessárias garantias», para que sobejo não houvesse no que à outorga de garantias respeita.

Conceito de imunidade: de que imunidade se trata esta que estamos considerando? Estaremos ante o mesmo conceito que surpreendemos no ordenamento jurídico quando este, em vários dos seus momentos, logo na Constituição, utiliza tal vocábulo? Creio que não.
Pacífico parece que a imunidade dos advogados não implica irresponsabilidade total pelos seus actos, a “inviolabilidade” do Advogado, como, por exemplo, o proclama, talvez também em excesso e por isso no vazio, mas afinal de modo aparente, a Constituição brasileira, ao ditar no seu artigo 133º que: «O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão nos limites da lei.»

[continua aqui]

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Fonte da imagem aqui

Mário Raposo: morreu um Senhor


Tenho estado ausente deste espaço, não distante, porém, das questões que lhe ditaram a existência. Vim aqui esta noite por ter sabido ontem à noite que faleceu o Bastonário Mário Raposo. E quero dar testemunho público de gratidão.
Mário Raposo salvou a existência da nossa Ordem no conturbado período dos anos do PREC, usando da diplomacia e do equilíbrio que caracterizavam o seu ser, para encontrar uma plataforma de equilíbrio que a pouparam aos que a consideravam uma excrescência do corporativismo que o sindicalismo haveria de suplantar e os advogados trabalhadores do colectivo do Direito.
Dignificou a classe devido ao modo como exerceu a sua profissão. Pensou o Direito que aplicou.
Conheci-o mais de perto quando, como ministro da Justiça trabalhei com ele na feitura dos diplomas complementares do Código de Processo Penal, a Lei do Júri, a Lei de autorização ao próprio Código, que redigi. Tivemos fins de tarde de conversa e de confidência.
A sua bonomia, a gentileza permanente, o sentido de serviço público, a defesa do conceito de liberdade, uma bondade inata tornaram-no mais do que uma figura de referência, um Amigo.
Morreu um Senhor. 
Sei que quis reserva e recato ante o facto.
Há umas semanas atrás tive o pressentimento de que não nos víamos há muito. Enviei-lhe um sentido abraço através de uma Colega. Era a saudade a alertar-me. Não soube ler o sinal.

Ética e Conduta


Tal como a Constituição da República que contém normas que são horizontes a atingir e outras que são meramente programáticas, todas a perder carácter injuntivo até pela sua indeterminação, é esta a ideia que resulta da proposta de Lei-Quadro que prevê as normas de referência que devem orientar os Códigos de Conduta e Ética - note-se o e  - no sector público, nisso incluindo as associações públicas, o que quer dizer a Ordem dos Advogados. Pode ler-se aqui. Nesta existe o Estatuto com normas de natureza deontológica. Na proposta, a ser lei, supõe-se que haja um corpo normativo a ser publicado em 180 dias após 90 contados da publicação, que é o prazo previsto de início de vigência.

Parecer da OA sobre o projecto do MJ de alteração ao CPP

 
Através de parecer com data de 20.12.11 a Ordem dos Advogados «considera desconformes com a Constituição e, por isso, inconstitucionais as alterações do projecto de proposta de lei que visam estabelecer:

- a possibilidade de o juiz, durante o inquérito, poder aplicar medida de coacção diversa, ainda que mais grave, quanto à sua natureza, medida ou modalidade de execução, da requerida pelo Ministério Público, com fundamento nas alíneas a) e c) do art. 204º, dado que esta alteração viola a estrutura acusatória do processo criminal consagrada no n.º 5 do art. 32º da Constituição e a norma do n.º 1 do art. 219º da mesma Constituição que atribui ao Ministério Público a competência para o exercício da acção penal;

- bem como a permissão de, em julgamento e para servir como elemento de prova, poder ser feita a leitura de anteriores declarações do arguido, ainda que o mesmo, no seu próprio julgamento, tenha exercido o direito ao silêncio, pois tal alteração viola a norma do n.º 1 do art. 32º da Constituição que determina que o processo criminal assegura ao arguido todas as garantias de defesa das quais faz parte o direito ao silêncio;

- e ainda porque tal permissão de leitura de anteriores declarações do arguido também viola a norma da alínea g) do n.º 3 do art. 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, adoptado pelas Nações Unidas, em 16 de Dezembro de 1966, e que entrou em vigor para Portugal, em 15 de Setembro de 1978, a qual estabelece que "Qualquer pessoa acusada de uma infracção penal terá direito, em plena igualdade, à garantia de não ser forçada a testemunhar contra si própria ou a confessar-se culpada.".

Por último, considera-se que, na alteração preconizada, pelo projecto de proposta de lei, para a nova alínea b) do n.º 1 do art. 64º do CPP, também deverá consagrar-se a obrigatoriedade de assistência do defensor, nos interrogatórios feitos, por órgão de polícia criminal, o que, a não ser feito, se torna incompreensível, dado que, logo no n.º 1 da exposição de motivos do projecto de proposta de lei, se proclama que um dos objectivos das alterações que se propõe realizar é o da " garantia dos direitos de defesa do arguido"». 
 
[o texto vem na íntegra aqui sem menção ao órgão da Ordem que emitiu o parecer, o que tentámos através da pesquisa aqui, aqui e aqui].

A faena continua...

Escrevi isto em 17 de Junho de 2003. Encontrei-o hoje e dei comigo a pensar em touradas...

O tema não é fácil e permitam-me que vos diga que o sinto com especial acuidade.
Há catorze anos, regressado de uma efémera passagem pelo Governo de Macau, reabria banca de advogado. Nessa altura lançaram-se as televisões privadas e com elas uma apetência especial pelos casos judiciais que, até ali, pouco interesse despertavam à comunicação social.
Surgiram então jornais com o timbre de fazerem de cada denúncia uma «manchete» e da evolução de cada processo penal um interminável folhetim. Advogado limitado à área penal, senti em torno dos casos que defendia, o aperto da curiosidade pública e dos jornalistas.
O modo como alguns desses processos se desenvolviam terá, em alguns casos, acicatado a curiosidade jornalística a seu propósito. A tudo isto se juntou a sistemática verificação de fugas de informação, claramente oriundas em violações do segredo de justiça.
Perante este admirável mundo novo, poucos de nós sabíamos como agir.
Perguntei na altura a responsáveis da Ordem se devia, como advogado, limitar a minha defesa ao «papel selado» e consentir que os clientes fossem esfrangalhados na imprensa, chegando a tribunal em chaga viva, degradados que chegue para uma condenação, ou se devia ir à luta na própria imprensa onde se travava o combate, falando pelos que não tinham voz. Nunca obtive orientação clara.
Perguntei-me a mim mesmo como reagir face a essa multidão de violações do segredo de justiça, impunes, porque nunca havia prova da autoria e, porque, não sendo crime que legitimasse a constituição como assistente, todo o arquivamento era inimpugnável. Foram tempos difíceis.
Não sendo melhor do que os outros, terei feito também as minhas asneiras. Olhando para algumas atitudes que todos tomámos na altura de ingénuo colaboracionismo, seguramente que hoje o não faríamos.
Mas aprendi depressa. 

[continua aqui]

Apoio judiciário: a pergunta por fazer...

A questão resume-se nisto: havia uma Portaria segundo a qual o que os Advogados lançassem, como serviços e despesas, no sistema informático da Ordem dos Advogados, só seria validado desde que confirmado por funcionário de Justiça. Só que essa Portaria foi revogada e substituída por uma outra segundo a qual esse controlo deixou de existir.
Alguém se pergunta quem, durante o Governo anterior, a revogou e com o acordo de quem, eliminando assim o sistema de controlo?  E porquê?
É mais fácil e sobretudo mais saboroso para o escândalo discutir se afinal a auditoria aos efeitos foi encerrada dentro do prazo previsto e se não houve colaboração da Ordem na confirmação dos números dos prevaricadores [ver aqui] ou se estamos ante uma campanha da ministra da Justiça contra o Bastonário [ver aqui]. Fácil, saboroso e branqueador. No meio, os milhares de advogados honrados que têm ficado prejudicados pelos atrasos nos pagamentos e agora todos enlameados ante a opinião pública como se fossem um bando de vigaristas...
E, no entanto, como já foi noticiado «está em causa a portaria n. 10/2008 de3de Janeiro, a qual, no n.° 3 do artigo 28.°, previa que o pagamento seria sempre confirmado pelas secretarias dos tribunais, ou pelo Ministério Público (MP) e pelos órgãos de polícia criminal (OPC). Este diploma, assinado pelo então secretário de Estado João Tiago Silveira, entrou em vigor a 3 de Janeiro de 2008. Em termos de fiscalização nada alterava até porque, antes de os pagamentos serem assegurados pelo Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estruturas da Justiça (IGFIJ), a responsabilidade era das secretarias dos tribunais. Mas, segundo explicou a ministra, a 28 de Fevereiro, ou seja, dois meses depois da publicação, aquela portaria é revogada por uma outra – pela portaria 210/2008 de 29 de Fevereiro, assinada pelo mesmo governante quealtera o n.° 3 do artigo 28.°. No novo diploma, desaparece a parte referente à obrigatoriedade de confirmação por parte das secretarias dos tribunais, ou do MP e OPC, passando a constar: "O pagamento é sempre efectuado por via electrónica, tendo em conta a informação remetida pela OA ao IGFIJ.” ».

Congresso da Ordem dos Advogados: a minha ausência

Está a decorrer o Congresso dos Advogados. Depois de um exercício de consciência não me inscrevi e não compareci.
O meu contributo para a Ordem dos Advogados encerrou quando terminei o mandato de Presidente do Conselho Superior.
O órgão a que presidi, a última instância jurisdicional da Ordem, surgiu então em nome de um princípio, o da sua separação absoluta face ao Executivo da mesma. Separação logo originária, pois a candidatura foi em lista própria, sem alinhamentos ou apoios mútuos relativamente à lista do que concorresse a Bastonário. Recolhemos uma amplíssima votação. Mas o princípio não vingou. O meu sucessor já não o seguiu, os eleitores não o quiseram. Talvez eu tivesse sido mau soldado do estandarte pelo qual combati. 
Não iria, por isso, ao Congresso pugnar por aquilo que tentei fosse exemplo, que os tribunais nada tenham a ver com o Governo, no Estado ou na Ordem dos Advogados. Outros, a quem essa moral cale fundo, que o façam. Não sou dos que tentam o triunfo pela desforra.
Além disso, não tenho ambições a liderança, nem ao exercício do poder. Regressei, por isso, ao meu lugar de simples Advogado, irmanando-me aos que vivem a luta diária pelo Direito. A insígnia de Presidente do Conselho Superior, a qual tem sido tradição conservar-se e que com orgulho conservava ao peito, entreguei-a a quem me sucedeu. Nem isso guardo como memória do que fui.
Além disso, o Bastonário eleito, quando da campanha eleitoral, escreveu um livro, em que me dedica um capítulo, no qual me considera «uma página de ignomínia na História da Ordem dos Advogados». Foi reeleito, referendado. De tudo tirei daí, no plano público, a lição que me cabia recolher. A honra, essa, ficou intacta, porque é o meu único património moral, intangível.
Poderia ir ao Congresso para tirar desforço de tudo isso, para encontrar palco de justificação, concitar apoios, defender-me, acusar o que vejo estar a suceder. Não o fiz. 
Na medida do que puder contribuirei para prestigiar a profissão nos locais onde essa oportunidade surge, o dia a dia dos tribunais. 
A minha toga está rota mas não está manchada.
Espero que os colegas me compreendam. No concreto exercício da função terei falhado em muita coisa, não consegui vencer a adversidade em que se trabalhou, estou grato a quem me ajudou e partilhou as dificuldades, mas guardo a consciência intacta.
Como se sabe, não sou dos que têm  medo de dizer o que pensam. Mas não nesta matéria. Àqueles que a História derrota cabe não perderem a esperança. Mesmo vilipendiados, nunca humilhados. 
Orgulho-me da minha profissão. Os cargos e o mando são um acidente na vida. Ninguém esgota o que é naquilo que faz.

Contra a Justiça dos ricos, a Advocacia para ricos

A frase pertence a Fred Allen: «Fiz tão bem o meu curso de Direito que, no dia que me formei, processei a Faculdade, ganhei a causa e recuperei todas as mensalidades que havia pago». A propósito, a Tabela de Emolumentos que vigorará na Ordem dos Advogados vem publicada aqui
É a "Deliberação do Conselho Geral aprovada em sessão plenária de 21 de Outubro de 2011 que altera e republica a tabela de emolumentos e preços devidos pela emissão de documentos e prática de actos no âmbito dos serviços da Ordem dos Advogados". Entre os custos o quanto custa o estágio.