Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




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CDS-PP: projectos de lei


É todo um vasto pacote de medidas apresentadas pelo Grupo Parlamenta do CDS-PP na Assembleia da República sobre temas da actualidade jurídico-penal. Fica aberta a discussão.

Projeto de Lei 870/XIV/2 [CDS-PP]
Procede à segunda alteração da Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, que Aprova o Estatuto do Ministério Público, criando o crime de sonegação de rendimentos e enriquecimento ilícito e alterando as condições de exercício de funções não estatutárias

Projeto de Lei 869/XIV/2 [CDS-PP]
Procede à vigésima alteração à Lei n.º 21/85, de 30 de julho, que Aprova o Estatuto dos Magistrados Judiciais, criando o crime de sonegação de rendimentos e enriquecimento ilícito e alterando as condições de exercício de funções não estatutárias

Projeto de Lei 868/XIV/2 [CDS-PP]
Criação do Estatuto do Arrependido

Projeto de Lei 867/XIV/2 [CDS-PP]
Cria o crime de sonegação de proventos e revê as penas aplicáveis em sede de crimes de responsabilidade praticados por titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos

Projeto de Lei 866/XIV/2 [CDS-PP]
Criação do Regime de Proteção do Denunciante

Ocultação de riqueza: a proposta da ASJP

 


A Associação Sindical dos Juízes Portugueses formulou uma proposta de criminalização da ocultação da riqueza durante o período de exercício de altas funções públicas. O texto pode ser lido aqui.

Trata-se de propostas de redacção relativamente à  Lei 52/2019, de 31 de Julho [cujo texto pode ser consultado aqui], complementadas com considerações sobre a necessidade, oportunidade e constitucionalidade dos temas subjacentes à noção que visa ser alternativa à derrotada ideia da criminalização do enriquecimento ilícito, que fora reprovada pelo Tribunal Constitucional [Acórdão 377/2015], como se pode ler aqui.

O texto está estruturado numa linha de diálogo crítico ante a iniciativa governamental consubstanciada na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção [2020-2024, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 37/2021, RD nº 66, Série I, 6ABR2021], em cuja discussão pública a ASJP participou [mediante documento entre na Assembleia da República a 16 de Outubro de 2020], quer pela recuperação pública que o dito órgão associativo lançara em 2011 através de um jornal diário.

Clarificando a noção de «altas funções públicas», o documento refere que com ela se abrange os «sujeitos das obrigações declarativas da Lei 52/2019, de 31 de Julho», ou seja:

Artigo 2.º
Cargos políticos

1 - São cargos políticos para os efeitos da presente lei:
a) O Presidente da República;
b) O Presidente da Assembleia da República;
c) O Primeiro-Ministro;
d) Os Deputados à Assembleia da República;
e) Os membros do Governo;
f) O Representante da República nas Regiões Autónomas;
g) Os membros dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas;
h) O

s Deputados ao Parlamento Europeu;
i) Os membros dos órgãos executivos do poder local;
j) Os membros dos órgãos executivos das áreas metropolitanas e entidades intermunicipais.
2 - Para efeitos das obrigações declarativas previstas na presente lei, excecionam-se do disposto na alínea i) do número anterior os vogais das Juntas de Freguesia com menos de 10 000 eleitores, que se encontrem em regime de não permanência.
3 - Para efeitos das obrigações declarativas previstas na presente lei são equiparados a titulares de cargos políticos:
a) Membros dos órgãos executivos dos partidos políticos aos níveis nacional e das regiões autónomas;
b) Candidatos a Presidente da República;
c) Membros do Conselho de Estado;
d) Presidente do Conselho Económico-Social


Artigo 3.º
Altos cargos públicos

1 - Para efeitos da presente lei, são considerados titulares de altos cargos públicos:
a) Gestores públicos e membros de órgão de administração de sociedade anónima de capitais públicos, que exerçam funções executivas;
b) Titulares de órgão de gestão de empresa participada pelo Estado, quando designados por este;
c) Membros de órgãos de gestão das empresas que integram os sectores empresarial regional ou local;
d) Membros de órgãos diretivos dos institutos públicos;
e) Membros do conselho de administração de entidade administrativa independente;
f) Titulares de cargos de direção superior do 1.º grau e do 2.º grau, e equiparados, e dirigentes máximos dos serviços das câmaras municipais e dos serviços municipalizados, quando existam.
2 - Para efeitos das obrigações declarativas previstas na presente lei são equiparados a titulares de altos cargos públicos:
a) Os chefes de gabinete dos membros dos governos da República e regionais;
b) Os representantes ou consultores mandatados pelos governos da República e regionais em processos de concessão ou alienação de ativos públicos.

A intervenção da ASJP segue num caminho diverso daquele que vinha sendo proposto quando das precedentes iniciativas quanto à criminalização do então denominado enriquecimento ilícito, visando claramente evitar as questões de constitucionalidade que se haviam suscitado a propósito desta figura. A propósito consta do documento:

«Parece razoavelmente evidente que os comportamentos potencialmente corruptivos relacionados com o exercício de altas funções públicas, independentemente da sua tipificação penal, apresentam, em abstracto, um denominador comum: aquisição e ocultação de património incongruente com os rendimentos conhecidos no período coincidente com o exercício das funções. É do senso comum que as pessoas que adquirem rendimentos ou património por via da prática de crimes, não o declaram às autoridades nem os colocam em posição de serem facilmente detectados. Não é, por isso, temerário estabelecer uma relação causal de alta probabilidade entre a ocultação intencional de riqueza adquirida naquele período e a existência uma prévia acção ilícita. Por outro lado, conhecem-se as dificuldades de investigar e provar a prática de crimes de corrupção e conexos no exercício de altas funções públicas. É reduzido o número de casos investigados e punidos, quando comparado com a percepção existente sobre a dimensão do fenómeno. Daí resulta que as normas penais incriminadoras e a multiplicação dos tipos legais para prevenir e reprimir comportamentos dessa natureza são reconhecidamente tidos como ineficazes. Foi precisamente para superar esta dificuldade que surgiram as tentativas anteriores de criminalização do enriquecimento ilícito. Sendo razoável supor, com base nas evidências do senso comum, a existência de um nexo causal entre os actos corruptivos e o enriquecimento incongruente e não sendo viável, em muitas situações, punir o fenómeno pela efectiva comprovação da ilicitude do acto causal, procurou-se fazê-lo através da incriminação do seu resultado objectivo. Essa não é, contudo, uma via constitucionalmente aceitável. O Tribunal Constitucional, através dos acórdãos nºs 179/2012 e 377/2015, julgou inconstitucionais as normas que visavam criminalizar o enriquecimento ilícito ou injustificado, aprovadas, respectivamente, pelos Decretos da Assembleia da República nºs 37/XII e 369/XII. Para o Tribunal Constitucional uma norma dessa natureza (i) não respeita o princípio da proporcionalidade, por ausência de bem jurídico definido na esfera de protecção da norma e por violação do princípio da subsidiariedade do sistema penal; (ii) não respeita o princípio da legalidade, pois não identifica a acção ou omissão proibida e (iii) não respeita a proibição da presunção de inocência, nos segmentos da inversão do ónus da prova, do in dubio pro reo e do direito ao silêncio e à não auto-incriminação. Deve, pois, ter-se como adquirida e indiscutível a inconstitucionalidade de qualquer solução de criminalização do enriquecimento ilícito ou injustificado, com o sentido das anteriores tentativas legislativas.»

Perante tal perspectiva [a de não aceitar qualquer solução que assente na criminalização], sugere a Associação;

«O sentido da proposta da ASJP é, portanto, outro. Uma proposta que, a bem da necessidade de clarificar conceitos e não inquinar a discussão pública, abandona de vez designações como “enriquecimento ilícito”, “enriquecimento injustificado” “enriquecimento incongruente” ou outras equivalentes. O que está em causa, primordialmente, não é apontar o foco para o desvalor da ilicitude do enriquecimento no exercício de altas funções públicas, mas sim reforçar a protecção do bem jurídico da transparência no exercício dessas funções, aperfeiçoando os mecanismos previstos na LOD de declaração da situação patrimonial dos titulares de altas funções públicas e de responsabilização criminal em caso de incumprimento. Consequentemente, por razões de coerência sistemática e de melhor identificação do bem jurídico protegido, defende-se a alteração das normas pertinentes da LOD e não a criação de qualquer tipo criminal autónomo, a inserir no Código Penal ou noutro diploma legal.»

E assim, eis o que vem proposto:

Artigo 14º (actualização da declaração) 

Número 5 (novo): 

Nas declarações previstas neste artigo deve constar também a descrição de promessas de vantagens patrimoniais futuras que possam alterar os valores declarados, referentes a alguma das alíneas do nº 2 do artigo anterior, em montante superior a 50 salários mínimos mensais, cuja causa de aquisição ocorra entre a data de início do exercício das respectivas funções e os três anos após o seu termo. 

Explicação: Visa-se incluir nas obrigações declarativas a que se refere o artigo 14º, que são aquelas que permitem fiscalizar as variações ocorridas no período já considerado relevante por lei, as promessas de obtenção de vantagens futuras com valor económico. Sem uma norma como esta, a protecção do bem jurídico da transparência no exercício do cargo é incompleta, na medida em que o recebimento da vantagem depois de 3 anos após a cessação de funções pode traduzir-se num aumento significativo de riqueza não sujeita a qualquer tipo de fiscalização ou sanção. 

Número 6 (novo): Nas declarações previstas neste artigo deve constar também a indicação dos factos geradores das alterações que deram origem ao aumento dos rendimentos ou do activo patrimonial, à redução do passivo ou à promessa de vantagens patrimoniais futuras.

Explicação: Na declaração correspondente ao início do cargo a indicação dos factores geradores da riqueza não é relevante para a protecção do bem jurídico em causa na LOD. Porém, nas declarações subsequentes, previstas no artigo 14º (60 dias após a cessação de funções, 30 dias após as alterações patrimoniais relevantes e 3 anos após o fim do exercício de funções), que permitem fiscalizar as variações ocorridas no período correspondente, considera-se que as declarações devem também indicar a fonte da riqueza adquirida, visando aumentar a protecção do bem jurídico e tornar mais efectiva a possibilidade de fiscalização.


Artigo 18º (incumprimento das obrigações declarativas) 

Números 4, 5, 6 e 7: Eliminar.

Explicação: A tipificação penal da omissão de entrega de declaração ou de ocultação de rendimentos e património deve ser feita em norma autónoma. 


Artigo 19º (desobediência qualificada e ocultação intencional de riqueza) 

1 – Sem prejuízo do disposto do artigo 18º, a não apresentação intencional das declarações previstas nos artigos 13º e 14º, após notificação, é punida por crime de desobediência qualificada, com pena de prisão até 3 anos. 

2 – Quando a não apresentação intencional das declarações referidas no número anterior não tenha sido acompanhada de qualquer omissão de declaração de rendimento ou elementos patrimoniais perante a autoridade tributária durante o período do exercício de funções ou até ao termo do prazo previsto no artigo 14º nº 4, a conduta é punida com pena de multa até 360 dias. 

3 – Quem, fora dos casos previstos no º 1, com intenção de ocultar elementos patrimoniais, rendimentos ou promessas de vantagens patrimoniais futuras que estava obrigado a declarar em valor superior a 50 salários mínimos mensais, não apresentar a declaração prevista no artigo 14º nº 2 ou omitir de qualquer das declarações apresentadas a descrição ou justificação daqueles elementos patrimoniais ou rendimentos ou promessas de vantagens patrimoniais futuras nos termos do artigo 14º nºs 5 e 6, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos. 

4 – Incorre na mesma pena prevista no número anterior quem, com intenção de os ocultar, não apresentar no organismo ali previsto as ofertas de bens materiais ou serviços a que se refere o artigo 16º, quando o seu valor for superior a 50 salários mínimos mensais. 

5 – Os acréscimos patrimoniais não justificados apurados ao abrigo do regime fiscal tributário, de valor superior a 50 salários mínimos mensais, são tributados, para efeitos de IRS, à taxa especial de 80%.

Explicação: Nº 2: Visa-se aperfeiçoar a redacção por o período relevante para a fiscalização prevista na LOD não ser apenas o correspondente ao exercício de funções, como erradamente parece decorrer do actual nº 5 do artigo 18º, mas dever incluir também os 3 anos a que se refere o artigoº 14º nº 4. Nº 3: O nº 1 (correspondente ao actual nº 4 do artigo 18º) pune como desobediência a não entrega da declaração devida após notificação para o efeito da entidade fiscalizadora. Simplesmente, tratando-se da alteração patrimonial ocorrida no exercício de funções, prevista no artigo 14º nº 2 al. a), a entidade fiscalizadora dificilmente notificará o titular do cargo para apresentar a declaração em falta porque não terá, em regra, conhecimento dessa alteração. Daí resulta que, no regime em vigor, o titular do cargo que não apresente a declaração de alteração patrimonial superior a 50 salários mínimos mensais não é punido. Não comete crime de desobediência porque não foi notificado previamente para a apresentar e não comete o crime do actual artigo 18º nº 6 porque este não se refere à falta de entrega de declaração mas sim à omissão de indicação de elementos patrimoniais ou rendimentos numa declaração entregue. Ora, no caso de se verificar no decurso de funções uma alteração patrimonial superior a 50 salários mínimos mensais, o que deve ser punido como ocultação intencional de riqueza é a própria omissão de apresentação da respectiva declaração. Nº 4: Com o regime em vigor, o titular do cargo que no período correspondente ao seu exercício receba ofertas de bens ou serviços e não as apresente ao organismo competente, nos termos do artigo 16º, não sofre qualquer consequência penal. Tratando-se de uma oferta com valor superior a 50 salários mínimos mensais, a omissão dessa apresentação com intenção de a ocultar deve ser equiparada para efeitos penais à omissão de declaração de elementos patrimoniais ou rendimentos. No que respeita ao agravamento da pena proposto, ele resulta do facto de haver um aumento de ilicitude da acção, resultante do maior desvalor da violação da obrigação não apenas de declarar os rendimentos e património mas também de justificar a respectiva proveniência. Por outro lado, mesmo com o regime actual, considera-se que existe uma desproporção nas medidas das penas previstas nos números 4 e 6 do artigo 18º, que esta proposta também elimina. É diferente e maior o desvalor da acção de ocultação intencional de riqueza adquirida no período do exercício de altas funções públicas que relativamente ao desvalor da simples omissão de entrega da declaração. No primeiro caso está em causa a falsidade de uma declaração com intenção de ocultar riqueza, ao passo que no segundo se trata apenas da desobediência a um comando legal, sem essa intenção. A pena que se propõe, de 1 a 5 anos de prisão, é a que corresponde actualmente aos crimes de falsificação de documentos por funcionários no exercício de funções, previstos nos artigos 256º nº 4 e 257º do Código Penal, que se consideram de desvalor jurídico equivalente. 

Enriquecimento ilícito: já leu mesmo o que o TC decidiu?

Foto DN 

Evito comentar questões jurídicas tal como são apresentadas na imprensa, não por desrespeito para com esta, mas porque, compreendo o seu estilo, sinto que se corre o risco de imprecisão. E faz-me impressão que espaços de reflexão jurídica vão atrás do modo como as questões são suscitadas nos media, sem mais. É que há meandros que passam despercebidos na hipnose do mainstream. O Acórdão do Tribunal Constitucional sobre o enriquecimento ilícito está publicado aqui. Vale a pena lê-lo na fonte. Porque é exemplar disto mesmo.
Primeiro para alcançar, enfim, os fundamentos do pedido de fiscalização preventiva do diploma, formulado pelo Presidente da República, o qual não se dignou tornar tempestivamente pública a razão pela qual, em matéria de tal sensibilidade, havia solicitado a intervenção do TC.
Segundo, para poder acompanhar a exposição de Direito Internacional e de Direito Comparado que no aresto se efectua, a qual, se leva a concluir que se é verdade que no espaço europeu tal tipo incriminador é minoritário, não deixa de consignar que artigo 321-6 do Código Penal Francês, introduzido pela Lei n.º 2006-64, de 23 de Janeiro de 2006 prevê a «não justificação de rendimentos» pela seguinte forma: “Le fait de ne pouvoir justifier de ressources correspondant à son train de vie ou de ne pas pouvoir justifier de l’origine d’un bien détenu, tout étant en relations habituelles avec une ou plusieurs personnes quis soit se livrent à la commission de crimes ou de délits punis d’au moins cinq ans d’emprisonnement et procurant à celles-ci un profit direct ou indirect, soit sont les victimes d’une de ces infractions, est puni d’une peine de trois ans d’emprisonnement et de 75 000 d’amende.”
Terceiro, para poder levar em linha de conta que no plano fiscal são relevados contra o contribuinte os acréscimos patrimoniais não justificados.
Quarto, para ter consciência do que é que afinal foi o tema decidido pelo Palácio Ratton, primacialmente sobre a indeterminação do tipo incriminador, concorrentemente sobre a questão da violação do princípio da presunção de inocência e do modo como a segunda questão foi postergada em favor da primeira. Mais: do modo como a segunda questão - que foi a que gerou ampla polémica pública - acabou por ser desconsiderada e aberto o caminho à sua relativização. Ou seja, os que se congratulam com a vitória do princípio, não alcançaram a profunda derrota sofrida. Expressa nas entrelinhas, como é do estilo.

Quanto ao primeiro tema, recordando os termos em que lhe foi colocada a questão diz o Acórdão: «No seu pedido, o requerente invoca que o regime aprovado pela Assembleia da República viola o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição, considerando que “podem ser encontradas outras formas de, protegendo os mesmos bens jurídicos, salvaguardar princípios constitucionais fundamentais, ademais quando aplicável a todas as pessoas” e que “na formulação adotada pelo Decreto, tanto mais que não são claros os bens jurídicos a proteger pela norma e pela respectiva incriminação”, sendo sempre que “tal indeterminação coloca em crise não só o juízo de proporcionalidade como a própria possibilidade concreta de definição do tipo legal”». Ante isso o aresto considera que «nesta ordem de ideias e atento o pedido ‘sub judicio’, cumpre começar por perspectivar, a título prévio, se as normas sindicandas cumprem o desiderato básico de assegurar a tutela de bens jurídicos e se, em caso de resposta positiva, ultrapassam o teste específico da necessidade». E eis o que o TC acompanha quando estatui: «se a finalidade é punir, através da nova incriminação, crimes anteriormente praticados e não esclarecidos processualmente, geradores do enriquecimento ilícito, então não há um bem jurídico claramente definido, o que acarreta necessariamente a inconstitucionalidade da norma».
Quanto à segunda questão, de acordo com o decidido «o tipo legal de crime, tal como se encontra configurado, não passa indemne ao princípio da presunção de inocência», pois que «a formulação do tipo não impede o entendimento de que verificada a incongruência entre o património e o rendimento, ela é qualificada de enriquecimento ilícito sem ser feita a demonstração positiva da ausência de toda e qualquer causa lícita.Tenha-se presente, aliás, que sendo o elenco de causas lícitas aberto e potencialmente inesgotável, sempre se poderia entender que a exigência de demonstração positiva da sua ausência afectaria quase irremediavelmente a operacionalidade do tipo. Assim lidas as normas incriminadoras, está-se a presumir a origem ilícita da incompatibilidade e a imputar ao agente um crime de enriquecimento ilícito, o que redunda em manifesta violação do princípio da presunção de inocência, determinando, portanto, a inconstitucionalidade das normas em causa.»
Debalde previa, assim, o artigo 10º do decreto inconstitucionalizdo que: «Compete ao Ministério Público, nos termos do Código do Processo Penal, fazer a prova de todos os elementos do crime de enriquecimento ilícito». É que sobre essa norma, em função da qual a violação da regra da presunção poderia ser, afinal, aferida, considerou o Acórdão do TC: «Por último, resta uma sucinta referência à norma constante do “artigo 10.º”, tendo em atenção a questão suscitada pelo requerente. Ora, o tratamento autónomo de tal questão carece de qualquer razão útil, estando, por isso, manifestamente prejudicado pela solução a que se chegou.». Ou seja, a violação da presunção de inocência foi encontrada na formulação dos tipos, não na regra de processo. O que quer dizer que, assim haja tipos penais formulados com concisão, assim o TC viabilizará a inversão do ónus da prova por não estar então em causa a presunção de inocência. 
Isto porque os Conselheiros subscritores do Acórdão, considerando «não ser fácil determinar o sentido do princípio da presunção de inocência» - e em abono de tal constatação citam Vital Moreira e Gomes Canotilho - louvam-se em Fernanda Palma para afirmarem deve ter-se por certo que a sua concretização há de levar em conta o ambiente axiológico específico deste terreno dogmático e a particular estrutura de onde o mesmo desponta».
Ora é por se tratar de um princípio que não é fundamental se não ante o ambiente em que se suscite, uma regra constitucional que não é absoluta mas relativa, que a presunção da inocência foi chamada à colação, com a particularidade de não ter sido sequer definida decisão sobre a sua pertinência ao caso, bem antes pelo contrário, afastado o seu relevo pelo princípio da preclusão.
O que só pode trazer mau augúrio no bojo.

+

Eis as normas que foram sujeitas ao juízo de conformidade constitucional:

Artigo 1.º [27.ª alteração ao Código Penal]

1 - É aditado à secção II do capítulo I do título V do livro II do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro, e alterado pela Lei n.º 6/84, de 11 de maio, pelos Decretos-Leis n.ºs 101-A/88, de 26 de março, 132/93, de 23 de abril, e 48/95, de 15 de março, pelas Leis n.ºs 90/97, de 30 de julho, 65/98, de 2 de setembro, 7/2000, de 27 de maio, 77/2001, de 13 de julho, 97/2001, 98/2001, 99/2001 e 100/2001, de 25 de agosto, e 108/2001, de 28 de novembro, pelos Decretos-Leis n.ºs 323/2001, de 17 de dezembro, e 38/2003, de 8 de março, pelas Leis n.ºs 52/2003, de 22 de agosto, e 100/2003, de 15 de novembro, pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, e pelas Leis n.ºs 11/2004, de 27 de março, 31/2004, de 22 de julho, 5/2006, de 23 de fevereiro, 16/2007, de 17 de abril, 59/2007, de 4 de setembro, 61/2008, de 31 de outubro, 32/2010, de 2 de setembro, e 40/2010, de 3 de setembro, o artigo 335.º-A, com a seguinte redação:

“Artigo 335.º-A [Enriquecimento ilícito]

1 - Quem por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por património todo o ativo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, ações ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito, bem como as despesas realizadas com a aquisição de bens ou serviços ou relativas a liberalidades efetuadas no país ou no estrangeiro.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entendem-se por rendimentos e bens legítimos todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada.
4 -Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 não exceder 100 salários mínimos mensais a conduta não é punível.
5 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 exceder 350 salários mínimos mensais o agente é punido com pena de prisão de um a cinco anos.”

2 -A secção VI do capítulo IV do título V do livro II do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro, e alterado pela Lei n.º 6/84, de 11 de maio, pelos Decretos-Leis n.ºs 101-A/88, de 26 de março, 132/93, de 23 de abril, e 48/95, de 15 de março, pelas Leis n.ºs 90/97, de 30 de julho, 65/98, de 2 de setembro, 7/2000, de 27 de maio, 77/2001, de 13 de julho, 97/2001, 98/2001, 99/2001 e 100/2001, de 25 de agosto, e 108/2001, de 28 de novembro, pelos Decretos-Leis n.ºs 323/2001, de 17 de dezembro, e 38/2003, de 8 de março, pelas Leis n.ºs 52/2003, de 22 de agosto, e 100/2003, de 15 de novembro, pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, e pelas Leis n.ºs 11/2004, de 27 de março, 31/2004, de 22 de julho, 5/2006, de 23 de fevereiro, 16/2007, de 17 de abril, 59/2007, de 4 de setembro, 61/2008, de 31 de outubro, 32/2010, de 2 de setembro, e 40/2010, de 3 de setembro, passa a denominar-se “Enriquecimento ilícito por funcionário”, sendo composta pelo artigo 386.º, que passa a ter a seguinte redação:

“Artigo 386.º [Enriquecimento ilícito por funcionário]

1 - O funcionário que, durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por património todo o ativo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, ações ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito, bem como as despesas realizadas com a aquisição de bens ou serviços ou relativas a liberalidades efetuadas no país ou no estrangeiro.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entendem-se por rendimentos e bens legítimos todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada, designadamente os constantes em declaração de património e rendimentos.
4 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 não exceder 100 salários mínimos mensais a conduta não é punível.
5 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 exceder 350 salários mínimos mensais o agente é punido com pena de prisão de um a oito anos.”

3 -A atual secção VI do capítulo IV do título V do livro II do Código Penal passa a ser a secção VII, sendo composta pelo atual artigo 386.º, que passa a ser o artigo 387.º.

(...)

Artigo 2.º [Quinta alteração à Lei n.º 34/87, de 16 de julho]

É aditado à Lei n.º 34/87, de 16 de julho, alterada pelas Leis n.ºs 108/2001, de 28 de novembro, 30/2008, de 10 de julho, 41/2010, de 3 de setembro, e 4/2011, de 16 de fevereiro, o artigo 27.º-A, com a seguinte redação:

“Artigo 27.º-A

Enriquecimento ilícito

1 - O titular de cargo político ou de alto cargo público que durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património, sem origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por património todo o ativo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o património imobiliário, de quotas, ações ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito, bem como as despesas realizadas com a aquisição de bens ou serviços ou relativas a liberalidades efetuadas no país ou no estrangeiro.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entendem-se por rendimentos e bens legítimos todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada, designadamente os constantes em declaração de património e rendimentos.
4 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 não exceder 100 salários mínimos mensais a conduta não é punível.
5 - Se o valor da incompatibilidade referida no n.º 1 exceder 350 salários mínimos mensais o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.”

(...)

Artigo 10.º

Prova

Compete ao Ministério Público, nos termos do Código do Processo Penal, fazer a prova de todos os elementos do crime de enriquecimento ilícito».

Enriquecimento ilícito

Não se trata necessariamente da inversão do ónus da prova em processo criminal no que se refere à criminalização do enriquecimento ilícito; trata-se, outrossim, do dever de declaração da origem de património que não tenha correspondência nos rendimentos declarados. Dever cujos primeiros obrigados são todos os que abraçam a vida pública.
Discutível é que o legislador estabeleça, ante a ausência de explicitação, uma presunção de origem ilícita desse património não havendo sequer crime precedente que lhe pudesse ter dado origem. 
Porque este [o da necessidade de crime precedente] é o sistema do artigo 7º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro [texto integral aqui], cuja constitucionalidade o Tribunal Constitucional salvou.
Aguardemos a arquitectura da solução.

Enriquecimento ilícito: o porquê da dúvida

[Para não nos limitarmos ao que vem na imprensa e recorrendo ao melhor rigor das fontes oficiais, até porque estamos entre juristas] está aqui o historial e a versão final do Decreto n.º 37/XII, aprovado pela Assembleia da República, que legisla sobre a criminalização do enriquecimento ilícito. E está aqui a nota oficiosa emitida pela Presidência da República que comunica que o Chefe do Estado suscitou a fiscalização preventiva da constitucionalidade do diploma.
De acordo com essa comunicação: «Atendendo às diversas questões suscitadas em torno da constitucionalidade deste diploma, que pode pôr em causa princípios essenciais do Estado de direito democrático, entendeu o Presidente da República que a sua entrada em vigor deve ser precedida da intervenção do Tribunal Constitucional, por forma a que a criminalização do enriquecimento ilícito se processe sem subsistirem dúvidas quanto a eventuais riscos de lesão dos direitos fundamentais de todos os cidadãos.»
Uma faceta ressalta: num assunto com esta gravidade como o da (in) constitucionalidade do diploma sobre o enriquecimento ilícito, era de se supor, se não de se exigir, que que a Presidência explicitasse o porquê da sua iniciativa de remissão do assunto para o Tribunal Constitucional. Até precisamente em função das questões suscitadas, da sua natureza e seriedade. Assim fica aberta a porta à especulação sobre a atitude presidencial, se jurídica, se política.

Enriquecimento ilícito: o que se passa no subterrâneo

Na Faculdade tinha um professor - vá lá eu lembrar-me agora quem era - que com a ajuda de um grito se necessário, quando tentávamos responder à toa ou de cor a qualquer pergunta, nos dizia: «abra o Código, homem!» [na altura mulher era ser raro por aqueles lados].
Ao ver muito do que se comenta por aí, mesmo vindo da boca de pessoas com responsabilidades, concluo que foi hábito que se perdeu. Lêem num jornal e aí vai comentário e discussão e polémica. E depois, ante o desmentido e a rectificação, por vergonha abstêm-se de voltar ao assunto.
Foi talvez por isso que fui aqui saber como estava o diploma sobre o enriquecimento ilícito. 
É que as discussões sobre leis em Portugal têm este itinerário: berra-se e grita-se ante a ideia, sem conhecer muitas vezes o texto, perde-se tudo de vista quando o processo legislativo se afunda no subterrâneo das comissões parlamentares onde surgem as vírgulas, os parágrafos, as entradas em vigor, a remessa para a regulamentação e outros instrumentos de legisferação que tornam uma coisa numa outra coisa e volta-se a gritar quando se lê no Diário da República, com surpresa o produto final.
O resultado está aqui, um quadro comparativo, para quem se quiser dar ao trabalho de ler. «Abra o Código, homem!»... [ou mulher].

Sem beliscar

O Procurador-Geral da República, em discurso, num evento organizado pelo DCIAP disse três coisas:

Primeira, a propósito do MP: «O Ministério Público é composto por magistrados e, por isso, não pode esquecer regras essenciais da democracia».

Segunda, a respeito dos OPC's e outros órgãos da Administração: «Há, pois, que repensar o tipo de articulação e de colaboração entre o Ministério Público e aquelas entidades, potenciando o diálogo e a comunicação entre uns e outros, de modo a encontrar um ponto ideal de cooperação que, sem beliscar as atribuições próprias de cada um, permita a interacção necessária a um melhor exercício das mesmas – com todas as vantagens que daí advirão para a comunidade, para o cidadão e para uma melhor e mais atempada administração da justiça».

Enfim, sobre o enriquecimento ilícito, que: «É evidente que a figura do enriquecimento ilícito, a ser aprovada, facilitará a investigação de vários casos de corrupção, além de ser uma figura que é largamente popular, por ser evidente para grande parte da população que existem em Portugal claros casos de enriquecimento não justificado. Mas, não podemos esquecer, como magistrados que somos, que haverá que respeitar os princípios constitucionais do ónus da prova e da presunção da inocência. De nada servirá aprovar uma lei que os tribunais depois considerem inconstitucional. É fundamental conseguir o equilíbrio, o que, reconhece-se não é fácil».

P. S. Mais acrescentou que: «O Conselho Superior do Ministério Público remeterá à Assembleia da República o seu parecer sobre a projectada lei». [Não está aqui, onde estará?].

Enriquecimento ilícito: o pau e a pedra

Publiquei aqui o link para os textos dos projectos de diplomas sobre a criminalização do enriquecimento ilícito. O blog Porta da Loja trouxe-me, pois não tinha reparado, um artigo que o professor Costa Andrade publicou num jornal sobre a matéria e que pode ler-se aqui e que o blog citado comenta aqui.
A ideia geral é que já tínhamos lei que chegasse. Talvez. Mas a regra é conhecida: quando se não sabe acertar com o pau, tenta-se aprender a atirar a pedra.

Enriquecimento ilícito

De preferência ir à fonte. Porque os relatos muitas vezes são equívocos, erróneos, parcelares quando não distorcidos. Eis os documentos discutidos na sessão parlamentar sobre o enriquecimento ilícito, aqui. Quanto à discussão parlamentar, veja-se o vídeo aqui [procurar em «arquivo», no dia 23 de Setembro].
É que ao menos se discutam factos não impressões. Sobretudo entre juristas, em matéria de Direito.