Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




António Osório de Castro: a raiz afectuosa

 


O tempo pesa e com ele as memórias. E à nossa volta aumenta a clareira dos ausentes. E com isso a solidão, sombra que persegue a esperança nos que nos sucedem.

Ontem recebi a tristíssima notícia do falecimento do meu Bastonário, António Osório de Castro, o poeta António Osório. 

Ao longo do empenhamento que fui tendo na vida e obra da nossa Ordem dos Advogados, foi-me dado conhecê-lo, com aquele acanhamento de embaraçada admiração que coloco na relação com os outros. 

Hoje, dia triste, as memórias surgem. Entre elas, a mais longínqua, a jubilosa ocasião em que me foi possível fazer, sob a sua presidência, a primeira ligação de um computador digital e por um primitivo modem acústico e rede analógica, a uma base de dados jurídicos, o CREDOC, em Bruxelas, facto de tal modo insólito que, ante a sala repleta e incrédula, como que se avizinhava, em surpresa, ao primeiro passo do Homem na Lua. O que hoje se tornou banal era então futurologia, e é de poetas antevê-lo por entre o nevoeiro dos prosaicos descrentes. 

E depois a última, os passeios aqui  tão perto, acompanhado pela sua filha Gabriela, em que, tomando Sol pelos jardins da Gulbenkian, já indeciso o passo e confusas as lembranças, mantinha o porte e a galhardia que lhe davam a nunca perdida aura de senhoria e elegância. 

Pelo meio os livros que teve a amabilidade de autografar e os que fui juntando, requintado o verbo, cuidadosa a tipografia.

Num blog que dedico às coisas da Literatura, vistas com os olhos das minhas incertas leituras, escrevi a 3 de Outubro de 2012 isto que aqui  deixo como homenagem dorida à sua figura, apontamento sobre umas breves memórias que nos deixou:

«Disseram-me da livraria que já o tinham e, regressado do Tribunal, fui buscá-lo. Li-o neste fim de tarde, em ordem arbitrária, apesar de ser uma biografia «evocações de um poeta», detendo-me sobre o que foi a sua vida como advogado - e meu Bastonário na Ordem que é a da minha profissão - e, seguindo, em trilho errático, pelas memórias do tempo vivido, o convívio com a literatura, as raízes da sua família.
 
«O título devia ser "Breve Autobiografia". Só que dezenas de pessoas, de parentes, animais, bichos, árvores, trabalhadores rurais, que estão dentro dele, disseram já muito do que tinham a dizer». É assim, com este mote como se de São Francisco de Assis que o poeta António Osório abre esta narrativa na primeira pessoa, que acaba por ser singular porque resumida, como se um desfolhar da agenda de uma vida, recordando os prazos e as diligências que deram da vida o ser ao advogado António Osório de Castro.

Vim aqui escrever pelo que me comoveu a referência que faz a sua Mãe, ao publicar-lhe, tiradas da intimidade, uma das cartas que escreveu ao marido, desde que faleceu, e que regularmente lhe levava ao cemitério no Alto de São João.
 
Trata-se da primeira, redigida a 19 de Janeiro de 1968, no seu italiano natal, «um poema sem uma palavra a mais»:

«Caro Miguel
Non posso vivere lontano da te. Più il tempo passa e più sento la tua mancanza, anche nelle minime cose. La mia vita al tuo lato è sata una completa felicità, fra due periodi tormentosi. Quando giovanni, ho sofferto tanto per aspettarti: adesso sofro di pi`perchè sei che aspetti me. A riverdeci, Miguel carissimo La tua Giú».

Se um dia perguntarem o que é o amor, físico e para além dele, o amor integral, intangível e indizível, está aqui, no livro O Concerto Interior
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António Osório de Castro: advogado da espécie dos que, sendo exímios juristas, eram também, porquanto humanistas, seres de Cultura, fica como exemplo.

Em 2019 tive a honra de proferir, em improviso, a oração laudatória quando lhe foi conferida a Medalha de Ouro da nossa Ordem. Não ficou registo do que disse, guardo-o, sim,no coração, local de alegria breve e reduto de amor. 

Extradição & CPLP: o critério da confiança


Ressaltam, pela exaustiva fundamentação os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, como este de 9 de Setembro de de 2021 [proferido no processo n.º 170/21.4YRPRT.S1- 3.ª Secção, texto cujo sumário pode ser encontrado aqui] de que seja relator o Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha.

No caso estava em causa a viabilidade de extradição de um cidadão brasileiro para o Brasil. Os temas de Direito que se suscitavam eram, por um lado, a questão processual de ter ocorrido omissão de pronúncia, por outro o princípio de confiança no Estado requerente, sendo a regra da confiança a que baliza as relações de reciprocidade que vigoram no campo da cooperação judiciária internacional. 

E neste particular, o acórdão sufraga este critério de abdicação valorativa estando em causa um país da CPLP, , que, ressalvado o respeito devido, me permito considerar discutível. É o que decorre do passo seguinte: «o STJ não pode arvorar-se em tutor da qualidade do respeito pelos Direitos de países que Portugal reconhece como parceiros (nomeadamente na CPLP) e a que velhos laços, sempre renovados, dão o epíteto de irmãos.»

Cita-se na íntegra: 

«I - O thema decidendum no presente recurso é a apreciação da matéria de direito do acórdão recorrido, proferido pelo tribunal da Relação do Porto, que deferiu a extradição do recorrente para a República Federativa do Brasil, aí acusado por crimes de “estelionato”. 

II - Numa linha, o recorrente, a finalizar as suas Conclusões, requereu audiência. Não cumpriu, assim, o determinado pelo art. 411.º, n.º 5 do CPP. O recorrente foi já ouvido (em 29-07- 2021), e vastamente tendo explicitado os seus pontos de vista, que se encontram, ex abundantia, esclarecidos. De qualquer forma, não cumpriu os requisitos legais, não havendo especificado os pontos da motivação do recurso que desejaria ver debatidos. 

III - Alega omissão de pronúncia (máx. XXIII, XXIV e XXV das Conclusões). Porém, a invocação de omissão de pronúncia não pode ser genérica, mas, ao invés, deve ser muito específica. cf., v.g., acórdão deste STJ, de 27-10-2010, proferido no Proc.º n.º 70/07.0JBLSB.L1.S1: “VII - (…) Na impugnação da matéria fáctica não basta mera referência ou indicação genérica dos pontos de facto e das provas dissonantes, mas deve especificar-se os concretos pontos de facto e as concretas provas que impõem decisão diversa.” Está bastante sedimentada a jurisprudência sobre alegadas e não verificadas omissões de pronúncia. Cf. Acs. STJ de 07-04-2016, Proc. 6500/07.4TBBRG.G2.S3, de 31- 05-2016, de 15-02-2017, Proc. 3254/13.9TBVCT.G1.S1, de 22-01-2019, Proc. 432/15.0T8PTM.E1.S1; de 10-02-2020, Proc. nº 35/18.7GBVVC. E1.S1; de 14-05-2020, Proc. n.º 498/18.0YRLSB.S1. Sumários de Acórdãos das Secções Criminais 6 Número 287 – Setembro de 2021.

IV - Em suma, só há omissão de pronúncia quando o tribunal deixou de se pronunciar sobre questões essenciais sobre que se deveria ter pronunciado (e não é uma tautologia), mandando até o princípio da economia processual e o de minimis… que se não perca nas florestas de enganos, ou nas selvas obscuras de algumas profusas e tautológicas ou derivativas argumentações, verdadeiros caminhos de floresta, que, por vezes, nem levam onde julgam conduzir (Holzwege) – sendas perdidas. Não avaliando aqui o caso concreto, a verdade é que as questões essenciais (ainda que, eventualmente, em certos casos, em termos hábeis ou de forma implícita em alguns elementos do iter) foram todas respondidas. 

V - O fulcro das alegações do recorrente, que não deixa de chamar de forma impressiva a atenção dos julgadores, mormente pela dramaticidade do horizonte que convoca (no limite prefigurando, prevendo, temendo, o seu próprio assassinato – o que corresponde a uma grave espada de Dâmocles) é, afinal de contas, uma nova questionação da matéria de facto. E não relevam significativamente, na argumentação, os factos por que se encontra acusado no Brasil (configurando crimes de estelionato – entre nós, burla), mas o espetro de futuras vinganças, retaliações, ou afins, que o recorrente associa a uma sua atividade civicamente legítima, eventualmente com contornos também políticos e ideológicos, que latamente se poderia integrar no âmbito de uma sua alegada denúncia de “corrupção”. 

VI - Porém, o STJ não pode arvorar-se em tutor da qualidade do respeito pelos Direitos de países que Portugal reconhece como parceiros (nomeadamente na CPLP) e a que velhos laços, sempre renovados, dão o epíteto de irmãos. Sobretudo se as ameaças de desrespeito concreto dos mesmos direitos são apenas conjeturais e potenciais. A questão (tal argumentário, mutatis mutandis) não é nova, nem sequer perante este STJ. V. Ac. STJ de 16-05-2019, citado aliás pelo acórdão recorrido. 

VII - Conforme o n.º 1 do art. 3.º da Convenção de extradição entre os Estados-Membros da CPLP, apenas não haverá lugar a extradição nos casos aí mencionados. Nenhum deles se verifica aqui. 

VIII - E é liminarmente relevante a impossibilidade de conhecimento da matéria de facto, de novo posta em causa, sob o manto da omissão de pronúncia, que, porém, não ocorreu. Cf. art. 434.º do CPP. 

IX - A decisão de extradição é feita com o escrupuloso respeito por cuidados quanto à ordem jurídica que requer a extradição. Evidentemente, fala-se no plano da Constituição formal e da ordem jurídica formal. Não seria curial agir de outra forma, seguindo uma narrativa de conjetura e alarme. Extraditar o recorrente pretende dar-lhe oportunidade de pleitear a sua inocência perante tribunais, ou de, se for o caso, pagar a sua dívida à sociedade. Não é levá-lo ao mundo da corrupção e do assassínio, mas colocá-lo na esfera da Justiça que, certamente, para mais sabendo dos seus receios (e do escândalo que seria se porventura viesse a ter razão), não deixará de devidamente o proteger. 

X - Além de que, como é sabido, tendo o Brasil, tal como Portugal, subscrito a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP, está aquele país obrigado a respeitar a regra da especialidade, segundo o qual uma vez entregue o requerido este não poderá ser perseguido, detido, julgado ou sujeito a qualquer outra restrição da liberdade por qualquer facto anterior à entrega diferente daquele que motivou a sua extradição – art. 14.°, n.° 1 da Convenção e art. 16.° da Lei 144/99. 

XI - Assim, a Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, Lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal, aplica-se, segundo o art. 1.º, n.º 1, al. a) à extradição. E o art. 3.º indica hierarquia normativa. Assim sendo, o normativo que se aplica, neste caso, antes de mais, é a respetiva Convenção da CPLP (Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), que teve o seu início de vigência Sumários de Acórdãos das Secções Criminais 7 Número 287 – Setembro de 2021 relativamente a Portugal em 01-03-2010, e fora aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 49/2008, de 15/09, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 67/2008, de 15/09. E só na sua insuficiência se aplicará o diploma em causa, e subsidiariamente as normas do CPP. 

XII - Portanto, a invocação de outros diplomas só pode ter um efeito muito subsidiário, eventualmente como fontes hermenêuticas inspiradoras (fontes mediatas). E sobretudo não parece de forma alguma proceder uma invocação contraditória com o julgado e a ele alternativa, nomeadamente da CRP, da CEDH, etc., contra a Convenção da CPLP. 

XIII - Deve presumir-se que o tribunal da Relação ponderou atenta e gravemente o que se encontra em jogo. E não teria agido de ânimo tão leve que se viesse no futuro a ter de conformar com um possível resultado trágico da sua decisão (que viesse a dar, ainda que parcialmente, apenas razão ao cenário pintado pelo recorrente), ao não ter qualquer dúvida na sua decisão. Não ficou, pois, persuadido, dos factos alegados nem dos argumentos apresentados, e no seu juízo não demonstrou qualquer vacilação ou vício que nos permitisse sem temeridade alterar a sua decisão. 

XIV - Porquanto, não se pode olvidar que a intervenção do STJ é, por norma, parcimoniosa e prudente, sobretudo de verificação da justeza das operações judicatórias das instâncias. Tal é muito óbvio na verificação da proporcionalidade das penas, mas não deixa de ser um pano de fundo e timbre de uma forma de intervenção (cf., de entre inúmeros, Ac. STJ de 2010-09- 23, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1). 

XV - A justiça não pode claudicar no seu exercício diuturno e normal, nem recuar com medo de que eventuais ou conjeturais injustiças (“a coragem é uma virtude democrática”, relembra Wolfram Eilenberger), em situação patológica, a possam vir a atacar ou aos que julga e assim também protege. Mesmo que possa haver situações residuais e eventuais derivas na vigência das respetivas ordens jurídicas, os Estados, para mais ligados por tratados internacionais de cooperação, têm a obrigação de honrar os seus compromissos (como sublinha enfaticamente Monique Chemillier-Gendreau), e, no caso da cooperação judiciária, jamais podem ser os tribunais a furtar-se a isso. Obviamente que sempre no respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, mesmo dos cidadãos arguidos, ou acusados ou condenados, naturalmente. Defendendo o direito e os direitos. Com confiança na justiça. 

XVI - Tudo considerado, pois, reitera-se que não houve qualquer omissão de pronúncia, nem poderá ser reapreciada a matéria de facto (a matéria de facto provada e não provada não permite subscrever a narrativa do recorrente), dado não se verificar nenhum dos vícios considerados no art. 410.º, n.º 2, do CPP. 

XVII - Acresce não se vislumbra existir em qualquer ordenamento jurídico alternativo aos considerados, com correta aplicação ao caso, base que sustente a pretensão concreta de não extradição (nem ao nível internacional, nem europeu, nem interno, nomeadamente constitucional). Mas ao cumprir-se o direito convencional que obriga do Estado Português (e o Brasileiro), em nada se contraria quaisquer daqueles ordenamentos. E obviamente não foi apenas o direito convencional o aplicado ao longo do Processo, foi também a Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, o CPP, direito nacional e aplicado conforme a referida hierarquia normativa vigente. 

XVIII - Mantém-se, assim, o acórdão recorrido e a decisão de extradição.»

Arguido preso e obrigado a comunicar a alteração de paradeiro


Há entendimentos que se julgariam impensáveis como aquele que o Acórdão da Relação de Guimarães de 25.10.2021 [proferido no processo n.º505/18.7GASEI.G1, relator Armando Azevedo, texto integral aqui] teve de rechaçar ao definir que:

«I- As obrigações impostas ao arguido por força do disposto no nº 3 do artigo 196º do CPP – obrigação de comparecer, comunicar a alteração do local onde possa ser encontrado - pressupõe necessariamente que o arguido se encontra em liberdade.
II- Por isso, o nº 3 als. b) e c) do artigo 196º do CPP, nunca poderá ser interpretado no sentido de que impenda sobre o arguido a obrigação de comunicar que se encontra preso. Neste sentido discorda-se da posição daqueles que defendem que o arguido preso está obrigado a comunicar a alteração da morada, isto porque o arguido não alterou a sua morada, simplesmente foi preso.
III- A circunstância de o arguido ser posteriormente preso – à ordem dos próprios autos ou à ordem de outro processo, pois que a lei não distingue as duas situações - tem como consequência que o arguido passa a ser notificado, em qualquer caso, através do E.P. onde se encontre, em conformidade com o disposto no artigo 114º, nº 1 do CPP.
IV- Não tendo o arguido sido regularmente notificado da acusação deduzida pelo M.P., nem do despacho que a recebeu e designou data para realização de audiência de julgamento, foi cometida a nulidade do nº 1 al. c) do artigo 119º do CPP.»

Branqueamento de capitais

 


Grato pela oportunidade em ter podido participar, em Albufeira, esta passada sexta-feira, em tão interessante encontro, tentei, em improviso, deixar dúvidas, sabendo que geraria controvérsia. 

Como é possível que, ante a incerteza quanto a tratar-se inquestionavelmente de um ilícito criminal de perigo abstracto ou de dano, de resultado ou mera actividade, a exigir dolo específico em todas as suas modalidades ou bastar-se com dolo genérico, se tenha por segura a incriminação por branqueamento de capitais, por mais que ela se banalize, nomeadamente assim surja no circuito uma entidade offshore por mais que se tente passar a ideias que nem todas elas estão ao serviço de actos de recorte criminal?

A juntar a isto, vem o tema do dito "bem jurídico". Até pela sua colocação sistemática, verifica-se que estará em causa o bom funcionamento da justiça. A ler o n.º 1 do preceito em causa - o artigo 368º-A do Código Penal - e perguntamo-nos se o dito "bem jurídico" - essa conceito mutante quando deveria ser delimitador - não é, afinal, a possibilidade de encontrar legitimação para se decretar a perda das vantagens do crime. 

E se a isso aditarmos que, em sede de prevenção de branqueamento, ressalta a ideia de que é a eficácia do sistema fiscal, a transparência do sistema financeiro, as regras do mercado, aquilo para o que existe tanta regulação de matriz europeia, e tão imprecisa ela é, então a demonstração do dito "bem jurídico" como circunscrito ao funcionamento da justiça, torna-se problemática.

Não terei, talvez, razão nas dúvidas, mas tenho motivos para as colocar. E assim sucedeu.


TCIC: ponto de situação da lei que o modificará

 


Fundamental seguir-se o ponto de situação da Proposta de Lei n.º 103/XIV/2.ª, sobre o Tribunal Central de Instrução Criminal, o que pode encontrar-se aqui, já instruído o processo legislativo com os pareceres, normativo que se encontra já na fase de redacção final.

Consta do preâmbulo da referida iniciativa legislativa governamental o seguinte, a propósito do que o próprio Governo reconhece ser «imperfeito grau de aleatoriedade na distribuição de processos e, por via disso, de uma indesejável personalização da justiça, o que não beneficia a adequada perceção pública da objetividade da ação da justiça»:


«O Tribunal Central de Instrução Criminal é, por excelência, aquele que concentra os mais importantes processos relevantes da criminalidade económico-financeira. A complexidade e sofisticação crescentes da criminalidade económico-financeira, assim como a sua considerável dispersão territorial, determinam a necessidade de reequacionar a organização judiciária em matéria de instrução criminal no município de Lisboa. E esse movimento não pode deixar de considerar o elevado grau de especialização do Tribunal Central de Instrução no combate àquele tipo de criminalidade. Por outro lado, a atual configuração deste tribunal tocante ao número de juízes que aí exercem funções é indutora de um imperfeito grau de aleatoriedade na distribuição de processos e, por via disso, de uma indesejável personalização da justiça, o que não beneficia a adequada perceção pública da objetividade da ação da justiça. Este contexto é agravado pela circunstância de os processos que correm naquele tribunal adquirirem, em regra, um elevado patamar de mediatização.

«Assim, respeitando a diferenciação e qualificação do Tribunal Central de Instrução Criminal e a sua competência nacional, importa adotar medidas que permitam ultrapassar os constrangimentos acima identificados. Neste contexto, a fusão, no Tribunal Central de Instrução Criminal, das competências nacionais que, já são suas, com as competências próprias do juízo de instrução criminal de Lisboa, com o consequente aumento do número de magistrados afetos ao primeiro, é a solução que surge como sendo a mais adequada a garantir a racionalização de meios necessária ao combate mais qualificado à criminalidade económico-financeira, mas também o reforço da confiança dos cidadãos no sistema de justiça.»

Contraordenação: a prova da fase administrativa


Território de ambiguidades, a viver entre normas remissivas para a lei penal e para a processual penal, afinal todas elas a aplicarem directamente princípios de natureza constitucional, mas ao mesmo tempo protegido pela noção imperscrutável da sua natureza específica, porquanto orientado à tutela de valores não penais mas de cunho administrativo, o Direito contraordenacional é um campo fértil para indeterminações e, ao limite, abuso: as garantias penais, já por si cada vez mais sujeitas a interpretações restritivas, surgem e desaparecem numa lógica de afeiçoamento à conveniência do que se quiser com elas alcançar ou obliterar. 

Através deste forma processual, que se quis em 1982 como sucedâneo às contravenções, podem aplicar-se coimas que chegam aos milhões de euros, e sanções a empresas que podem levar ao seu encerramento, o que torna insólita tratar-se de um Direito de "mera" ordenação social. Através deste tipo de Direito, cuja natureza ainda é controversa entre os doutores, o legislador permite-se descriminalizar zonas da vida que por esta forma pune com uma severidade de que o Direito Criminal não seria capaz.

Mas, no entanto, na fase administrativa do procedimento respectivo, joga-se o essencial quanto à aquisição da prova, já que a experiência demonstra em que medida o probatoriamente adquirido pela autoridade administrativa, sobretudo sendo autoridades de supervisão e regulação em áreas especializadas, se impõe na fase judicial, até por se tratar de matérias que, pelo seu tecnicismo escapam ao comum conhecimento dos juízes; mais, há lei a dar fundamento a que se recuse na fase judicial produção probatória que já haja sido obtida na fase administrativa, ainda que estando em causa o modo como a mesma foi ali captada ou a extensão do ali obtido.

Eis o que torna relevante o determinado pelo Acórdão da Relação de Évora de 21.09.2021 [proferido no processo n.º 259/20.7T8CCH.E1, relator Gomes de Sousa, co-subscritor António Condesso, texto integral aqui], quando nele se estatui: 


«1 - O processo contra-ordenacional não é um processo em que as entidades administrativas possam, sem mais, recusar a produção de prova.
«2 - A questão central é, primacial e especialmente, o apurar da necessidade de produção de prova requerida em função da matéria que consta do auto de notícia e da defesa do arguido. A necessidade de fundamentação – que igualmente se impõe – assume pois um papel adjuvante daquela “necessidade” de produção de prova.»

O teor argumentativo da fundamentação do aresto em causa, torna indispensável a sua transcrição, até pelo juízo crítico que nele está ínsito quanto ao que tem sido uma certa mentalidade reinante na jurisprudência a tal respeito:

«Nem é necessário demonstrar em toda a sua plenitude a característica de processo administrativo com natureza ultra inquisitória que parte relevante da jurisprudência – até desta Relação - habitualmente atribui ao processo contra-ordenacional. Segundo esta visão o arguido só é necessário para constar do auto de notícia e da decisão condenatória. A produção de prova por si arrolada pode ser um incómodo e um risco conducente a prescrição. A evitar, portanto!

Nós, evitando as versões inquisitórias – anquilosadas na medida em que olvidam toda a doutrina sobre a natureza do processo contra-ordenacional - sempre o entendemos de forma diversa, como um processo a que é aplicável a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. E isto já em aresto de 28-10-2008 (proc. nº 441/08-1) e nestes termos: (III) “O conceito de acusação em matéria penal contido no artigo 6º da CEDH, conceito com autonomia e que deve ser interpretado no sentido da Convenção, é interpretado pelo TEDH como abrangendo o direito contra-ordenacional”.

E assim se fundamentou: [1]

Não tem sido esse o sentido da jurisprudência do TEDH, que entende a expressão acusação em matéria penal (aliás, equivalente às contidas nos nsº 2 e 3 do mesmo preceito – “acusada de uma infracção” do nº 2 e “O acusado” do nº 3) com diferente amplitude.
E tal entendimento não surge por qualquer interpretação extensiva ou analógica por referência aos processos disciplinares (nomeadamente militares) da jurisdição austríaca (acórdão Engel v. Holanda - 1976) ou contravencional da jurisdição francesa (acórdãos Peltier v. França e Malige v. França), o que sempre seria possível, sim por referência à própria legislação alemã sobre contra-ordenações (Ordnungswidrigkeit).
De facto, já no citado aresto Engel o Tribunal veio a delimitar critérios que desenvolveu e repetiu nos acórdãos Ozturk v. Alemanha (1984) e Lutz v. Alemanha (1987). [5]
Não obstante o governo alemão ter defendido perante o Tribunal que o artigo 6º da convenção não era aplicável aos casos na medida em que não havia uma “acusação em matéria penal”, invocando que se estava perante contra-ordenações (“Ordnungswidrigkeit”, ou na terminologia do Tribunal Europeu, "regulatory offence" ou "contravention administrative"), certo é que acabou por concluir que o artigo 6º da convenção era aplicável.
Para concluir que estava perante uma acusação em matéria penal, conceito com autonomia e que deve ser interpretado no sentido da Convenção, o Tribunal utilizou os seguintes critérios: a qualificação jurídica da infracção no direito nacional; a verdadeira natureza do ilícito; a natureza e o grau de severidade da sanção.
O primeiro critério – qualificação no direito nacional – tem carácter meramente formal e relativo, simples ponto de partida da análise a envidar (Engel), à luz do “denominador comum das legislações respectivas dos diversos Estados”.
Os outros dois critérios não são cumulativos, sim alternativos, pelo que lhe bastou constatar que a verdadeira natureza da “infracção”, o carácter geral da norma, o seu objectivo simultaneamente preventivo e repressivo, assumiam natureza penal (Lutz), para concluir estarmos perante uma acusação em matéria penal.»

Verifica-se, pois, que o processo contra-ordenacional não é um processo em que as entidades administrativas, possam sem mais, recusar a produção de prova com o amém de tribunais tributários de um desejo de tratar tal processo como um procedimento administrativo que deveria ser excluído da ordem comum dos tribunais nacionais.

Bem ao invés, trata-se de um processo onde apenas a modorra legislativa tem impedido a sua divisão – que se revela essencial de há muitos anos – de procedimentos consoante a sua natureza e complexidade do assunto tratado e gravidade das suas sanções, sabidamente mais gravosas que muitas multas penais.

Seja como for, com maior ou menor complexidade do tema tratado e gravidade das suas sanções, o arguido tem direito à sua defesa em moldes semelhantes ao do processo penal (a tal “acusação em matéria penal” de que fala a C.E.D.H.).

E aqui os requisitos de produção de prova em pouco se dissemelham do processo penal, pois que será a necessidade da produção dessa prova em termos delimitados pela defesa do arguido a determinar a sua admissão ou não.

Por isso que sempre entendemos que não se trata de uma questão de fundamentação. Esse é apenas o segundo passo necessário!

O passo essencial e determinante é o saber se a produção da prova arrolada se revela necessária à defesa do arguido. E será em função disso que a sequente fundamentação terá que tratar, admitindo ou não a produção da prova arrolada na medida em que seja necessária para uma sã e razoável defesa do defendente.

Ou seja, para além da necessidade de fundamentar como mera decorrência do princípio da legalidade, a exigência maior situa-se na necessidade de cumprir o princípio de investigação e de descoberta da verdade material, que também nestes processos é uma exigência substancial e não apenas formal.

Por isso que não seja nossa opinião que as duas posições em confronto se limitem à existência da necessidade ou não de a entidade administrativa fundamentar ou não a não inquirição de testemunha arrolada (ou outra prova arrolada), nem – de outra banda – que sobre a entidade administrativa recaia o dever de obrigatoriamente realizar todas as diligências de prova requeridas.

A questão central é, primacial e especialmente, o apurar da necessidade de produção de prova requerida em função da matéria que consta do auto de notícia e da defesa do arguido. A necessidade de fundamentação – que igualmente se impõe – assume pois um papel adjuvante daquela “necessidade” de produção de prova.

Por isso que não tenhamos dúvida em subscrever o aresto desta Relação de Évora de 06-11-2018 citado pela Digna recorrente, entendendo no entanto que o teor do recurso não mostra ter entendido a subtil diferenciação entre “necessidade de fundamentação” da não inquirição da testemunha arrolada, da “necessidade de produção de prova para obter a verdade material”, coisas distintas mas que devem subsistir em conjunto no processo contra-ordenacional.

Por outro lado, não se mostra necessário que o RGCO preveja norma a impor a inquirição de testemunhas às entidades administrativas se já dispõe de norma que, nos termos do próprio acórdão por si apresentado em apoio do seu recurso afirma que “I - O art.º 50.º, do Regime Geral das Contra-Ordenações consagra o direito de audição e defesa do arguido. II – Esse direito de audição e defesa não se limita à possibilidade de o arguido ser ouvido no processo de contra-ordenação, abrangendo o direito de intervir neste, apresentando provas ou requerendo a realização de diligências”.

Esta afirmação da inexistência de lei expressa a prever a prática de acto de defesa, cuja essência deve surgir como natural num procedimento sancionatório e com óbvio respaldo constitucional e convencional, sempre surge como deslocada e excessiva, como se fosse exigência da ordem jurídica a obrigação de que a lei deve prever todos os passos dados pelas magistraturas e o que nela não está previsto deve entender-se como proibido ou inadequado, ou que o direito de defesa se deve entender como excluído se não estiverem previstas na lei todas as suas possíveis concretizações.

E em acórdão desta mesma Relação de Évora de 08-04-2014 citado em rodapé (processo 108/13.2TBCUB) «A não inquirição de uma testemunha indicada pelo arguido na fase administrativa não pode estar dependente da simples vontade da entidade administrativa e esta não pode, de motu proprio, decidir não inquirir a testemunha por razões que não têm a ver com a necessidade da sua inquirição para a defesa do arguido».

Sem esquecer que «O arguido, ou seu mandatário, deve ser notificado da data da inquirição de testemunhas para que tenha oportunidade de inquirir ou contra-inquirir a prova por si indicada, em observância do n.º 10 do art. 32,º da Constituição da República Portuguesa, norma directamente aplicável por dizer respeito a direitos fundamentais (art. 18.º, n.º 1, da Constituição)».

[1] - Veja-se ainda o Acórdão desta Relação de Évora de 08-04-2014 (processo 108/13.2TBCUB) de nosso relato.»

A abstenção


Durante anos têm-se propiciado debates públicos sobre temas jurídicos que se suscitaram a propósito de processos em que tinha participação profissional como advogado. 

Adoptei, desde há muito, como critério não intervir por duas razões: por poder considerar-se que aquilo que exprimisse em termos de ideias gerais no plano legal fossem, afinal, formas indirectas de estar a discutir o que em concreto estivesse a defender nesses processos e por admitir que, até por isso, não se tratasse de opinião credível, antes instrumental de um interesse.

Durante anos têm-se propiciado debates públicos sobre temas jurídicos que se suscitaram a propósito de processos em que não tive intervenção profissional como advogado. Aí, a recusa assentou na noção de que não conhecendo os processos, não me caberia, por respeito a mim, falar sobre o que ignoro, por respeito aos colegas não iria opinar sobre os processos em que tinham eles intervenção.

Em ambos os casos, não esteve ausente das minhas razões um preceito legal que é expresso no Estatuto da Ordem dos Advogados segundo o qual, enquanto advogados, estamos adstritos ao dever de reserva.

Quando desempenhei funções na Ordem dos Advogados questionei-me sobre se uma tal norma legal não se tinha tornado obsoleta, ante o que é torrencialmente vertido no espaço mediático, mesmo em detrimento do segredo de justiça, em detrimento das pessoas envolvidas nesses processos, gerando suspeita condenatória a que os advogados, pela passividade a que estavam adstritos ante aquela norma, não podem obstar sem entrar em contravenção com o que nele se diz. Até hoje não se pensou em alterá-lo.

Em nome de tudo isto foi-se apagando conscientemente a minha intervenção pública. Mesmo no espaço virtual que é o meu blog jurídico, o "Patologia Social", segui o mesmo critério e fi-lo constar do pórtico do mesmo. 

Hoje, penso, está assente a ideia de que opinar sobre processos, ademais pendentes e ainda que de forma ínvia, é algo para o que não contribuo. Razão idêntica fez com que jamais tenha divulgado sucessos que tenho tido na profissão.

Digo isto, não como censura aos demais que surgem a fazer o que não faço, mas como declaração de princípio para justificar uma ausência. Sei que tudo isto é parte de um mundo que se tornou antiquado, mas prefiro assim. Sei que, num mundo de presenças, os ausentes parecem ter deixado de existir mas felizmente ainda há quem note a diferença.

Em tempos escrevi livros e artigos em que tentei exprimir, com distância, o que pensava sobre os temas jurídicos que nos mesmo se suscitavam.

Suponho que ainda possa voltar a escrevê-los, vencido o excesso de trabalho e o cansaço consequente que é hoje o meu mundo: o que me foi dado viver legitima-me a ter uma opinião, discutível seja, e a exprimi-la por essa forma, vencendo na minha consciência o equilíbrio entre o possível rigor e a necessária objectividade. Até lá, abstenho-me.

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A imagem é um quadro do pintor norte-americano Ben Will


Coimbra Editora: o nostálgico fim

 


É com amarga nostalgia que se vêm editores a encerrar. Eu que, entre as vicissitude da vida já arrisquei ser editor e por duas vezes, em ambas com modéstia e na segunda com prejuízos acumulados ao custear sozinho quantas obras alheias editei, sinto, como fossem minhas, essas dores de um sonho que se interrompe, tal como senti, ante o que publiquei, o entusiasmo da obra a fazer-se, surgida de uma ideia concebida no espírito até, enfim, ao formato em papel impresso, produzido em técnica oficinal; entusiasmo que o restante circuito, da distribuição à venda, tornam uma desamparada aventura, as sobras a encherem armazém, custos certos, vendas improváveis.

Escrevo a propósito da Coimbra Editora e do magnífico catálogo que produziu e agora se encontra, em restos de colecção, a preços de saldo. Atingiu 100 anos e termina agora.

Foi fundada a 7 de Agosto de 1920 por um grupo de professores universitários daquela cidade  [Guilherme Moreira, Oliveira Salazar, Alberto dos Reis, Paulo Mereia, Elísio de Moura, Magalhães Colaço, Manuel Rodrigues e tantos outros], em conjunção de esforços com os  livreiros Francisco França e Arménio Amado. 

Antes da Almedina, a que Joaquim Machado daria vida em 1955, na mesma cidade, antes da Petrony, que Augusto Petrony abriu como livraria, em Lisboa, no mesmo ano, era dos seus prelos que saíam as publicações jurídicas essenciais, livros práticos, ensaios jurídicos e teses doutorais, e periódicos como a Revista de Legislação e de Jurisprudência, que se publica desde 1868, característica pela edição dos seus artigos numa lógica de folhetim, somando sucessivamente vários números quando a extensão a tal obrigava.

É este o ciclo da vida, o da renovação da vida pela morte. Lei fatal da Natureza não deixa de ser um cruel destino.

Minuta de acusação e advocacia técnica

 


O ónus processual inerente a uma advocacia tecnicamente preparada está cada vez mais presente nas exigências formuladas pela nossa jurisprudência, aqui, diga-se, com acolhimento na lei. Claro que os efeitos de peças processuais incorrectamente minutadas recaem sobre os directamente afectados e que essa advocacia assiste e representa e exige-se, pois, um sentido acrescido de responsabilidade profissional.

Estamos seguros de que existem ónus cujo critério de satisfação é labiríntico, como o da formulação de conclusões de recurso em matéria de facto [para cumprir o determinado pelo artigo 412º, n.º 3 do CPP], mas outros configuram-se como razoavelmente proporcionados, como é o caso da delimitação do objecto do processo através da acusação.

Vem, por isso, a propósito, o determinado pelo Acórdão da Relação de Coimbra de 22.09.2021 [proferido no processo n.º 222/19.0GBSRT.C1, relator João Novais, texto integral aqui] quando determinou que:

«I - Não é exigida a perfeita coincidência entre a narração, mais ou menos imprecisa, da queixa e a descrição, concreta e circunstanciada, da acusação.
«II – A queixa traduz uma descrição do acontecimento naturalístico ocorrido, do “pedaço de vida” relativamente ao qual o ofendido pretende procedimento criminal, ou seja, consubstancia uma manifestação de vontade do ofendido de início e de prosseguimento de processo de natureza criminal contra o denunciado pela prática de um determinado crime.
«III – Já a acusação, reforçando o mesmo propósito, visa horizonte mais vasto, imputando-se nela ao arguido, em termos concretos, os factos e os crimes que os factos consagram.»

Pelo seu interesse, cita-se este excerto da sua fundamentação:

«f) Quanto à acusação particular, exigida para determinados tipos de crimes, constituindo um reforço da vontade do ofendido para que se verifique o procedimento penal já anteriormente manifestado através da apresentação da queixa, não se confunde com esta, indo para além dela.
Já não está apenas em causa, como na queixa, possibilitar o exercício da acção penal (ou impedir esse exercício através da desistência da queixa); está em causa o exercício dessa mesma acção penal, independentemente do próprio Ministério Público.
E uma vez que a acusação particular se relaciona com o verdadeiro exercício da acção penal, facilmente se compreende que a lei exija muito mais do que uma simples manifestação de vontade, sem especiais formalidades, como ocorre na queixa. Por esse motivo, a nossa lei estabelece expressamente a forma que deve revestir a acusação particular devendo respeitar – por remissão do 285º, nº 3 do C.P.P. – o disposto no art. 283º, 3, 7 e 8 do mesmo código; Ou seja, tem necessariamente que conter as especificações exigidas quanto à acusação pública, mormente a «narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada» - cfr. al. b) do n.º 3 do art 283º do C.P.P.
Como é sabido, é de grande relevância a descrição dos factos na acusação: o objecto do processo é o objecto da acusação, no sentido de que é esta que fixa os limites da actividade cognitiva e decisória do tribunal, ou, noutros termos, o thema probandum e o thema decidendum - cfr. Ac. do S.T.J. de 13.10.2011, proc. n.º 141/06.0JALRA.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt; A estrutura acusatória do processo, o princípio do contraditório, bem como o direito de defesa, levam a que, de acordo com o denominado princípio da vinculação temática, os poderes de cognição do tribunal estejam delimitados pelo conteúdo da acusação – cfr. Ac. desta Rel. de Coimbra, de 15-4-2015, processo n.º 992/12.1TAVIS.C1, disponível no mesmo sítio.
«g) Daqui resulta, que se na queixa se deve fazer referência ao acontecimento relativamente ao qual o ofendido pretende que ocorra uma reacção penal, assim se definindo a amplitude da investigação em sede de inquérito e da própria acusação, não se exige a perfeita coincidência entre a narração mais ou menos imprecisa desse acontecimento, e a descrição concreta e circunstanciada exigida numa acusação. Na queixa o que se pretende é uma descrição do acontecimento, ou “pedaço de vida”, relativamente ao qual o ofendido pretende procedimento penal; impõe-se apenas a manifestação da vontade no prosseguimento de processo crime contra o denunciado pela prática de um facto ou acontecimento que configurará determinado crime.
Já na acusação, reforçando-se a mesma manifestação de vontade, vai-se mais longe, imputando-se ao arguido, em termos precisos e concretos, os factos, e os crimes.»

Presunção de culpa penal?


 Aí está o descaramento e, há que reconhece-lo, a óbvia tradução do pensamento populista.

O livro foi escrito durante a reclusão pandémica, o autor é catedrático da Universidade Jaime I de Castellón, em Espanha.

O título antecipa as conclusões: segundo o autor, embora a jurisprudência o não admita, existe no sistema processual penal espanhol uma presunção judicial de culpa, o que implica, como seu efeito, a desvalorização da livre apreciação da prova; por outro lado, em sua opinião, os indícios, não sendo prova em si, consagram uma presunção de natureza probatória, o que é o primeiro patamar apto à respectiva demonstração.

Se isto já é, por si, um preocupante mundo novo, de há muito pensado, mas agora a surgir vocalmente ostensivo, pior é a lógica do raciocínio que subjaz ao raciocínio que a tais conclusões conduz: e esse assenta na lógica de utilitarismo moral, a de que os fins justificam os meios, na forma de que se não for assim, a inexistir presunção de culpa e valia presuntiva dos indícios, não se conseguem obter condenações, nomeadamente em caso de silêncio do acusado e no que se refere a crimes sexuais e, igual ilação se poderia extrair quanto aos crimes de cunho financeiro aqueles relativamente aos quais é usual proclamar que a prova directa é muito difícil.

É isto, que até aqui circulava, como insidiosa interrogação, no espaço mediático: como seria possível que houvesse presunção de inocência até ocorrer uma condenação transitada em julgado e não - e ei-la - presunção de culpa, esta aliás firmada pela degradação cívica a que o suspeito é sujeito, condenado pela opinião pública e cuja inocentação judicial fica relegada para a penumbra do silêncio noticioso.