Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Impugnando o inimpugnável

Por entender que o crime em causa era outro que não aquele sobre o qual o Ministério Público e o juiz de instrução se haviam entendido concordando com uma dispensa de pena, o assistente veio requerer a abertura de instrução. Foi-lhe rejeitada porque o Tribunal da Relação de Évora no seu Acórdão de 27.03.12 [relator Sénio Alves, texto integral aqui] decidiu que «contra a decisão de arquivamento do processo ao abrigo do disposto no artigo 280º, nº 1 do CPP não pode o assistente reagir através do pedido de abertura de instrução».
Fundamentando justificou explanando que: «Como claramente resulta do artº 286º, nº 1 do CPP, a instrução visa a comprovação judicial de deduzir a acusação ou de arquivar o inquérito. A decisão (de acusar ou arquivar) aqui referida só pode ser a proferida pelo MºPº, titular do inquérito. Não parece sensato defender-se que pode haver comprovação judicial de uma decisão… judicial de arquivar o processo! Mais: o juiz de instrução já comprovou judicialmente a decisão de arquivamento tomada pelo MºPº: fê-lo ao dar a sua concordância, nos termos do artº 280º, nº 1 do CPP, examinando os autos e verificando a existência dos pressupostos e requisitos legais».
É que, segundo o mesmo Tribunal: «Dispõe-se no artº 280º, nº 1 do CPP que “se o processo for por crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei penal a possibilidade de dispensa da pena, o Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução, pode decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificarem os pressupostos daquela dispensa”. E, nos termos do nº 3 do mesmo artigo, “a decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores, não é susceptível de impugnação” sendo certo que, como opina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 123, “o não ser susceptível de impugnação parece significar que a decisão de arquivamento não admite nem recurso nem comprovação pela instrução”».
Curioso é que ante uma lei que veda uma impugnação e ante uma situação que parece exigi-la - e cuja conformidade constitucionalidade tem sido aceite - a Relação de Évora conclua - citando o mesmo professor - que a via de ataque à mesma é a...impugnação por recurso. 

P. S: Um só reparo: no sumário o tema surge indicado por referência a vários descritores, um deles, o de «inquérito preliminar». Já houve.

UC's e UCP's

Quando da discussão do projecto de que saiu o Código de Processo Penal houve a ideia de acabar com as referências monetárias por causa da inflação que as desactualizava. Logo surgiu o conceito de unidade de conta. Dada a matéria houve quem sugerisse a nomenclatura «unidade de conta processual». Só que, abreviado, a sigla daria UCP e isso faria lembrar as unidades colectivas de produção dos tempos do PREC [na altura não havia confusão possível com Universidade Católica Portuguesa]. 
E como UCP podia dar origem a equívocos políticos um cidadão ser condenado a não si quantas UCP's, daí que tenha ficado UC. 
O site dos Oficiais de Justiça tem um instrumento que demonstra como se calculam. Está aqui. Para 2012 são 102,000 €

Emotiva motivação

Racionalidade pura, despido de sensações, privado de sentimentos, olhos vendados e coração empedernido? Que se passa com as emoções no Direito? No seu desenho, na sua aplicação? Pode haver lágrimas que a fundamentação de uma sentença esconda, que uma acusação omita? São só as defesas que clamam o grito da indignação, o clamor pela piedade? 
Eis em forma estudo o problema em si, aqui.

Soerguer

Lembro-me do tempo em que o Diário da Republica vinha em papel, pelo correio e tinha de se abrir as folhas e organizar por vezes os cadernos, quando eram vários. Quando se colavam nos Códigos as folhinhas cortadas à tesoura, editadas pelo Dr. Ernesto de Oliveira, actualizando-os. Tempo em que as fichas de jurisprudência azuis e as de legislação brancas chegavam nuns saquinhos de papel pardo e se coleccionavam alfabeticamente, trabalho paciente do Dr. Simões Correia. Época em que não havia Internet nem a Colectânea de Jurisprudência. Em que se escrevia em papel selado, com uma cópia para o tribunal, outra para cada parte que vivesse em economia separada, mais uma de almaço para a reforma dos autos e a folha final em papel de seda, para o nosso arquivo e tudo a papel químico, mais o «radex» ou a borracha dura e a vassourinha para as emendas em todas e cada uma das folhas cada vez que uma pessoa se enganava.Em que não havia fax e pouquíssimos tinham telex.
Lembro desse tempo em que havia menos leis, duravam mais tempo e a jurisprudência era mais certa. Em que éramos uma família. Em que na Biblioteca da Ordem dos Advogados Dona Lita Scarlatti, o Senhor Homem de Figueiredo, o Senhor Malta Jotta e à noite o Senhor Joaquim Parro partilhavam simpatia e informação bibliográfica com os leitores, advogados, magistrados, estudantes de Direito e todos ali convivíamos com amigável espírito.Tempos em que, sob a Ditadura, se lutava pelas liberdades mas havia espírito de luta e respeito pela contenda.
Lembro-me, porque há dias em que uma pessoa, ao levantar-se da cama, para este mundo em que a informação está ao alcance de um click, a maquinaria nos simplifica a burocracia, e tudo parece fácil e moderno, imagina que na zoologia dos seres que povoa este mundo errático estamos piores todos e vivemos mais infelizes. Tornámos isto num lúgubre covil.

Criminalização dos políticos

Procurar demonstrar em que medida a lei penal permite a punição da insolvência negligente provocada por um privado mas não por um governante; porque o Estado permite-se o que impõe aos cidadãos, proibindo-os.
Viu-se quanto a especialidade da lei de criminalização dos políticos está numa lógica de agraciamento e de isenção, ao limite de atenuação especial. Superficialmente porque a linguagem da TV não permite mais. Foi ontem no programa Olhos nos Olhos com Medina Carreira. O vídeo integral aqui.

Quando a espécie faz um género...

É interessante o número de organizações, todas de língua inglesa que, de repente, depois de eu me ter inscrito numa certa e respeitável associação internacional de advogados, me passaram a bombardear com emails ["descobriram-me" por certo em função daquela inscrição] com menções que começam por me dar conta de que eu sou o melhor ou dos melhores neste ou naquele outro ramo do Direito. A coisa soa a falso e tão a falso que um destes dias até fui galardoado com uma honrosa menção por ter sido escolhido, de acordo com um painel de "peritos", em "expert" em "private equity funds"...
O interessante vem a seguir: o convite para que eu aceite ser mencionado em anuários, relatórios, "who's who" ou mesmo a escrever artigos de dimensão variável, desde que pague! Pois claro. Porque o ser ou não ser "top" de vendas nesta mercantilização em que se tornou a vida social depende já não tanto do quanto vales, mas do quanto rendes e agora do quanto pagas.
Estou a considerar seriamente eliminar-me como membro daquilo que deu azo a esta porta aberta aos caçadores de celebridades a dinheiro. A lógica dos clubes "very exclusive" à conta de jóias para os "very few" nunca fez o meu género. Mas pelo que vejo caracteriza uma espécie! 
Volta Darwin, é o fim da macacada.

A reforma da Lecrim: nem bom vento...

Velha, desconexa, sem sistemática, casuística, a roçar o formulário para amanuenses, a lei processual penal espanhola vai encontrar, enfim, uma alternativa, assim a Comissão de legislação que acaba de ser nomeada conclua trabalhos e estes sejam viabilizados legislativamente. 
Curioso e discutível que o próprio poder político se comprometa directamente nos trabalhos de reforma, logo através de dois membros, o Ministro da Justiça e o seu Secretário de Estado. No mais veja-se a miscigenação entre o judicial e a "Fiscalía", a Cátedra e a Advocacia.
Copio a notícia:


«15 de marzo de 2012.- El ministro de Justicia, Alberto Ruiz-Gallardón, ha presidido esta mañana la constitución de la Comisión Institucional para la elaboración de la propuesta de texto articulado de la Ley de Enjuiciamiento Criminal.Los miembros de la Comisión son:

- Ministro de Justicia
- Secretario de Estado de Justicia
- D. Manuel Marchena, Magistrado del Tribunal Supremo y Presidente de la Comisión
- Dª. Gabriela Bravo, Fiscal y Vocal Portavoz del Consejo General del Poder Judicial
- D. Antonio del Moral, Magistrado del Tribunal Supremo y Fiscal
- D. Jacobo López Barja de Quiroga, Magistrado Jefe del Gabinete Técnico del Tribunal Supremo
- D. Nicolás González-Cuéllar, Catedrático de Derecho Procesal y Abogado
- D. Luis Rodríguez, Catedrático de Derecho Penal y Abogado
- D. Jaime Moreno, Fiscal del Tribunal Supremo
- D. Jaime Requena, Magistrado, Asesor del Gabinete del Secretario de Estado y Secretario de la Comisión.»

Vergonha!

Durante anos defendeu-se o sistema de Justiça considerando que não permitia o arbítrio, o discricionário, o favoritismo. Que era igual para todos. 
Nem sempre foi fácil essa defesa: a indeterminação e a imprevisibilidade da jurisprudência, a assimetria nas penas aplicadas a situações em que o idêntico ressaltava, os diferenciados ritmos de processamento, os arquivamentos contestáveis, as acusações selectivas, a simultaneidade de alguns agendamentos com eventos do foro político mantiveram sempre acesa a chama da polémica, permitiram a dúvida, legitimaram a suspeita. Começou, além disso, a tornar-se trivial ouvir-se da boca dos próprios responsáveis pela Justiça que há uma para ricos outra para pobres. E claro a culpar os Advogados por isso, os suspeitos do costume.
Uma coisa é certa: resistiu-se, tentando mostrar em que medida o essencial do sistema se mantinha dentro dos parâmetros da decência, porque era resistir pelo espírito de corpo, pela segurança jurídica, contra as intromissões exteriores, face aos atrevimentos da política e dos grupos de pressão, era lutar pela cidadania e pela independência do Judiciário, pelo Estado de Direito.
Esse tempo acabou.
Com a justiça negociada abre-se a porta àquilo contra o que se combateu estes anos. Transaccionadas aqui, pactuadas acolá, as decisões judiciais passarão a ficar à mercê da casuística, dos arranjos dos que aceitarem a contratualização, do mais hábil negociador, da menos sindicável motivação, da conveniência e do interesse, do mais poderoso.
Vendo como vejo tantos magistrados tão contentes pelo menos trabalho que assim os aguarda como efeito desta justiça da transa, percebo que o poder político os despreze relegando-os para o desdém com que trata os seus funcionários.
A política venceu, enfim! Pela justiça negociada deixa de ser preciso alterar as leis à medida ou de decretar amnistias convenientes. Tudo se resolverá nos gabinetes, com discrição. E com o Poder Judicial a aplaudir, assinando a sua incondicional rendição. Vergonha!

Suspensão da pena

«Se o agente foi condenado pela prática de um crime de homicídio negligente e de um crime de ofensa à integridade física por negligência de que resultaram ofensas à integridade física grave para a outra vítima, emergente de acidente de viação, com culpa exclusiva do arguido, - motorista profissional e condutor de veículos pesados, sem antecedentes criminais, que não confessou os factos (tão-só manifestou arrependimento e pesar face às consequências do acidente de viação em apreço) - não se justifica a opção pela pena de multa (inadequada e ineficaz face às necessidades de prevenção geral positiva ou de integração, num contexto social em que se verifica a ocorrência de inúmeros acidentes de viação), mas antes a opção pela pena de prisão, suspensa na sua execução, tendo especialmente em conta as necessidades de prevenção geral, devido ao alto nível de sinistros rodoviários». Acórdão de 6 de Março de 2012 do Tribunal da Relação de Évora [sublinhados meus, relator Monteiro Amaro, texto integral aqui]

Enriquecimento ilícito

Não se trata necessariamente da inversão do ónus da prova em processo criminal no que se refere à criminalização do enriquecimento ilícito; trata-se, outrossim, do dever de declaração da origem de património que não tenha correspondência nos rendimentos declarados. Dever cujos primeiros obrigados são todos os que abraçam a vida pública.
Discutível é que o legislador estabeleça, ante a ausência de explicitação, uma presunção de origem ilícita desse património não havendo sequer crime precedente que lhe pudesse ter dado origem. 
Porque este [o da necessidade de crime precedente] é o sistema do artigo 7º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro [texto integral aqui], cuja constitucionalidade o Tribunal Constitucional salvou.
Aguardemos a arquitectura da solução.