Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




PGR, Directiva 4/2020: a controversa hierarquia


É este o teor integral da Directiva n.º 4/2020 da Procuradora-Geral da República que tem suscitado polémica pública no que se refere ao exercício de poderes hierárquicos em processo penal, a qual se articula com o teor da Directiva 5/2014 [ver aqui] e revoga a Directiva 1/2020 [ver aqui]. A  áspera reacção do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público pode ler-se aqui.




Diretiva n.º 4/2020


O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia caraterizada pela sua vinculação a critérios de legalidade e objetividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados do Ministério Público às diretivas, ordens e instruções previstas no seu Estatuto (artigos 219.º da Constituição da República Portuguesa e 3.º do Estatuto do Ministério Público (EMP), aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 29 de agosto).

Estruturando-se o Ministério Público, constitucional e estatutariamente, como uma magistratura hierarquizada, os magistrados que a integram são responsáveis e hierarquicamente subordinados, respondendo, nos termos da lei, pelo cumprimento dos seus deveres e pela observância das diretivas, ordens e instruções que receberem.

A autonomia e a hierarquia do Ministério Público, de natureza funcional, a par com a responsabilidade dos seus magistrados, constituem garantia constitucional da promoção da igualdade de todos os cidadãos perante a lei e, simultaneamente, da unidade, eficiência e celeridade da sua atuação.

Decorre do quadro constitucional, legal e estatuário que o exercício dos poderes hierárquicos assenta em intervenção de natureza diretiva delimitada no seu âmbito e conteúdo pelo Estatuto do Ministério Público e pelas leis do processo.

A clarificação da intervenção hierárquica em processo penal que decorre do novo Estatuto do Ministério Público mantém inalterado o quadro constitucional, legal e estatutário vigente do exercício dos poderes de direção pelo magistrado do Ministério Público hierarca, destacando dois planos distintos do exercício do poder de direção que, em todo o caso, não conflituam nem se anulam, antes se intersetam.

Por um lado, o exercício dos poderes de intervenção processual penal legalmente previstos implica a prática de atos processuais que produzem efeitos intraprocessuais relevantes, não podendo ser objeto de recusa as decisões proferidas por via hierárquica nos termos da lei de processo [artigo 100.º, n.º 6, alínea a) do EMP].

Por outro, o exercício de poderes de direção, inelutavelmente sujeito a limites legal e estatutariamente consagrados que refletem a concordância prática entre a autonomia interna dos magistrados e o exercício daqueles poderes.

A autonomia interna dos magistrados do Ministério Público pressupõe tanto a vinculação aos critérios de objetividade e de legalidade, como a sujeição às diretivas, ordens e instruções dos superiores hierárquicos, balanceada pela salvaguarda da sua consciência jurídica, também esta condição essencial do exercício de funções e, consequentemente, da administração da justiça.

Numa tal conformação destaca-se, por um lado, o poder de os magistrados solicitarem ao superior hierárquico que a ordem ou instrução sejam emitidas por escrito, e o dever de o hierarca emitir a ordem por aquela forma quando se destine a produzir efeitos em processo determinado. Por outro lado, evidencia-se o exercício do dever de recusa de cumprimento de ordens ilegais e o poder de recusa com fundamento em grave violação da consciência jurídica do destinatário da resolução superior.

A emissão de um ato com eficácia diretiva e de aplicação direta a um determinado caso concreto não consubstancia a prática de ato de natureza processual em sentido próprio, tal como sustentado pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (cf. Pareceres n.os 33/2019 e 9/2020).

O ato processual consequente, praticado em obediência àquela ordem, configura um ato processual em sentido próprio porque produzido na prossecução do exercício da ação penal e com a devida consagração legal expressa nas leis adjetivas. Nesse sentido, tal despacho deve conter, na respetiva fundamentação, referência inequívoca à decisão hierárquica que o conforma.

O exercício dos poderes hierárquicos de supervisão e direção é sempre reduzido a escrito (n.º 1 do artigo 100.º do EMP), imposição legal que visa o controlo interno, desde logo pelo magistrado que recebe a ordem, como também o controlo externo, desde logo pelos sujeitos processuais.

Daí que, perante suspeita de ilegalidade do ato do hierarca - onde se incluem causas de incompetência ou de impedimento para a sua prática - terão os sujeitos processuais legítimo interesse em conhecer a ordem ou instrução que determinou a prática do ato processual pelo magistrado subordinado.

Como corolário dos princípios da legalidade e da transparência, bem como do direito a um processo justo e equitativo, toda a atuação funcional do Ministério Público no processo penal é suscetível de ser conhecida e sindicada por quem é parte legítima nos termos das normas legais de acesso aos processos.

As crescentes exigências do exercício da função e o princípio de unidade que carateriza esta magistratura hierarquizada vêm, tendencialmente, afastando a delimitação da autonomia interna na perspetiva de uma intervenção processual isolada.

Antes demonstram que o cumprimento dos instrumentos hierárquicos e a articulação próxima com o imediato hierarca são práticas que contribuem para o fortalecimento, a uniformidade e a elevada competência da sua atuação funcional de que a boa administração da justiça é credora.

Com o presente instrumento pretende-se uniformizar procedimentos no âmbito do exercício de poderes hierárquicos em processo penal e, pela sua especial relação com aquele exercício, introduzem-se orientações relativas ao exercício hierárquico do poder diretivo de avocação do inquérito. Por outro lado, clarifica-se o regime atinente às comunicações hierárquicas de determinadas realidades factuais objeto de investigação.

Serão pois enunciados princípios orientadores dos magistrados do Ministério Público no âmbito das relações hierárquicas, desde logo quanto ao cumprimento das regras estabelecidas nos instrumentos hierárquicos vigentes, e de, na avaliação que efetuem, em caso de dúvida, se articularem com o imediato superior hierárquico, atuação própria e salutar de uma magistratura una e hierarquizada.

Impõe-se, igualmente, enunciar princípios orientadores relativamente ao exercício dos poderes de direção que produzam efeitos em concretos processos e que não se traduzam em atos processuais em sentido próprio, de modo a garantir a transparência da sua emissão e a reação estatutariamente prevista do magistrado subordinado, enquanto garantia da sua autonomia.

Nestes termos, ao abrigo do disposto no n.os 1 e 2, do artigo 11.º e na alínea b), do n.º 2, do artigo 19.º do Estatuto do Ministério Público, com fundamento nas considerações assinaladas, e cuja interpretação deve ser sustentada e observada por todos os magistrados do Ministério Público, determino o seguinte:

I - Exercício de poderes hierárquicos de direção

1 - No exercício dos poderes hierárquicos de direção, o imediato superior hierárquico emana ordens e instruções conformadoras da atuação dos seus subordinados, nos termos estabelecidos na Diretiva n.º 5/2014/PGR, de 19 de novembro.

2 - As ordens e instruções que se destinem a produzir efeitos num determinado processo, e que não constituam atos processuais em sentido próprio, são sempre reduzidas a escrito e registadas pelo hierarca que as emana em dossiê de preparação e acompanhamento, já instaurado ou a instaurar.

3 - O dossiê a que se refere o ponto anterior é transmitido ao magistrado a quem as ordens ou instruções são dirigidas.

4 - O dossiê de preparação e acompanhamento deverá ser sinalizado na capa física e eletrónica do processo em que a ordem ou instrução se destina a produzir efeitos.

5 - As ordens e instruções a que se refere o ponto 2 são sempre comunicadas ao imediato superior hierárquico do magistrado que as emanou.

6 - Quando, em obediência a ordem ou instrução a que se refere o ponto 2, cumprir o determinado pelo seu imediato superior hierárquico, o magistrado titular deve, na decisão a proferir no processo, fazer expressa menção de que atua por dever de obediência hierárquica, identificar, sinteticamente e com ponderação dos critérios estabelecidos para o acesso por sujeitos processuais, o conteúdo da ordem ou instrução recebida e indicar a identidade e a qualidade do hierarca que a emitiu.

7 - A menção, nos autos, da ordem ou instrução emanada é da competência exclusiva do magistrado que dela foi destinatário.

II - Recusa de cumprimento

1 - A declaração de recusa de ordens ou instruções que se destinem a produzir efeitos em concreto processo, e que não constituam atos processuais em sentido próprio praticados no âmbito de intervenções hierárquicas previstas na lei do processo, deve ser:

1.1 - Sempre reduzida a escrito e registada no dossiê de preparação e acompanhamento referido em I.2 e I.3;

1.2 - Devidamente fundamentada, com indicação da concreta causa da recusa e dos motivos, de facto e de direito, que a fundamentam;

1.3 - Comunicada simultaneamente ao magistrado que emitiu a ordem ou instrução e ao seu imediato superior hierárquico.

III - Acesso às ordens e instruções

1 - As ordens e instruções a que se refere o ponto I.2., e a posição que sobre a mesma for assumida pelo magistrado destinatário, podem ser consultadas por quem assuma a qualidade de sujeito ou interveniente processual no processo onde a mesma produziu efeitos, quando se verifiquem os seguintes pressupostos, de natureza cumulativa:

a) Seja titular de interesse legítimo para o efeito;

b) O seu conhecimento não prejudique os interesses da investigação, em particular nas situações em que o inquérito se encontre sujeito a segredo de justiça, e enquanto essas circunstâncias se verificarem;

c) A consulta não seja suscetível de ofender direitos fundamentais de outros sujeitos ou intervenientes processuais.

2 - Para salvaguarda dos interesses a que se referem as alíneas b) e c) deverá, em todo o caso, ser ponderado o acesso a parte da decisão em causa.

3 - É competente para decidir o pedido de acesso o hierarca que emanou a ordem ou instrução.

4 - Para efeitos da decisão a que se refere o ponto anterior, o magistrado titular do inquérito:

a) Elabora informação sobre a verificação dos pressupostos para o acesso e pronuncia-se quanto ao mérito do pedido;

b) Remete, pelo meio mais expedito, o dossiê de preparação e acompanhamento ao hierarca que emanou a ordem ou instrução, dele devendo constar a informação elaborada e, se necessário, outros elementos que habilitem à decisão.

5 - Da recusa de acesso cabe reapreciação hierárquica para o magistrado hierarquicamente superior.

IV - Impedimentos

O imediato superior hierárquico que, em momento anterior, tenha emanado ordem ou instrução hierárquica que não constitua ato processual em sentido próprio, deve, em caso de intervenção hierárquica nominada no mesmo inquérito (v.g. ao abrigo do artigo 278.º e do n.º 2 do artigo 279.º do Código de Processo Penal), ponderar a declaração do seu impedimento ou pedido de escusa, nos termos estabelecidos no Código de Processo Penal (v.g. quando a ordem ou instrução emitida tenha sido determinante para a conformação do resultado final do inquérito).

V - Comunicações hierárquicas

1 - Nos processos que tenham, ou se preveja que venham a ter, repercussão pública, decorrente, designadamente, da excecional complexidade e gravidade dos crimes e das suas consequências, da particular sensibilidade que revistam em razão da relevância dos interesses envolvidos, da qualidade dos sujeitos e intervenientes processuais (v.g. pessoas particularmente expostas) e da especial vulnerabilidade das vítimas, são objeto de comunicação obrigatória ao imediato superior hierárquico:

a) A instauração do inquérito;

b) Os atos processuais relevantes que tenham, ou se preveja venham a ter, especial repercussão pública;

c) As decisões finais proferidas em inquérito e as decisões finais proferidas nas fases subsequentes do processo.

2 - As comunicações a que se refere o ponto anterior, bem como as efetuadas em observância de diretivas, instruções e ordens previamente emanadas pelas estruturas hierárquicas competentes, ao abrigo dos respetivos poderes legais e estatuários de hierarquia, devem ser registadas e acompanhadas em dossiê, a instaurar ou já instaurado, da titularidade do magistrado hierarca.

VI - Avocação de inquéritos

1 - Os Procuradores-Gerais Regionais, de acordo com as caraterísticas das respetivas Comarcas e Departamentos de Investigação e Ação Penal, ponderarão a emissão de orientações que definam regras de avocação de inquéritos, em conformidade com regras legais estabelecidas no Estatuto do Ministério Público.

2 - Sem prejuízo de outros critérios que se considerem relevantes, designadamente relativos a específicas tipologias criminais ou a exigências de intervenção uniforme, e salvaguardada a avaliação que em concreto seja efetuada sobre a inadequação ou a desnecessidade de avocação, deverão ser ponderadas orientações dirigidas à avocação de inquéritos que correspondam aos critérios estabelecidos no ponto V.1.

VII - Disposições finais

1 - As regras ora adotadas não prejudicam os procedimentos e orientações constantes de outras determinações da Procuradoria-Geral da República antes formuladas e ainda vigentes, com elas devendo, se disso for caso, ser conjugadas, designadamente as determinações constantes das Circulares da PGR n.os 11/1995, 12/1999, 6/2002, 3/2011 e 5/2012.

2 - Revoga-se a Diretiva 1/2020/PGR, de 4 de fevereiro, e todos os instrumentos hierárquicos emitidos por qualquer órgão ou estrutura hierárquica do Ministério Público, de natureza vinculativa ou não, nos segmentos que contrariem ou conflituem com as determinações constantes da presente diretiva.

12 de novembro de 2020. - A Procuradora-Geral da República, Lucília Gago.

Forum Penal: em torno do TCIC, a 25!

 


Regresso e com notícias. O tema é actual e o Forum Penal decidiu trazê-lo à ribalta. A inscrição é livre, o evento terá lugar, já no próximo dia 25, on line na plataforma Teams. A matéria promete polémica: "Em torno do Tribunal Central de Instrução Criminal". 

Quem quiser pode inscrever-se  aqui


Presto!

 


O ano de 2020 está a aproximar-se do fim e eis que surge a 27 de Agosto uma lei, a Lei n.º 55/2020, de 27 de Agosto, a fixar as prioridades para a política criminal no biénio 2020/2022 [está aqui].

Como exprimir prioridades, a valer isso o que seja, implica não só proclamações políticas, mas definições regulamentares e alocação de meios e nada disso vai ser viável em termos de valer a sério para o corrente ano, então o dito biénio [que a serem os números verdadeiros seria um triénio] vai começar em 2021 e esgotar-se em 2022. A lei entra em vigor a 1 de Setembro.

Passo ao lado do que seja prioritário, pois é um catálogo que se alcança pela leitura, valha o que valha na prática o que ali se prevê. 

Anoto, sim, esta regra de preponderância do Ministério Público sobre o poder judicial, característica dos tempos que nos são dados viver [artigo 6º, n.º 5]: « Salvo se o juiz, fundamentadamente, entender o contrário, à atribuição de caráter prioritário na fase de inquérito [pelo MP] deve corresponder precedência na determinação de data para a realização de atos de instrução, de debate instrutório, de audiência de julgamento e na tramitação e decisão nos tribunais superiores, sem prejuízo da prioridade a conferir aos processos considerados urgentes pela lei.»

Os princípios e a falta deles

A comunicação social relata o que diz ter-se passado nos processos criminais como se estivesse lá e os processos criminais fundam-se no que vem publicado na comunicação social. É uma realidade circular, auto-sustentada e que, por isso, defende mutuamente esta relação.

As autoridades inspectivas, reguladoras e disciplinares tomam o que a comunicação social diz estar a passar-se nos processos criminais para inaugurarem procedimentos e, ao limite, tomarem medidas. O círculo dos comprometidos aumenta, a danosidade dos efeitos progride. 

Os visados, receosos amiúde de que seja prejudicial virem discutir na comunicação social o que se passa nos processos criminais em que são intervenientes, esclarecendo, desmentindo, rebatendo, permitem, como o seu silêncio, que fique para a opinião pública aquilo que a comunicação social quer que seja tido como a realidade, aquilo que os processos criminais  permitem que seja assim conhecido.

A tudo isto soma ter-se criado uma lógica perversa, a de ninguém acreditar no que possam dizer e fazerem fé no que a comunicação social afirma estar nos processos.

Claro que a lei tem a boca cheia de sacrossantos princípios como o segredo de justiça, o dever de reserva e o sigilo profissional, e, esquecia-me, a presunção de inocência. São conceitos que se tornaram ridículos, submersos pela velhacaria de um sistema, baseado numa hipocrisia. 

Tenho mantido como regra de vida que o que se passa nos processos é nos processos que se discute. É uma moral decrépita, talvez, mas é a minha. Mas o mundo hoje tornou-se todo outro. Os princípios conservadores tornaram-se fúteis, pois ao atrevimento triunfante é permitida a vitória.

No final, temos as absolvições de pessoas cujas vidas foram entretanto destruídas. A comunicação social rarissimamente as relata e quando o faz é, com frequência, para lançar suspeita sobre a justiça da decisão. 

Nessa altura, a da suspeita sobre o decidido, aqueles que nos processos conviveram com o vazamento para os media do que nos processos supostamente se passava, mesmo quando sofrem o achincalho de verem posta em causa a honorabilidade das suas decisões, ficam inertes. 

No meio deste mundo de faz de conta, há os que fazem estrelato a comentarem os processos dos outros, processos que não conhecem salvo pelo que vem na comunicação social. É uma passerelle de exibicionismos a ajudar a tornar credível o que tanta vezes é aparente.

No final, a justiça tornou-se na degradação cívica dos cidadãos, a pendência do processo a pena infligida. 

Estamos num momento histórico em que ninguém quer saber. Há sempre quem ache que a falta de princípios lhe pode ser útil, para além dos que fazem comércio precisamente da sua ausência.

Estamos a um passo de um certo dia os que se têm calado acharem que é demais. E virem para a praça pública fazer como veem fazer. Nesse dia, os processos passarão a ser em directo através de debates televisivos, cada um a argumentar com a sua parte da verdade. Como nos jogos de futebol, o desafio rude e os comentários ferozes e, em casa, todos serão  juízes de bancada.

Quando for assim, é porque onde não há dever de reserva, não tem de haver segredo profissional, onde a presunção de inocência se tornou uma inutilidade processual, será defendida, com as próprias mãos, no espaço público. O resultado será grotesco de se ver e trágico de se sentir.

O populismo reinante e sua filosofia revanchista e demagógica, sentirá que essa é a sua oportunidade. A anarquia começa com a deslegitimação, prossegue com a relativização de todos os valores. Como se escreveu nas paredes adjacentes ao extinto Tribunal da Boa Hora, como se prenunciando esse advento: «a sentença é uma opinião». E nisso se tornará.

Não sei se deseje estar cá nesse dia. Formei-me a acreditar nas instituições e a respeitá-las, mesmo quando elas não se dão ao respeito. Cansa, porém.

Ministério Público: pecar e absolver-se do pecado

O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25.05.2020 [proferido no processo n.º 95/19.3JAPRT-C.G relator Paulo Serafim, texto integral aqui] trouxe-me a memória de uma das derrotas que lamento ter sofrido enquanto jurista: não por ter sido eu a perder, sim por continuar a achar que foi a Justiça quem perdeu. O relato que no aresto se faz do tema, por citação à anotação efectuada no Código de Processo Penal Anotado por Simas Santos e Leal Henriques é fiel, e por isso permito-me citá-lo:

«Assim, M. Simas Santos e M. Leal Henriques, in "Código de Processo Penal Anotado", I Volume, 2ª edição, 2004, Rei do Livros, pág. 596, referem que, na Comissão Revisora da primitiva versão do Código, durante a apreciação do artigo 118º, «o Dr. J. A. Barreiros propôs que se lhe aditasse um n.º 4, onde se impusesse que as nulidades e irregularidades fossem declaradas pelo juiz, sem prejuízo da prévia revogação do acto e sanação dos seus efeitos pela entidade que o tivesse praticado.
Face a tal proposta, o Procurador-Geral da República considerou ser dever e faculdade do M.º P.º declarar essa nulidade na fase do inquérito, sem necessidade de intervenção do juiz, mal se compreendendo que o M.º P.º, numa óptica de defesa dos direitos fundamentais do arguido, não pudesse pôr fim a qualquer nulidade.
Na mesma linha se posicionou Figueiredo Dias, acrescentando que se tratava aqui não de uma declaração formal de nulidade, mas de uma revogação, uma sanação, sendo errado sustentar-se que ao reconhecer essa faculdade ao M.º P.º, ficaria o arguido impedido de apresentar a sua defesa, uma vez que o Código prevê altura própria para a arguição de nulidades (al. c) do n.º 3 do art.º 120.º).
Em resultado deste entendimento e da sugestão do Procurador-Geral da República para que, a fim de se evitarem confusões, se eliminasse a menção ao juiz feita no art.º 122.º, n.º 3, o mesmo Prof. Figueiredo Dias adiantou que no caso do art.º 122.º n.º 3 há uma formalização na declaração da nulidade, ao passo que no inquérito apenas existe o acto de pôr cobro aos efeitos de uma nulidade processual no cumprimento de um dever próprio do M.º P.º, mas sem materialização em qualquer acto formal de declaração de nulidade (auto-correcção).
E termina afirmando que a formalização durante o inquérito da declaração de nulidade de um acto descaracterizaria o sistema do Código, possibilitando uma fase de recurso, sendo certo que no inquérito se reclama e não se arguem nulidades, arguição que só ocorre depois do inquérito e perante o juiz.»».

A questão configurou-se-me suficientemente clara na altura e por isso ma bati pela solução que ali está expressa. Isto com uma rectificação relevante: é que o debate não ocorreu na Comissão que redigiu a versão inicial do Código de Processo Penal, sim a Comissão que em 1995 ensaiou a sua formulação. Porque na primeira, ficou claro que a competência para declarar nulidades cabe ao juiz e tão só ao juiz. Para isso basta ler o n.º 3 do artigo 122º do diploma.
Por isso, quando na Comissão ulterior, que igualmente integrei, ante prévias arremetidas do Ministério Público no sentido de que lhe caberia também competência para decidir temas de nulidade em sede de inquérito, propus que o assunto ficasse resolvido em sede da norma clarificadora, tive de enfrentar dois argumentos expressos pelo Presidente da Comissão, o Professor Figueiredo Dias: primeiro, de que, estava clara a competência judicial ; segundo o que que a comissão revisora não tinha como função redigir clarificações.

Guardo na memória o argumento que o sucinto da impropriamente citada acta não reflecte: no dia em que foi permitido ao Ministério declarar a nulidade dos seus actos [e concomitantemente o poder de se negar a declará-la], o que significa sem recurso, estamos a dinamitar o regime de garantias processuais que o Código de Processo Penal visou consagrar. E foi isso mesmo que foi decidido e ficou: sem atrevimento de mudar a letra do Código, abriu-se a porta a que a jurisprudência se encarregasse de consagrar o que não estava consagrado.

Vencido mas não convencido, ficou consagrada a tese que é, afinal, a do apagamento do poder judicial, o que legitima a conclusão legal do acórdão citado:

«I - Durante o inquérito, o Ministério Público e o juiz de instrução têm ambos competência para declarar um ato processual inexistente, nulo ou irregular ou uma prova proibida. Todavia, esta competência concorrente é balizada em função da estrutura acusatória do processo penal, que se estriba na separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas e que se desenvolve mesmo na fase de inquérito.
«II – Em conformidade, durante o inquérito, o juiz de instrução só pode conhecer da ilegalidade de atos da sua competência e o magistrado do Ministério Público só pode conhecer da invalidade de atos da sua competência, ou seja, de atos processuais por si presididos ou delegados a órgão de polícia criminal.
«III - Cabendo ao Ministério Público, enquanto dominus do inquérito, a competência para apreciar da validade da apreensão de objetos levada a cabo por órgão de polícia criminal, impunha-se que fosse a digna magistrada do MP a quem foi dirigido o requerimento da arguida a alegar a irregularidade do despacho por ela proferido a validar a apreensão realizada, a decidir, também por despacho (cf. art. 97º, nº4, do CPP), sobre o mérito de tal arguição, e não, como sucedeu, o Mmo. juiz de instrução, que não dispunha para tanto de competência legal atribuída.»

Claro que a fundar a teoria em causa, é citado o princípio do acusatório como legitimador da solução, como se a solução oposta à vitoriosa, na essência a que sugeri, desse fundamento a uma intromissão judicial num âmbito que tem de ser privativo do Ministério Público. É claro que quem isto defende esquece duas circunstâncias: primeira, a de que se trata não de um juiz a controlar ou a dirigir o inquérito, usurpando a competência do Ministério Público, sim de um juiz a garantir que o inquérito cumpre a legalidade e as nulidades sejam declaradas com possibilidade de impugnação; segundo que, ao limite, a tese em causa daria fundamento a que houvesse quase nenhum juiz no inquérito e o Ministério Público, enquanto "dono" do mesmo, tivesse o poder para, em regime auto-centrado, praticar a totalidade dos actos, pois já tem o direito a pecar e o poder de se auto-absolver do pecado.




A sala de espera

Há seguramente mais formas para exprimir temas que são os do Direito, pois são os do Ser Humano do qual ele provém e a quem se destina, de todos mais ainda os do Direito Criminal, e por isso, por ventura a inaugurar aqui uma nova linguagem, este modo de dizer. Veja quem quiser ver o que conseguir sentir. 
O quadro é de George Tooker [1920-2011], chama-se The Waiting Room, foi pintado em 1959 [está no Smithsonian American Art Museum].

Direito Penal e Liberdade

De algum modo recomeçam amanhã os tribunais e os prazos, mas sem verdadeiramente recomeçarem, salvo os prazos para alguns. É que faltando os meios falha a possibilidade e por isso o recomeço tornou-se simbólico.
Claro que houve os que nunca pararam e aqueles que entraram em férias antes de voltarem a ter férias. 
Nisso o mundo é formado pela soma lógica daquilo que cada um quer ser. Dar o exemplo foi conceito que mostrou o seu valor relativo.
Comprei livros, entretanto e tentei ler, somando os livros com leitura iniciada: um deles o de José de Faria Costa, a que chamou Direito Penal e Liberdade. Saído este ano, pela Âncora Editora. Inaugura-se com ele uma coluna editorial, a ius et philosophia. Aguardam-se, com expectativa, as próximas iniciativas.
O livro compendia escritos que o autor foi divulgando por outros espaços, com dois textos novos, um sobre o «espaço livre de Direito» e outro a «Pensar (n)a Europa». Os demais são: Entre Hermes e Creonte: um novo olhar sobre a liberdade de imprensa [antes publicado na Revista de Legislação e de Jurisprudência, em 2006],  Poder e Direito Penal (atribulações em torno da liberdade e da segurança] [publicado em 2006 na Reflexões (revista científica da Universidade Lusófona do Porto) e republicado na Revista de Legislação e de Jurisprudência (2007], Crítica à tipificação do crime de enriquecimento ilícito [publicado na mesma Revista de Legislação e de Jurisprudência, em 2012], A Europa e a narrativa penal [publicado nos Studia Iuridica, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, 2012], Causality and Reasoning [publicado no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2012], Prelúdios e variações sobre o Direito Penal [publicado em 2013 no Livro de Homenagem ao Prof. Peter Hünerfled], Sobre o objecto de protecção do Direito Penal: o lugar do bem jurídico em uma Teoria Integral do Direito Penal Liberal [publicado na Revista de Legislação e de Jurisprudência, 2013], O Princípio da Igualdade, O Direito Penal e a Constituição [publicado na Revista de Legislação e de Jurisprudência, 2012].

A arte de legislar

Para nós que vivemos e sofremos a legislação que há e continua a haver, as constantes rectificações a mostrarem precipitação, a ambiguidade dos conceitos a abrirem a porta ao arbítrio, o sistemático recurso a normas remissivas, a fomentarem a indeterminação, o sistema de revogação sem republicação, para não falar na opacidade das previsões, é interessante saber que há um guia de legística, elaborado pela Assembleia da República, e já em segunda edição. Está aqui.
Direi o melhor possível da boa intenção da iniciativa que levou a produzi-lo e pensarei o pior possível quanto à expectativa de que o livro seja lido e, sobretudo, seguido.
Num país em que não basta tirar um Curso de Direito para compreender o que está nas leis, quanto mais o modo como são aplicadas, precisamos de legística, sim, mas sobretudo de legisladores.

Branqueamento de capitais: com atraso, outra Directiva


A proposta de lei n.º 16/XIV pelo qual se «transpõe a Diretiva (UE) 2018/843, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 2018, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo e a Diretiva (UE) 2018/1673 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2018, relativa ao combate ao branqueamento de capitais através do direito penal», entrou no Parlamento a 6 de Março, baixou à primeira Comissão a 11 de Março e foi discutida no Plenário a 21 de Maio, tendo baixado à Comissão de Orçamento e Finanças.

O texto pode ser encontrado aqui. Teve pareceres da Ordem dos Advogados [aqui], do Conselho Superior da Magistratura [aqui], da Ordem dos Contabilistas Certificados [aqui], mas não [ainda] de outras entidades a quem haviam sido solicitados: Comissão de Coordenação das Políticas de Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais e ao Financiamento do Terrorismo, Conselho de Prevenção da Corrupção, Banco de Portugal, Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, Ordem dos Notários, Conselho Superior do Ministério Público, Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, Comissão Nacional de Proteção de Dados.

A referida proposta de lei teve discussão conjunta com estas outras iniciativas legislativas:

Projecto de Lei 384/XIV: Estabelece medidas de reforço ao combate à criminalidade económica e financeira, proibindo ou limitando relações comerciais ou profissionais ou transações ocasionais com entidades sedeadas em centros off-shore ou centros off-shore não cooperantes

Projecto de Lei 385/XIV: Exclui entidades sediadas em paraísos fiscais de quaisquer apoios públicos à economia

Projecto de Lei 386/XIV: Exclui as empresas sediadas em paraísos fiscais das linhas de apoio no âmbito da pandemia de Covid-19

1ª CAC: agenda para 27 de Maio

É esta a agenda da reunião do dia 27 da 1ª CACDLG da Assembleia da República:

1 - A) Distribuição de iniciativas legislativas: nomeação de relator e deliberação sobre consultas a promover; B) Anúncio dos projetos de votos que baixaram à 1.ª Comissão;

2 - Discussão e votação dos pareceres sobre as seguintes iniciativas legislativas: 

A) Projeto de Lei n.º 230/XIV/1.ª (PS) - Regime de proteção de pessoas singulares perante práticas abusivas decorrentes de diligências de cobrança extrajudicial de créditos vencidos; Relatora: Deputada Mónica Quintela (PSD) 

B) Financiamento Partidário Projeto de Lei n.º 227/XIV/1.ª (PSD) - 8.ª alteração à Lei n.º 19/2003, de 20 de junho (Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais); Projeto de Lei n.º 235/XIV/1.ª (CDS-PP) - Altera a Lei nº 19/2003, de 20 de Junho (Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais), eliminando o benefício de isenção de Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) para os partidos políticos; Projeto de Lei n.º 240/XIV/1.ª (IL) - Elimina os benefícios fiscais dos partidos políticos e reduz o valor das subvenções públicas (8ª alteração à Lei de Financiamento dos Partidos Políticos, Lei n.º 19/2003, de 20 de junho); Projeto de Lei n.º 241/XIV/1.ª (BE) - Procede à oitava alteração à lei n.º 19/2003, de 20 de junho, introduzindo medidas de justiça fiscal e igualdade de tratamento; Projeto de Lei n.º 248/XIV/1.ª (PAN) - Revoga benefícios fiscais atribuídos aos Partidos Políticos, diminui os limites das despesas de campanha eleitoral e reestabelece limites das receitas de angariação de fundos (oitava alteração à Lei n.º 19/2003, de 20 de Junho); Projeto de Lei n.º 259/XIV/1.ª (PCP) - Reduz o financiamento público aos partidos políticos e às campanhas eleitorais; Relator : Deputado Jorge Lacão (PS)

3 - Apreciação e votação do parecer sobre a interpretação do n.º 2 do artigo 137.º do RAR (solicitado pelo PAR a pedido da Comissão de Administração Pública, Modernização Administrativa, Descentralização e Poder Local); Relator: Deputado Pedro Delgado Alves (PS)

4 - Apreciação e votação do de parecer sobre a constitucionalidade do Projeto de Lei n.º 1195/XIII/4.ª (Iniciativa legislativa de cidadãos) - Revogação da Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, de 29 de julho (Aprova o Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa), solicitado pela Comissão de Cultura e Comunicação; Relator: Deputado Pedro Delgado Alves (PS)

5 - Discussão e votação, na especialidade, dos: Projeto de Lei n.º 99/XIV/1.ª (PSD) - 4.ª alteração à Lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro (Regula o ingresso nas magistraturas, a formação de magistrados e a natureza, estrutura e funcionamento do Centro de Estudos Judiciários), assegurando formação obrigatória aos magistrados sobre a Convenção sobre os Direitos da Criança; Projeto de Lei n.º 194/XIV/1.ª (PS) - Altera o Estatuto da Ordem dos Advogados, revendo o estatuto remuneratório do Revisor Oficial de Contas que integra o respetivo Conselho Fiscal;

6 - Discussão do Projeto de Resolução n.º 458/XIV/1.ª (Ninsc.) - Campanha Nacional para Renovar o Pacto Anti-racista na Sociedade Portuguesa;

7 - Discussão e votação dos seguintes projetos de voto, nos termos dos n.os 7 e 8 do artigo 75.º do RAR: A) Voto n.º 218/XIV1.ª (CH) - Voto de Pesar pela morte da pequena Valentina Fonseca, às mãos de quem a deveria amar e proteger; Voto n.º 221/XIV/1.ª (BE) - Voto de Pesar pela Morte de Valentina Fonseca; Voto n.º 224/XIV/1.ª (CDS-PP) - Voto de Pesar pelo falecimento de Valentina Fonseca; Voto n.º 223/XIV/1.ª (PAN) - Voto de Pesar pela Morte de Valentina; Voto n.º 226/XIV/1.ª (PSD) - Voto de Condenação pelos atos de violência a crianças; B) Voto n.º 220/XIV/1.ª (PS/BE/PAN) - Dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia;

8 - Admissão e distribuição das seguintes petições: Petição n.º 37/XIV/1.ª - "Considerar as agressões a professores e educadores como Crime Público"; Petição n.º 48/XIV/1.ª - "Referendo sobre Eutanásia"; Petição n.º 65/XIV/1.ª - "Suspensão de normativos legais do âmbito da videovigilância";

9 - Outros assuntos.