Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Junção de documentos em recurso penal?

Tema relevante é saber se é admissível a junção de documentos em sede de recurso penal, por eventual aplicação analógica, para integração de lacuna, do preceituado no Código de Processo Civil e isto por acção do artigo 4º do Código de Processo Penal.

Sobre este tema, o Acórdão da Relação de Évora de 18 de Fevereiro de 2020 [proferido no processo n.º 73/15.1GHSTC.E1, relator Martinho Cardoso, texto integral aqui] sentenciou: 

«Os art.º 425.º e 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que em certas condições permitem a junção de documentos com as alegações dos recursos cíveis, não têm aplicação no processo penal por via do art.º 4 deste último código, por não se tratar de caso omisso.»

Para a compreensão do tema, citem-se aqueles preceitos do Código de Processo Civil:

-» Artigo 425º: «Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.»

-» Artigo 651, n.º 1: «As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.2 - As partes podem juntar pareceres de jurisconsultos até ao início do prazo para a elaboração do projeto de acórdão.»

Ora a fundamentar o decidido, expressou-se assim o Acórdão nesta parte da sua fundamentação:

«Diz o art.º 165.º, n.º 1, que o documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência. Da audiência da 1.ª Instância.
O processo penal vigente caracteriza-se por uma filosofia de parificação do posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os seus actos e de igualdade material de "armas" no processo.

Tal significa que a apresentação de um documento, seja pela acusação ou pela defesa, tem de ser sujeita ao contraditório e pode suscitar as mais variadas reacções de contraprova pela parte contrária. Ora essa actividade tem que ter lugar na 1.ª Instância e não nesta Relação, que não possui mecanismo processual adequado a lidar com essa situação.

Daí que qualquer documento só possa ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, excepcionalmente, não sendo isso possível, deve sê-lo então até ao encerramento da audiência da 1.ª Instância.

Os art.º 425.º e 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que em certas condições permitem a junção de documentos com as alegações dos recursos cíveis, não têm aplicação no processo penal por via do art.º 4 deste último código. O art.º 4 destina-se a suprir os casos omissos e o caso que estamos a tratar está expressamente regulado nos art.º 164.º e 165.º do Código de Processo Penal; não se trata pois de um caso omisso. O legislador é que deliberadamente não quis para o processo penal o regime contido nos mencionados art.º 425.º e 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Senão tinha-o importado.

De resto, se o arguido não esteve presente em julgamento por forma a apresentar quaisquer documentos que lhe interessassem, foi porque não quis, uma vez que estava notificado das datas do mesmo e faltou até sem apresentar justificação.

(Sobre o assunto: Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, 16.ª ed. , pág. 391; Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal (…)”, 3.ª ed. , pág. 447; “Código de Processo Penal, Comentários e Notas Práticas dos Magistrados do M.º P.º do Distrito Judicial do Porto”, pág. 428; e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10-2-1994 e de 30-11-1994, Colectânea de Jurisprudência dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1994, respectivamente tomo I-227 e tomo II-262; e, agora em www.dgsi.pt, acórdão da Relação do Porto de 11-6-2008, proferido no processo 0842171 e do STJ de 22-10-2008, processo 08P2832).»

Recorribilidade directa dos despachos

Verdadeira ratoeira processual o saber-se se os despachos são passíveis de recurso directo ou se o mesmo só é admissível quanto a decisões proferidas que desatendam a arguição da invalidade dos mesmos.
Tornando claro que a cautela é de rigor, o Acórdão da Relação de 9 de Março de 2020 [proferido no processo nº 170/19.4GAPTB-A.G1, relator Armando Azevedo, texto integral aqui] determinou, como foros de generalidade que: «apenas a nulidade da sentença e não também dos meros despachos é legalmente possível suscitar diretamente por via da interposição de recurso, cfr. nº 2 do artigo 379º do CPP, segundo o qual “As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso…”.»
Nesta lógica restritiva, os despachos apenas admitem recurso directo quando houver sobre isso previsão  legal expressa.

MDE e garantias exigíveis

Clarificando o âmbito e o alcance do mandado de detenção europeu, o Acórdão da Relação de Évora de 18 de Março de 2020 [proferido no processo n-º 103/19.8YREVR, relator Renato Barroso, texto integral aqui] estatuiu:


«I - O objectivo de um MDE destinado à entrega do requerido para procedimento criminal não se resume à mera transferência de pessoas para interrogatório na qualidade de suspeitos, pois para este efeito, outras medidas existem, em alternativa, como a decisão europeia de investigação, que pode ser utilizada para obter provas provenientes de outro Estado-Membro e que abrange qualquer medida de investigação, incluindo o mero interrogatório do suspeito no âmbito de um procedimento criminal no qual ainda não foi deduzida a acusação, o qual pode até ser feito através de videoconferência, a fim de determinar se deve, ou não, ser emitido, posteriormente, um MDE tendo em vista julgamento.

«II - O caso de um MDE em que se solicita a entrega do requerido para procedimento criminal é algo de diferente, abrangendo, também, a fase de julgamento.

«III - O pedido de entrega de um individuo para efeitos de procedimento criminal, implica, necessariamente, que a sua devolução ao Estado de que é natural ou residente, apenas aconteça, após a sua audição em julgamento, se a tal houver lugar, pois não se concebe que este corra à sua revelia.»

A consequência prática desta interpretação ressalta a nível das garantias exigíveis:

«Daí que, nestes casos, se aplique, por inteiro, a obrigatoriedade da prestação, por parte do Estado-Membro requerente, da garantia prevista no nº3 do Artº 5 da Lei-Quadro 2002/584/JAI e que foi vertida no nosso ordenamento jurídico na al. b) do nº1 do Artº 13 da Lei 65/03 de 23/08, no sentido de a pessoa procurada ser devolvida ao seu país de origem ou de residência, para cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade, caso venha a ser condenada no julgamento relativo ao procedimento criminal que gera o MDE.

É certo que se desconhece, em concreto, o estado do inquérito em causa, ainda que, tanto quanto se saiba, não foi proferida qualquer acusação contra o arguido.

Mas o pedido de entrega de um individuo para efeitos de procedimento criminal, implica, necessariamente, que a sua devolução ao Estado de que é natural ou residente, apenas aconteça, após a sua audição em julgamento, se a tal houver lugar, pois não se concebe que este corra à sua revelia. (Cfr., neste sentido, Acórdão do STJ, de 20/06/12, proc. 445/12.3YRLSB.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Ora, essa foi, precisamente, a garantia assegurada pelas autoridades austríacas, no sentido de devolver o arguido a Portugal - país onde reside desde os 3 anos de idade, tendo autorização de residência permanente válida até 09/12/2027, aqui trabalhando e tendo toda a sua família - assim que for ouvido, em audiência de julgamento, com vista ao cumprimento da eventual pena da medida de segurança em que venha a ser condenado.

Nessa medida, a garantia prestada pelo Estado emitente do mandado, preenche o conteúdo material da garantia preconizada pelo nº3 do Artº 5 da Lei-Quadro 2002/584/JAI e al. b) do nº1 do Artº 13 da Lei 65/03 de 23/08.»




Requisitos do RAI

O entendimento estava de há muito adquirido: a instrução, pois tem de ter objecto factual e jurídico e não podendo correr contra incertos, até por não ser uma outra fase de investigação - os actos de instrução têm carácter subsidiário face à sua finalidade - obrigam a que o requerimento respectivo esteja adstrito a requisitos específicos. Eis o que rememorou o Acórdão da Relação de Évora de 18 de Março de 2020 [proferido no processo n.º 1710/18.1T9FAR.E1, relator Alberto Borges, texto integral aqui].
Na sua fundamentação, o aresto lembra que «o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a questão da constitucionalidade da norma do artigo 283 n.º 3 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas, tendo declarado a sua não inconstitucionalidade (veja-se, entre outros, o acórdão n.º 358/04 desse Tribunal, publicado na II Série do DR n.º 150, de 28 de junho de 2004).»

Branqueamento de capitais: o fim das três fases necessárias


Uma perspectiva sobre o crime de branqueamento de capitais que reconfigura a sua categorização clássica: onde o mesmo se caracterizava pela existência de três etapas, tidas como necessárias para a sua verificação, agora, segundo este entendimento expresso pela da Relação do Porto no seu acórdão de 18 de Março [proferido no processo 1551/19.9T9PRT.P1, relator Moreira Ramos, texto integral aqui], secundando a perspectiva do mesmo Tribunal em decisão de 18 de Julho de 2013, para a realização do tipo de ilícito basta qualquer uma.

É este o sumário do decidido: «I – O crime de branqueamento de capitais p. e p. pelo art.º 386º-A do Código Penal [manifesto lapso de escrita, trata-se do artigo 368º-A] tem vindo a sofrer diversas algumas alterações, não exigindo actualmente que uma determinada conduta abranja as denominadas três fases ou etapas que constituem as modalidades de acção de branqueamento, a saber, a colocação, a circulação e a integração, bastando-se com a prática de qualquer delas.»

Jurisprudência criminal: ponto de situação

Na medida do possível há que retomar a normalidade. Fui rever o estado da jurisprudência publicada na dgsi [esse iceberg como alguém já mencionou, que traduz uma parte apenas da jurisprudência produzida] e eis, para já o ponto de situação:

-» STJ: 31 de Dezembro de 2019 [incompreensível, diga-se o atraso]: ver aqui
-» TRC - 6 de Março de 2020: ver aqui
-» TRE - 18 de Março de 2020: ver aqui
-» TRG - 9 de Março de 2020: ver aqui
-» TRL - 5 de Março de 2020: ver aqui
-» TRP - 18 de Março de 2020: ver aqui

Segunda etapa será visitar cada um dos espaços e ir anotando aqui o que me for possível.

Abolir o estatuto de assistente?

Se há estatuto ambíguo no nosso Direito ele é o de assistente. Distingue-se teoricamente do lesado mas na prática confunde-se com ele. Os seus contornos jurídicos são fluídos e assim tem ficado à mercê das interpretações jurisprudenciais. 
Exemplo, o que se passou com a denúncia caluniosa, em que começou por ser negada a possibilidade de os caluniosamente denunciados serem constituídos como tal nos processos-crime pelos quais pretenderam a punição do caluniador, por se entender que era um crime contra a justiça e, por isso, atacados, embora, num direito constitucional, não poderiam ter um estatuto processual cuja natureza era estritamente penal e assim lhes negava o direito de actuação; foi preciso uma segunda reflexão para enfim, uma nova visão das coisas junto dos tribunais superiores, se abrir a possibilidade dessa assistência.
Por outro lado, mau grado a fórmula legislativa segundo a qual eles actuam subordinadamente ao Ministério Público de quem são colaboradores [artigo 69º, n.º 1 do CPP], a verdade é que a própria lei lhes reconhece zonas de actuação sem o Ministério Público e contra o Ministério Público: assim podem requerer instrução contra a posição do Ministério Público [artigo 287º, n.º 1, b) do CPP], podem recorrer mesmo que o Ministério Público não recorra [artigos 69º, n.º 1, c) e 401º, n.º 1, b) do CPP].
Neste território de incerteza jurisprudencial, resultante de falta de uma estrutura jurídica coerente que oriente nesta matéria, avultam zonas do processo em que ou pode ser concedia ou negada a constituição como assistente [exemplo ao crime de falsificação, mesmo quando instrumental da burla], ou em que pode ser rejeitado o recurso do assistente [assim o recurso quanto à medida da pena].

Creio não errar ao escrever que a figura do assistente é privativa do nosso Direito processual penal, porquanto o que é regra no Direito Comparado é ser admitido no processo penal o lesado, aquele que sofreu danos resultantes de um crime, para que possa aí fazer valer os seus direitos; e hoje estar franqueada também a intervenção a vítima, essa sim, a figura processual com substância e que deveria ter relevo consumindo a de assistente, mas que tem a magreza de meios processuais de intervenção que lhe confere o artigo 67º-A do CPP.

Não se estranha pois que tenha sido necessário chegar-se ao Supremo Tribunal de Justiça e neste à definição por uniformização de jurisprudencial através do Acórdão de 13 de Fevereiro  [publicado hoje no Diário da República n.º 61/2020, Série I de 2020-03-26, texto integral aqui]; o que espanta [com o devido respeito] é ter sido possível pensar-se o contrário, sobretudo ante a injustiça que uma tal interpretação, ora derrotada,  significaria.

Definiu agora, enfim, o Supremo Tribunal de Justiça [mesmo assim com dois votos de vencido], consagrando a jurisprudência que já era maioritária nesse tribunal: 


«O assistente, ainda que desacompanhado do Ministério Público, pode recorrer para que a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado fique condicionada ao pagamento, dentro de certo prazo, da indemnização que lhe foi arbitrada».

O acórdão fundamenta o decidido. Mas fica o que há pouco referi: quer isto dizer que a interpretação adversa, que assim ficou vencida, permitia que aquele que via na suspensão da pena a única possibilidade de reparação do sofrido pelo crime, e via a sentença que a decretou desconsiderar essa faceta, não poderia suscitar a intervenção dos tribunais superiores desde que o Ministério Público se desinteressasse com tal problema do cidadão e não recorresse? Sim, porque se entendia que na suspensão da pena estavam em causa valores estritamente penais [e não temas ressarcitórios privados].

A defesa dessa posição, assim se colhe num dos voto de vencido, assenta numa visão puramente conceptual da realidade.

Consta desse voto: «A aplicação duma pena de substituição está sujeita à verificação de pressupostos específicos, nomeadamente os respeitantes a considerações de prevenção especial de socialização e de defesa do ordenamento jurídico. Quando o assistente pretende, através do recurso interposto, que se condicione a suspensão de execução da pena ao pagamento duma indemnização dentro de um determinado prazo, não pretende discutir qualquer um daqueles pressupostos, mas única, e simplesmente, munir-se de um meio reforçado de obter a defesa do seu direito. Visa um interesse particular e não um interesse colectivo.»

Ante uma tal posição, duas vias eram viáveis para se ultrapassar esta visão das coisas: ou mover o raciocínio dentro das categorizações jurídicas, e tantas vezes é nesse território que tudo se resolve, ou reagendar o tema primordial da finalidade punitiva ainda que por decorrência de uma pena de substituição e, sobretudo, numa lógica de protecção das vítimas. 

Isto, ante um problema que, na sua própria configuração patenteia um ilogismo: se [de acordo com certa jurisprudência] o estatuto de assistente tem natureza estritamente [processual] criminal [e daí tanta exclusão de candidatos a assistentes em relação a certos crimes], agora é a natureza civil do que pretendem [indemnização como injunção em caso de condenação do arguido a pena de substituição] que serve de fundamento para os rejeitar de um território onde estariam agora [em exclusivo] valores de cunho jurídico-penal.

Segundo a primeira perspectiva, a técnica, estará em causa na matéria o conceito de interesse em agir como complemento da noção de legitimidade processual e no caso legitimidade para a interposição de recurso. Ora, nesta vertente, a da configuração do interesse em agir como equivalente ao da "necessidade do recurso" [expressão cunhada por Paulo Pinto de Albuquerque], louva-se o acórdão que acompanho nas palavras de Cláudia Cruz Santos, segundo a qual o interesse em agir não existe apenas nas circunstâncias em que ele exprime uma pretensão ressarcitória que pretende que seja considerada na operação de determinação da pena em sentido amplo (ainda que nesses casos deva considerar-se que tal interesse de facto existe, na medida em que tal pretensão expressa a necessidade de encontrar uma resposta - no caso, a reparação - que considere justa para o mal de que foi vítima)», indo, contudo, essa Autora mais longe quando destaca que «enquanto assistente, ele tem o poder de procurar conformar a resposta à questão penal que engloba quer a questão da culpa, quer a questão da pena», caso a decisão seja contra ele proferida e tiver interesse em agir.

De acordo com a segunda vertente, e como o aresto do Supremo o refere expressamente, haveria que ultrapassar essa visão "redutora" e convocar dois ângulos de avaliação jurídica do tema, os quais têm a ver com a caracterização global do sistema.

Um, aquele que releva estar o dever de indemnizar, assim como os demais deveres que dão corpo às alíneas do n.º 1 do artigo 51.º do CP [respeitante à suspensão da pena], «para lá da função de reparação do mal do crime, visam, também, a realização dos fins das penas, conforme a doutrina e jurisprudência vária têm assinalado.», ou seja, que o tema da indemnização em processo penal está, afinal, numa lógica de convergência com as finalidades jurídico-penais não sendo uma outra realidade a elas estranha.

Outro dos ângulos é o que releva a protecção da vítima, noção sistematicamente clamada em nome dos nobres princípios mas reiteradamente desconsiderada por critérios que na prática os desconsideram. É tese que, no desenvolvimento argumentativo do caso, surge como a mais frágil, [mas não irrelevante] porquanto assenta nesta equação «embora a figura da vítima se não confunda com a do assistente (este, enquanto sujeito processual), ambas as figuras coexistem, as mais das vezes, na mesma pessoa» o que significa que se vai buscar tutela para este [assistente] em função da consideração daquela [vítima], o que seria idêntico e como tal discutível a valorar-se de modo idêntico se a equação fosse lesado/assistente em termos de conferir a este direitos em nome da tutela daquele.

Ora é chegados a este ponto que definitivamente o tema nuclear se me colocado: é tempo de rever o conceito de assistente, ao limite abolindo-o em prol de uma potenciação processual do estatuto de vítima e de clarificação do de lesado.

A figura está desautorizada, até pela sua régia concessão, por via legislativa e generalizada complacência jurisprudencial, a todos, sem qualquer relação substancial com o objecto do processo e até para a prossecução de outras finalidades [a de informar jornalisticamente, por exemplo] se prevalecem do acesso a tal instituto relativamente a um largo espectro de crimes [artigo 68º, n.º 1, e) do CPP].

Para além disso, as zonas diluídas quanto à sua caracterização, como acima aflorei, prestam-se a decisões jurisprudenciais contraditórias que, se os teóricos consideram interessantes para as suas análises académicas e até demonstração da vivacidade do Direito, são, em suma, injustiça e desprestígio para os tribunais.

E de resto sejamos claros: concebido historicamente como forma de garantir a sindicabilidade indirecta do Ministério Público, meio que foi em momentos difíceis da nossa vivência judiciária de garantir que certos processos chegassem, enfim, a julgamento [assim em 1972, precisamente por intervenção do STJ] ante «amnistias administrativas do Ministério Público» [a expressão é do Emygdio da Silva], o estatuto de lesado acaba por se tornar, perversamente, a forma de o lesado [despojado estaria se o não fizesse] motorizar o processo penal para, no final, buscar as magras indemnizações que são, aliás, o apanágio dos nossos tribunais.

Tudo isto está mal. E quando um edifício tem erros ao nível da sua estrutura, não se estranhe que surjam fendas nas paredes e ameace ruína.

Covid-19 e flexibilização fiscal


A Autoridade Tributária informa no seu site:

«Perante a situação epidemiológica que o país atravessa e na tentativa de minimizar os seus efeitos, face ao calendário fiscal, às obrigações de pagamentos para o segundo trimestre de 2020 e às demais obrigações fiscais, foram adotadas as seguintes medidas:


O pagamento especial por conta (PEC) de IRC a efetuar em março pode ser efetuado até 30 de junho de 2020. (Despacho n.º 104/2020 – XXII – SEAF)

A declaração periódica de rendimentos de IRC (declaração Modelo 22) do período de tributação de 2019, pode ser cumprida até 31 de julho de 2020. (Despacho n.º 104/2020 – XXII – SEAF)

O 1º pagamento por conta e 1º pagamento adicional por conta, ambos de IRC, a efetuar em julho, podem ser efetuados até 31 de agosto de 2020. (Despacho n.º 104/2020 – XXII – SEAF)

A aplicação do regime de justo impedimento no cumprimento das obrigações declarativas fiscais, relativamente a contribuintes ou contabilistas certificados, aplica-se nas situações de infeção ou de isolamento profilático declaradas ou determinadas por autoridade de saúde. (Despacho n.º 104/2020 – XXII – SEAF)

Aplicação do regime das férias judiciais aos prazos tributários que corram a favor dos contribuintes e que respeitem atos de interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como aos prazos para a prática de atos no âmbito dos mesmos procedimentos tributários (artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março).»

Declaração da Provedoria de Justiça ante a situação de emergência

É esta a declaração da Provedora de Justiça, emitida a 20 de Março, face à situação de emergência decretada pelo Presidente da República:

«Neste momento tão grave da nossa vida colectiva são muitos os cidadãos que se interrogam sobre o sentido e o alcance do Estado de Emergência, decretado no passado dia 18 por Sua Excelência o Presidente da República. As interrogações, associadas a naturais sentimentos de inquietação e apreensão, são em si mesmas mais que justificadas. Nunca antes, durante os quase quarenta e quatro anos de vigência da Constituição da República, se tinha sentido a necessidade de recorrer a este instrumento excepcional de ordenação das relações sociais. A necessidade surgiu agora.

O Provedor de Justiça, enquanto titular de uma instituição do Estado à qual está atribuída a função primacial de velar pelo cumprimento da legalidade democrática e pela defesa dos direitos dos cidadãos, tem a obrigação especial de elucidar todos aqueles que, com justificado motivo, se interrogam sobre os fundamentos e as características da particular situação jurídica que desde ontem vigora no nosso país. É neste contexto que se compreendem os esclarecimentos que se seguem.

1. O Estado de Emergência não implica a suspensão da Constituição. Pelo contrário: a possibilidade do seu decretamento é prevista pelo próprio texto constitucional (artigo 19.º), em certas situações extremas que ameacem gravemente o normal desenvolvimento da vida em sociedade. A calamidade pública é uma delas.

2. O Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, que declara por 15 dias o Estado de Emergência para todo o território nacional, fundamenta-se na verificação de uma situação de calamidade pública, ocasionada pelo surto pandémico associado à doença Covid-19.

3. A declaração do Estado de Emergência visa uma finalidade bem precisa. Consiste ela em proporcionar às autoridades públicas meios de direito excepcionais, diversos daqueles que estão ao seu dispor em situações de normalidade, para que o mais rapidamente possível se consiga debelar a calamidade que se abateu sobre a vida de todos nós. O Estado de Emergência não procura atingir outro fim que não seja o da reposição, mais breve quanto possível, da situação perdida de regularidade constitucional.

4. Para prosseguir tal finalidade, suspendem-se ou limitam-se nestas situações direitos e liberdades que exercemos quotidianamente, e, que por serem fundamentais, não poderiam ser suspensos por qualquer outro modo ou em quaisquer outras circunstâncias.

5. Estando em causa, face à presente calamidade pública, a necessidade imperiosa de se conter a propagação da doença Covid-19 e de assim se salvar vidas, os direitos e liberdades cujo exercício fica, a partir de agora, temporariamente suspenso são aqueles e apenas aqueles que o Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020 identifica. A liberdade de circulação em todo o território nacional, liberdade essa que sempre exercemos sem quaisquer restrições, encabeça a lista. Toda ela, porém, é justificada pela necessidade de se conter o risco de contágio da doença, e de permitir ao Governo – a quem cabe executar o Estado de Emergência – a gestão centralizada da crise, com a adopção das medidas necessárias para a prevenção e o combate da epidemia.

6. Uma vez que a Constituição se não encontra suspensa, como se não encontram suspensos os valores basilares da nossa democracia, prevê a Lei aqui aplicável – a Lei n.º 44/86, de 30 de setembro – que haja instituições em "sessão permanente", "com vista ao pleno exercício das suas competências de defesa da legalidade democrática e dos direitos dos cidadãos." A Provedoria de Justiça é uma delas, juntamente com a Procuradoria-Geral da República. Assim, todos os serviços do Provedor de Justiça, à excepção do atendimento presencial, se mantêm em plena actividade. Estamos prontos para responder a quaisquer perguntas, queixas ou reclamações que os cidadãos entendam dirigir-nos.

A declaração do Estado de Emergência é apenas um meio de que dispomos para fazer face ao perigo grave com que hoje somos confrontados. Só por si, não o erradicará. Por isso mesmo, não nos isenta da responsabilidade que cada um de nós deve assumir, perante si próprio e perante o seu próximo, na salvaguarda da saúde e da vida. O espírito de lealdade à comunidade à qual pertencemos, e o espírito de humanidade nas relações que entabulamos com todos os outros, guiar-nos-á na superação desta dura prova. 

A Provedora de Justiça,

Maria Lúcia Amaral
2020-03-20»

Despacho da PGR face à situação de emergência

Face à situação de emergência decretada por Decreto do Presidente da República e em função da menção nele expressa no que se refere à manutenção em funcionamento da Procuradoria Geral da República em sessão permanente e ao decretado pelo Governo no que respeita ao funcionamento dos serviços de justiça, a Procuradora Geral da República lavrou o seguinte despacho a 20 de Março:

«Considerando que foi decretado o estado de emergência nos termos do Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18 de março, e da Resolução da Assembleia da República nº 15-A/2020, de 18 de março; 

Considerando que, em tal contexto, a Procuradoria-Geral da República deve funcionar em “sessão permanente”, nos termos da lei; 

Considerando as regras constantes do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março e as constantes da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março e, bem assim, as medidas já anunciadas constantes da Resolução do Conselho de Ministros (ainda não publicada); 

Considerando, nesse enquadramento, a necessidade de adotar medidas ajustadas à atual conjuntura, ao nível da Procuradoria-Geral da República e da estrutura hierárquica do Ministério Público, tendo em vista a salvaguarda da segurança, da liberdade e dos direitos fundamentais dos cidadãos; 

Considerando, num quadro de concordância prática, as recomendações das autoridades de saúde e as orientações já estabelecidas no plano de contingência da Procuradoria-Geral da República e concretizadas nos planos de contingência das Procuradorias-Gerais Regionais, importa implementar medidas excecionais num plano de resposta à situação epidemiológica do novo coronavírus;

Considerando a sinalização das funções e tarefas e a identificação dos trabalhadores que nas diversas unidades orgânicas reúnem condições para operar em regime de prestação laboral de teletrabalho (nos termos do disposto no Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março); 

Considerando o imperativo de garantir o funcionamento dos serviços necessários, em correspondência com as atribuições legais da Procuradora-Geral da República e do Ministério Público e atendendo aos meios tecnológicos de informação e de comunicação disponíveis para assegurar esse desígnio; 

Determino: 

1. A Procuradoria-Geral da República e a estrutura hierárquica do Ministério Público continuam em funcionamento, nos termos da lei, na prossecução das suas atribuições essenciais e na salvaguarda da segurança, da liberdade e dos direitos fundamentais dos cidadãos. 

2. Deve maximizar-se o aproveitamento das vias de comunicação à distância, consoante os casos, dispondo a Procuradoria-Geral da República de uma “sala situação” para videoconferência e comunicações similares. 

3. Deve privilegiar-se o regime de teletrabalho sempre que tal se mostre possível e adequado à realização do serviço.

4. Quem, pela natureza das suas funções, não possa operar em regime de teletrabalho, num propósito de contenção dos riscos de contágio, mantém-se em disponibilidade permanente. 

5. O disposto nos números anteriores não preclude que se organize, designadamente num quadro de rotatividade e por sectores, a prestação de trabalho presencial de algumas pessoas, a fim de se garantir as tarefas que se mostrem essenciais ao cumprimento das atribuições da Procuradoria-Geral da República e do Ministério Público. 

6.1. Procede-se, de imediato, à constituição de um gabinete de acompanhamento e gestão do estado de emergência, no quadro das atribuições da Procuradoria Geral da República e do Ministério Público. 

6.2. A tal gabinete cabe assegurar o funcionamento, em sessão permanente, da Procuradoria-Geral da República, emitindo, sempre que necessário, as diretrizes que venham a revelar-se adequadas e estabelecendo a interlocução interna e externa que a natureza das situações reclame. 

6.3. A composição do gabinete é definida em despacho autónomo, ficando sujeita aos ajustamentos que a evolução da conjuntura impuser. 

7.1. Os Procuradores-Gerais Regionais, em articulação com as Magistradas Coordenadoras das Procuradorias Administrativas e Fiscais Norte e Centro e Sul, os Magistrados do Ministério Público Coordenadores de Comarca e os Diretores de DIAP Regionais e, bem assim, o Diretor do DCIAP adotarão as medidas consideradas necessárias para responder eficazmente aos desafios colocados 4 pela situação epidemiológica e sua evolução, no quadro de circunstâncias e concretas atribuições funcionais de cada unidade orgânica e em conjugação/articulação com os Juízes Presidentes/Órgãos de Gestão de Comarca e outros profissionais do foro. 

7.2. Deverão, ainda, ao nível regional e local, ser adotadas as medidas consideradas adequadas às circunstâncias, designadamente no que respeita à organização dos serviços, delimitação de prioridades, gestão de atos e forma ou local da sua realização, restrições de acesso, ou outras, sem prejuízo das orientações que venham a ser fixadas pelo Conselho Superior do Ministério Público nos termos do disposto no nº 9 do artigo 7º da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março. 

8. Estas medidas, de carácter excecional, vigoram de imediato e pelo prazo de 15 dias, sem prejuízo de eventual prorrogação ou revisão, caso a evolução da situação epidemiológica assim o justifique. 

Lisboa, em 20 de março de 2020 

A Procuradora-Geral da República (Lucília Gago)»