Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Extradição & CPLP: o critério da confiança


Ressaltam, pela exaustiva fundamentação os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, como este de 9 de Setembro de de 2021 [proferido no processo n.º 170/21.4YRPRT.S1- 3.ª Secção, texto cujo sumário pode ser encontrado aqui] de que seja relator o Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha.

No caso estava em causa a viabilidade de extradição de um cidadão brasileiro para o Brasil. Os temas de Direito que se suscitavam eram, por um lado, a questão processual de ter ocorrido omissão de pronúncia, por outro o princípio de confiança no Estado requerente, sendo a regra da confiança a que baliza as relações de reciprocidade que vigoram no campo da cooperação judiciária internacional. 

E neste particular, o acórdão sufraga este critério de abdicação valorativa estando em causa um país da CPLP, , que, ressalvado o respeito devido, me permito considerar discutível. É o que decorre do passo seguinte: «o STJ não pode arvorar-se em tutor da qualidade do respeito pelos Direitos de países que Portugal reconhece como parceiros (nomeadamente na CPLP) e a que velhos laços, sempre renovados, dão o epíteto de irmãos.»

Cita-se na íntegra: 

«I - O thema decidendum no presente recurso é a apreciação da matéria de direito do acórdão recorrido, proferido pelo tribunal da Relação do Porto, que deferiu a extradição do recorrente para a República Federativa do Brasil, aí acusado por crimes de “estelionato”. 

II - Numa linha, o recorrente, a finalizar as suas Conclusões, requereu audiência. Não cumpriu, assim, o determinado pelo art. 411.º, n.º 5 do CPP. O recorrente foi já ouvido (em 29-07- 2021), e vastamente tendo explicitado os seus pontos de vista, que se encontram, ex abundantia, esclarecidos. De qualquer forma, não cumpriu os requisitos legais, não havendo especificado os pontos da motivação do recurso que desejaria ver debatidos. 

III - Alega omissão de pronúncia (máx. XXIII, XXIV e XXV das Conclusões). Porém, a invocação de omissão de pronúncia não pode ser genérica, mas, ao invés, deve ser muito específica. cf., v.g., acórdão deste STJ, de 27-10-2010, proferido no Proc.º n.º 70/07.0JBLSB.L1.S1: “VII - (…) Na impugnação da matéria fáctica não basta mera referência ou indicação genérica dos pontos de facto e das provas dissonantes, mas deve especificar-se os concretos pontos de facto e as concretas provas que impõem decisão diversa.” Está bastante sedimentada a jurisprudência sobre alegadas e não verificadas omissões de pronúncia. Cf. Acs. STJ de 07-04-2016, Proc. 6500/07.4TBBRG.G2.S3, de 31- 05-2016, de 15-02-2017, Proc. 3254/13.9TBVCT.G1.S1, de 22-01-2019, Proc. 432/15.0T8PTM.E1.S1; de 10-02-2020, Proc. nº 35/18.7GBVVC. E1.S1; de 14-05-2020, Proc. n.º 498/18.0YRLSB.S1. Sumários de Acórdãos das Secções Criminais 6 Número 287 – Setembro de 2021.

IV - Em suma, só há omissão de pronúncia quando o tribunal deixou de se pronunciar sobre questões essenciais sobre que se deveria ter pronunciado (e não é uma tautologia), mandando até o princípio da economia processual e o de minimis… que se não perca nas florestas de enganos, ou nas selvas obscuras de algumas profusas e tautológicas ou derivativas argumentações, verdadeiros caminhos de floresta, que, por vezes, nem levam onde julgam conduzir (Holzwege) – sendas perdidas. Não avaliando aqui o caso concreto, a verdade é que as questões essenciais (ainda que, eventualmente, em certos casos, em termos hábeis ou de forma implícita em alguns elementos do iter) foram todas respondidas. 

V - O fulcro das alegações do recorrente, que não deixa de chamar de forma impressiva a atenção dos julgadores, mormente pela dramaticidade do horizonte que convoca (no limite prefigurando, prevendo, temendo, o seu próprio assassinato – o que corresponde a uma grave espada de Dâmocles) é, afinal de contas, uma nova questionação da matéria de facto. E não relevam significativamente, na argumentação, os factos por que se encontra acusado no Brasil (configurando crimes de estelionato – entre nós, burla), mas o espetro de futuras vinganças, retaliações, ou afins, que o recorrente associa a uma sua atividade civicamente legítima, eventualmente com contornos também políticos e ideológicos, que latamente se poderia integrar no âmbito de uma sua alegada denúncia de “corrupção”. 

VI - Porém, o STJ não pode arvorar-se em tutor da qualidade do respeito pelos Direitos de países que Portugal reconhece como parceiros (nomeadamente na CPLP) e a que velhos laços, sempre renovados, dão o epíteto de irmãos. Sobretudo se as ameaças de desrespeito concreto dos mesmos direitos são apenas conjeturais e potenciais. A questão (tal argumentário, mutatis mutandis) não é nova, nem sequer perante este STJ. V. Ac. STJ de 16-05-2019, citado aliás pelo acórdão recorrido. 

VII - Conforme o n.º 1 do art. 3.º da Convenção de extradição entre os Estados-Membros da CPLP, apenas não haverá lugar a extradição nos casos aí mencionados. Nenhum deles se verifica aqui. 

VIII - E é liminarmente relevante a impossibilidade de conhecimento da matéria de facto, de novo posta em causa, sob o manto da omissão de pronúncia, que, porém, não ocorreu. Cf. art. 434.º do CPP. 

IX - A decisão de extradição é feita com o escrupuloso respeito por cuidados quanto à ordem jurídica que requer a extradição. Evidentemente, fala-se no plano da Constituição formal e da ordem jurídica formal. Não seria curial agir de outra forma, seguindo uma narrativa de conjetura e alarme. Extraditar o recorrente pretende dar-lhe oportunidade de pleitear a sua inocência perante tribunais, ou de, se for o caso, pagar a sua dívida à sociedade. Não é levá-lo ao mundo da corrupção e do assassínio, mas colocá-lo na esfera da Justiça que, certamente, para mais sabendo dos seus receios (e do escândalo que seria se porventura viesse a ter razão), não deixará de devidamente o proteger. 

X - Além de que, como é sabido, tendo o Brasil, tal como Portugal, subscrito a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP, está aquele país obrigado a respeitar a regra da especialidade, segundo o qual uma vez entregue o requerido este não poderá ser perseguido, detido, julgado ou sujeito a qualquer outra restrição da liberdade por qualquer facto anterior à entrega diferente daquele que motivou a sua extradição – art. 14.°, n.° 1 da Convenção e art. 16.° da Lei 144/99. 

XI - Assim, a Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, Lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal, aplica-se, segundo o art. 1.º, n.º 1, al. a) à extradição. E o art. 3.º indica hierarquia normativa. Assim sendo, o normativo que se aplica, neste caso, antes de mais, é a respetiva Convenção da CPLP (Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), que teve o seu início de vigência Sumários de Acórdãos das Secções Criminais 7 Número 287 – Setembro de 2021 relativamente a Portugal em 01-03-2010, e fora aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 49/2008, de 15/09, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 67/2008, de 15/09. E só na sua insuficiência se aplicará o diploma em causa, e subsidiariamente as normas do CPP. 

XII - Portanto, a invocação de outros diplomas só pode ter um efeito muito subsidiário, eventualmente como fontes hermenêuticas inspiradoras (fontes mediatas). E sobretudo não parece de forma alguma proceder uma invocação contraditória com o julgado e a ele alternativa, nomeadamente da CRP, da CEDH, etc., contra a Convenção da CPLP. 

XIII - Deve presumir-se que o tribunal da Relação ponderou atenta e gravemente o que se encontra em jogo. E não teria agido de ânimo tão leve que se viesse no futuro a ter de conformar com um possível resultado trágico da sua decisão (que viesse a dar, ainda que parcialmente, apenas razão ao cenário pintado pelo recorrente), ao não ter qualquer dúvida na sua decisão. Não ficou, pois, persuadido, dos factos alegados nem dos argumentos apresentados, e no seu juízo não demonstrou qualquer vacilação ou vício que nos permitisse sem temeridade alterar a sua decisão. 

XIV - Porquanto, não se pode olvidar que a intervenção do STJ é, por norma, parcimoniosa e prudente, sobretudo de verificação da justeza das operações judicatórias das instâncias. Tal é muito óbvio na verificação da proporcionalidade das penas, mas não deixa de ser um pano de fundo e timbre de uma forma de intervenção (cf., de entre inúmeros, Ac. STJ de 2010-09- 23, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1). 

XV - A justiça não pode claudicar no seu exercício diuturno e normal, nem recuar com medo de que eventuais ou conjeturais injustiças (“a coragem é uma virtude democrática”, relembra Wolfram Eilenberger), em situação patológica, a possam vir a atacar ou aos que julga e assim também protege. Mesmo que possa haver situações residuais e eventuais derivas na vigência das respetivas ordens jurídicas, os Estados, para mais ligados por tratados internacionais de cooperação, têm a obrigação de honrar os seus compromissos (como sublinha enfaticamente Monique Chemillier-Gendreau), e, no caso da cooperação judiciária, jamais podem ser os tribunais a furtar-se a isso. Obviamente que sempre no respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, mesmo dos cidadãos arguidos, ou acusados ou condenados, naturalmente. Defendendo o direito e os direitos. Com confiança na justiça. 

XVI - Tudo considerado, pois, reitera-se que não houve qualquer omissão de pronúncia, nem poderá ser reapreciada a matéria de facto (a matéria de facto provada e não provada não permite subscrever a narrativa do recorrente), dado não se verificar nenhum dos vícios considerados no art. 410.º, n.º 2, do CPP. 

XVII - Acresce não se vislumbra existir em qualquer ordenamento jurídico alternativo aos considerados, com correta aplicação ao caso, base que sustente a pretensão concreta de não extradição (nem ao nível internacional, nem europeu, nem interno, nomeadamente constitucional). Mas ao cumprir-se o direito convencional que obriga do Estado Português (e o Brasileiro), em nada se contraria quaisquer daqueles ordenamentos. E obviamente não foi apenas o direito convencional o aplicado ao longo do Processo, foi também a Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, o CPP, direito nacional e aplicado conforme a referida hierarquia normativa vigente. 

XVIII - Mantém-se, assim, o acórdão recorrido e a decisão de extradição.»

Arguido preso e obrigado a comunicar a alteração de paradeiro


Há entendimentos que se julgariam impensáveis como aquele que o Acórdão da Relação de Guimarães de 25.10.2021 [proferido no processo n.º505/18.7GASEI.G1, relator Armando Azevedo, texto integral aqui] teve de rechaçar ao definir que:

«I- As obrigações impostas ao arguido por força do disposto no nº 3 do artigo 196º do CPP – obrigação de comparecer, comunicar a alteração do local onde possa ser encontrado - pressupõe necessariamente que o arguido se encontra em liberdade.
II- Por isso, o nº 3 als. b) e c) do artigo 196º do CPP, nunca poderá ser interpretado no sentido de que impenda sobre o arguido a obrigação de comunicar que se encontra preso. Neste sentido discorda-se da posição daqueles que defendem que o arguido preso está obrigado a comunicar a alteração da morada, isto porque o arguido não alterou a sua morada, simplesmente foi preso.
III- A circunstância de o arguido ser posteriormente preso – à ordem dos próprios autos ou à ordem de outro processo, pois que a lei não distingue as duas situações - tem como consequência que o arguido passa a ser notificado, em qualquer caso, através do E.P. onde se encontre, em conformidade com o disposto no artigo 114º, nº 1 do CPP.
IV- Não tendo o arguido sido regularmente notificado da acusação deduzida pelo M.P., nem do despacho que a recebeu e designou data para realização de audiência de julgamento, foi cometida a nulidade do nº 1 al. c) do artigo 119º do CPP.»

Branqueamento de capitais

 


Grato pela oportunidade em ter podido participar, em Albufeira, esta passada sexta-feira, em tão interessante encontro, tentei, em improviso, deixar dúvidas, sabendo que geraria controvérsia. 

Como é possível que, ante a incerteza quanto a tratar-se inquestionavelmente de um ilícito criminal de perigo abstracto ou de dano, de resultado ou mera actividade, a exigir dolo específico em todas as suas modalidades ou bastar-se com dolo genérico, se tenha por segura a incriminação por branqueamento de capitais, por mais que ela se banalize, nomeadamente assim surja no circuito uma entidade offshore por mais que se tente passar a ideias que nem todas elas estão ao serviço de actos de recorte criminal?

A juntar a isto, vem o tema do dito "bem jurídico". Até pela sua colocação sistemática, verifica-se que estará em causa o bom funcionamento da justiça. A ler o n.º 1 do preceito em causa - o artigo 368º-A do Código Penal - e perguntamo-nos se o dito "bem jurídico" - essa conceito mutante quando deveria ser delimitador - não é, afinal, a possibilidade de encontrar legitimação para se decretar a perda das vantagens do crime. 

E se a isso aditarmos que, em sede de prevenção de branqueamento, ressalta a ideia de que é a eficácia do sistema fiscal, a transparência do sistema financeiro, as regras do mercado, aquilo para o que existe tanta regulação de matriz europeia, e tão imprecisa ela é, então a demonstração do dito "bem jurídico" como circunscrito ao funcionamento da justiça, torna-se problemática.

Não terei, talvez, razão nas dúvidas, mas tenho motivos para as colocar. E assim sucedeu.


TCIC: ponto de situação da lei que o modificará

 


Fundamental seguir-se o ponto de situação da Proposta de Lei n.º 103/XIV/2.ª, sobre o Tribunal Central de Instrução Criminal, o que pode encontrar-se aqui, já instruído o processo legislativo com os pareceres, normativo que se encontra já na fase de redacção final.

Consta do preâmbulo da referida iniciativa legislativa governamental o seguinte, a propósito do que o próprio Governo reconhece ser «imperfeito grau de aleatoriedade na distribuição de processos e, por via disso, de uma indesejável personalização da justiça, o que não beneficia a adequada perceção pública da objetividade da ação da justiça»:


«O Tribunal Central de Instrução Criminal é, por excelência, aquele que concentra os mais importantes processos relevantes da criminalidade económico-financeira. A complexidade e sofisticação crescentes da criminalidade económico-financeira, assim como a sua considerável dispersão territorial, determinam a necessidade de reequacionar a organização judiciária em matéria de instrução criminal no município de Lisboa. E esse movimento não pode deixar de considerar o elevado grau de especialização do Tribunal Central de Instrução no combate àquele tipo de criminalidade. Por outro lado, a atual configuração deste tribunal tocante ao número de juízes que aí exercem funções é indutora de um imperfeito grau de aleatoriedade na distribuição de processos e, por via disso, de uma indesejável personalização da justiça, o que não beneficia a adequada perceção pública da objetividade da ação da justiça. Este contexto é agravado pela circunstância de os processos que correm naquele tribunal adquirirem, em regra, um elevado patamar de mediatização.

«Assim, respeitando a diferenciação e qualificação do Tribunal Central de Instrução Criminal e a sua competência nacional, importa adotar medidas que permitam ultrapassar os constrangimentos acima identificados. Neste contexto, a fusão, no Tribunal Central de Instrução Criminal, das competências nacionais que, já são suas, com as competências próprias do juízo de instrução criminal de Lisboa, com o consequente aumento do número de magistrados afetos ao primeiro, é a solução que surge como sendo a mais adequada a garantir a racionalização de meios necessária ao combate mais qualificado à criminalidade económico-financeira, mas também o reforço da confiança dos cidadãos no sistema de justiça.»

Contraordenação: a prova da fase administrativa


Território de ambiguidades, a viver entre normas remissivas para a lei penal e para a processual penal, afinal todas elas a aplicarem directamente princípios de natureza constitucional, mas ao mesmo tempo protegido pela noção imperscrutável da sua natureza específica, porquanto orientado à tutela de valores não penais mas de cunho administrativo, o Direito contraordenacional é um campo fértil para indeterminações e, ao limite, abuso: as garantias penais, já por si cada vez mais sujeitas a interpretações restritivas, surgem e desaparecem numa lógica de afeiçoamento à conveniência do que se quiser com elas alcançar ou obliterar. 

Através deste forma processual, que se quis em 1982 como sucedâneo às contravenções, podem aplicar-se coimas que chegam aos milhões de euros, e sanções a empresas que podem levar ao seu encerramento, o que torna insólita tratar-se de um Direito de "mera" ordenação social. Através deste tipo de Direito, cuja natureza ainda é controversa entre os doutores, o legislador permite-se descriminalizar zonas da vida que por esta forma pune com uma severidade de que o Direito Criminal não seria capaz.

Mas, no entanto, na fase administrativa do procedimento respectivo, joga-se o essencial quanto à aquisição da prova, já que a experiência demonstra em que medida o probatoriamente adquirido pela autoridade administrativa, sobretudo sendo autoridades de supervisão e regulação em áreas especializadas, se impõe na fase judicial, até por se tratar de matérias que, pelo seu tecnicismo escapam ao comum conhecimento dos juízes; mais, há lei a dar fundamento a que se recuse na fase judicial produção probatória que já haja sido obtida na fase administrativa, ainda que estando em causa o modo como a mesma foi ali captada ou a extensão do ali obtido.

Eis o que torna relevante o determinado pelo Acórdão da Relação de Évora de 21.09.2021 [proferido no processo n.º 259/20.7T8CCH.E1, relator Gomes de Sousa, co-subscritor António Condesso, texto integral aqui], quando nele se estatui: 


«1 - O processo contra-ordenacional não é um processo em que as entidades administrativas possam, sem mais, recusar a produção de prova.
«2 - A questão central é, primacial e especialmente, o apurar da necessidade de produção de prova requerida em função da matéria que consta do auto de notícia e da defesa do arguido. A necessidade de fundamentação – que igualmente se impõe – assume pois um papel adjuvante daquela “necessidade” de produção de prova.»

O teor argumentativo da fundamentação do aresto em causa, torna indispensável a sua transcrição, até pelo juízo crítico que nele está ínsito quanto ao que tem sido uma certa mentalidade reinante na jurisprudência a tal respeito:

«Nem é necessário demonstrar em toda a sua plenitude a característica de processo administrativo com natureza ultra inquisitória que parte relevante da jurisprudência – até desta Relação - habitualmente atribui ao processo contra-ordenacional. Segundo esta visão o arguido só é necessário para constar do auto de notícia e da decisão condenatória. A produção de prova por si arrolada pode ser um incómodo e um risco conducente a prescrição. A evitar, portanto!

Nós, evitando as versões inquisitórias – anquilosadas na medida em que olvidam toda a doutrina sobre a natureza do processo contra-ordenacional - sempre o entendemos de forma diversa, como um processo a que é aplicável a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. E isto já em aresto de 28-10-2008 (proc. nº 441/08-1) e nestes termos: (III) “O conceito de acusação em matéria penal contido no artigo 6º da CEDH, conceito com autonomia e que deve ser interpretado no sentido da Convenção, é interpretado pelo TEDH como abrangendo o direito contra-ordenacional”.

E assim se fundamentou: [1]

Não tem sido esse o sentido da jurisprudência do TEDH, que entende a expressão acusação em matéria penal (aliás, equivalente às contidas nos nsº 2 e 3 do mesmo preceito – “acusada de uma infracção” do nº 2 e “O acusado” do nº 3) com diferente amplitude.
E tal entendimento não surge por qualquer interpretação extensiva ou analógica por referência aos processos disciplinares (nomeadamente militares) da jurisdição austríaca (acórdão Engel v. Holanda - 1976) ou contravencional da jurisdição francesa (acórdãos Peltier v. França e Malige v. França), o que sempre seria possível, sim por referência à própria legislação alemã sobre contra-ordenações (Ordnungswidrigkeit).
De facto, já no citado aresto Engel o Tribunal veio a delimitar critérios que desenvolveu e repetiu nos acórdãos Ozturk v. Alemanha (1984) e Lutz v. Alemanha (1987). [5]
Não obstante o governo alemão ter defendido perante o Tribunal que o artigo 6º da convenção não era aplicável aos casos na medida em que não havia uma “acusação em matéria penal”, invocando que se estava perante contra-ordenações (“Ordnungswidrigkeit”, ou na terminologia do Tribunal Europeu, "regulatory offence" ou "contravention administrative"), certo é que acabou por concluir que o artigo 6º da convenção era aplicável.
Para concluir que estava perante uma acusação em matéria penal, conceito com autonomia e que deve ser interpretado no sentido da Convenção, o Tribunal utilizou os seguintes critérios: a qualificação jurídica da infracção no direito nacional; a verdadeira natureza do ilícito; a natureza e o grau de severidade da sanção.
O primeiro critério – qualificação no direito nacional – tem carácter meramente formal e relativo, simples ponto de partida da análise a envidar (Engel), à luz do “denominador comum das legislações respectivas dos diversos Estados”.
Os outros dois critérios não são cumulativos, sim alternativos, pelo que lhe bastou constatar que a verdadeira natureza da “infracção”, o carácter geral da norma, o seu objectivo simultaneamente preventivo e repressivo, assumiam natureza penal (Lutz), para concluir estarmos perante uma acusação em matéria penal.»

Verifica-se, pois, que o processo contra-ordenacional não é um processo em que as entidades administrativas, possam sem mais, recusar a produção de prova com o amém de tribunais tributários de um desejo de tratar tal processo como um procedimento administrativo que deveria ser excluído da ordem comum dos tribunais nacionais.

Bem ao invés, trata-se de um processo onde apenas a modorra legislativa tem impedido a sua divisão – que se revela essencial de há muitos anos – de procedimentos consoante a sua natureza e complexidade do assunto tratado e gravidade das suas sanções, sabidamente mais gravosas que muitas multas penais.

Seja como for, com maior ou menor complexidade do tema tratado e gravidade das suas sanções, o arguido tem direito à sua defesa em moldes semelhantes ao do processo penal (a tal “acusação em matéria penal” de que fala a C.E.D.H.).

E aqui os requisitos de produção de prova em pouco se dissemelham do processo penal, pois que será a necessidade da produção dessa prova em termos delimitados pela defesa do arguido a determinar a sua admissão ou não.

Por isso que sempre entendemos que não se trata de uma questão de fundamentação. Esse é apenas o segundo passo necessário!

O passo essencial e determinante é o saber se a produção da prova arrolada se revela necessária à defesa do arguido. E será em função disso que a sequente fundamentação terá que tratar, admitindo ou não a produção da prova arrolada na medida em que seja necessária para uma sã e razoável defesa do defendente.

Ou seja, para além da necessidade de fundamentar como mera decorrência do princípio da legalidade, a exigência maior situa-se na necessidade de cumprir o princípio de investigação e de descoberta da verdade material, que também nestes processos é uma exigência substancial e não apenas formal.

Por isso que não seja nossa opinião que as duas posições em confronto se limitem à existência da necessidade ou não de a entidade administrativa fundamentar ou não a não inquirição de testemunha arrolada (ou outra prova arrolada), nem – de outra banda – que sobre a entidade administrativa recaia o dever de obrigatoriamente realizar todas as diligências de prova requeridas.

A questão central é, primacial e especialmente, o apurar da necessidade de produção de prova requerida em função da matéria que consta do auto de notícia e da defesa do arguido. A necessidade de fundamentação – que igualmente se impõe – assume pois um papel adjuvante daquela “necessidade” de produção de prova.

Por isso que não tenhamos dúvida em subscrever o aresto desta Relação de Évora de 06-11-2018 citado pela Digna recorrente, entendendo no entanto que o teor do recurso não mostra ter entendido a subtil diferenciação entre “necessidade de fundamentação” da não inquirição da testemunha arrolada, da “necessidade de produção de prova para obter a verdade material”, coisas distintas mas que devem subsistir em conjunto no processo contra-ordenacional.

Por outro lado, não se mostra necessário que o RGCO preveja norma a impor a inquirição de testemunhas às entidades administrativas se já dispõe de norma que, nos termos do próprio acórdão por si apresentado em apoio do seu recurso afirma que “I - O art.º 50.º, do Regime Geral das Contra-Ordenações consagra o direito de audição e defesa do arguido. II – Esse direito de audição e defesa não se limita à possibilidade de o arguido ser ouvido no processo de contra-ordenação, abrangendo o direito de intervir neste, apresentando provas ou requerendo a realização de diligências”.

Esta afirmação da inexistência de lei expressa a prever a prática de acto de defesa, cuja essência deve surgir como natural num procedimento sancionatório e com óbvio respaldo constitucional e convencional, sempre surge como deslocada e excessiva, como se fosse exigência da ordem jurídica a obrigação de que a lei deve prever todos os passos dados pelas magistraturas e o que nela não está previsto deve entender-se como proibido ou inadequado, ou que o direito de defesa se deve entender como excluído se não estiverem previstas na lei todas as suas possíveis concretizações.

E em acórdão desta mesma Relação de Évora de 08-04-2014 citado em rodapé (processo 108/13.2TBCUB) «A não inquirição de uma testemunha indicada pelo arguido na fase administrativa não pode estar dependente da simples vontade da entidade administrativa e esta não pode, de motu proprio, decidir não inquirir a testemunha por razões que não têm a ver com a necessidade da sua inquirição para a defesa do arguido».

Sem esquecer que «O arguido, ou seu mandatário, deve ser notificado da data da inquirição de testemunhas para que tenha oportunidade de inquirir ou contra-inquirir a prova por si indicada, em observância do n.º 10 do art. 32,º da Constituição da República Portuguesa, norma directamente aplicável por dizer respeito a direitos fundamentais (art. 18.º, n.º 1, da Constituição)».

[1] - Veja-se ainda o Acórdão desta Relação de Évora de 08-04-2014 (processo 108/13.2TBCUB) de nosso relato.»

A abstenção


Durante anos têm-se propiciado debates públicos sobre temas jurídicos que se suscitaram a propósito de processos em que tinha participação profissional como advogado. 

Adoptei, desde há muito, como critério não intervir por duas razões: por poder considerar-se que aquilo que exprimisse em termos de ideias gerais no plano legal fossem, afinal, formas indirectas de estar a discutir o que em concreto estivesse a defender nesses processos e por admitir que, até por isso, não se tratasse de opinião credível, antes instrumental de um interesse.

Durante anos têm-se propiciado debates públicos sobre temas jurídicos que se suscitaram a propósito de processos em que não tive intervenção profissional como advogado. Aí, a recusa assentou na noção de que não conhecendo os processos, não me caberia, por respeito a mim, falar sobre o que ignoro, por respeito aos colegas não iria opinar sobre os processos em que tinham eles intervenção.

Em ambos os casos, não esteve ausente das minhas razões um preceito legal que é expresso no Estatuto da Ordem dos Advogados segundo o qual, enquanto advogados, estamos adstritos ao dever de reserva.

Quando desempenhei funções na Ordem dos Advogados questionei-me sobre se uma tal norma legal não se tinha tornado obsoleta, ante o que é torrencialmente vertido no espaço mediático, mesmo em detrimento do segredo de justiça, em detrimento das pessoas envolvidas nesses processos, gerando suspeita condenatória a que os advogados, pela passividade a que estavam adstritos ante aquela norma, não podem obstar sem entrar em contravenção com o que nele se diz. Até hoje não se pensou em alterá-lo.

Em nome de tudo isto foi-se apagando conscientemente a minha intervenção pública. Mesmo no espaço virtual que é o meu blog jurídico, o "Patologia Social", segui o mesmo critério e fi-lo constar do pórtico do mesmo. 

Hoje, penso, está assente a ideia de que opinar sobre processos, ademais pendentes e ainda que de forma ínvia, é algo para o que não contribuo. Razão idêntica fez com que jamais tenha divulgado sucessos que tenho tido na profissão.

Digo isto, não como censura aos demais que surgem a fazer o que não faço, mas como declaração de princípio para justificar uma ausência. Sei que tudo isto é parte de um mundo que se tornou antiquado, mas prefiro assim. Sei que, num mundo de presenças, os ausentes parecem ter deixado de existir mas felizmente ainda há quem note a diferença.

Em tempos escrevi livros e artigos em que tentei exprimir, com distância, o que pensava sobre os temas jurídicos que nos mesmo se suscitavam.

Suponho que ainda possa voltar a escrevê-los, vencido o excesso de trabalho e o cansaço consequente que é hoje o meu mundo: o que me foi dado viver legitima-me a ter uma opinião, discutível seja, e a exprimi-la por essa forma, vencendo na minha consciência o equilíbrio entre o possível rigor e a necessária objectividade. Até lá, abstenho-me.

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A imagem é um quadro do pintor norte-americano Ben Will


Coimbra Editora: o nostálgico fim

 


É com amarga nostalgia que se vêm editores a encerrar. Eu que, entre as vicissitude da vida já arrisquei ser editor e por duas vezes, em ambas com modéstia e na segunda com prejuízos acumulados ao custear sozinho quantas obras alheias editei, sinto, como fossem minhas, essas dores de um sonho que se interrompe, tal como senti, ante o que publiquei, o entusiasmo da obra a fazer-se, surgida de uma ideia concebida no espírito até, enfim, ao formato em papel impresso, produzido em técnica oficinal; entusiasmo que o restante circuito, da distribuição à venda, tornam uma desamparada aventura, as sobras a encherem armazém, custos certos, vendas improváveis.

Escrevo a propósito da Coimbra Editora e do magnífico catálogo que produziu e agora se encontra, em restos de colecção, a preços de saldo. Atingiu 100 anos e termina agora.

Foi fundada a 7 de Agosto de 1920 por um grupo de professores universitários daquela cidade  [Guilherme Moreira, Oliveira Salazar, Alberto dos Reis, Paulo Mereia, Elísio de Moura, Magalhães Colaço, Manuel Rodrigues e tantos outros], em conjunção de esforços com os  livreiros Francisco França e Arménio Amado. 

Antes da Almedina, a que Joaquim Machado daria vida em 1955, na mesma cidade, antes da Petrony, que Augusto Petrony abriu como livraria, em Lisboa, no mesmo ano, era dos seus prelos que saíam as publicações jurídicas essenciais, livros práticos, ensaios jurídicos e teses doutorais, e periódicos como a Revista de Legislação e de Jurisprudência, que se publica desde 1868, característica pela edição dos seus artigos numa lógica de folhetim, somando sucessivamente vários números quando a extensão a tal obrigava.

É este o ciclo da vida, o da renovação da vida pela morte. Lei fatal da Natureza não deixa de ser um cruel destino.

Minuta de acusação e advocacia técnica

 


O ónus processual inerente a uma advocacia tecnicamente preparada está cada vez mais presente nas exigências formuladas pela nossa jurisprudência, aqui, diga-se, com acolhimento na lei. Claro que os efeitos de peças processuais incorrectamente minutadas recaem sobre os directamente afectados e que essa advocacia assiste e representa e exige-se, pois, um sentido acrescido de responsabilidade profissional.

Estamos seguros de que existem ónus cujo critério de satisfação é labiríntico, como o da formulação de conclusões de recurso em matéria de facto [para cumprir o determinado pelo artigo 412º, n.º 3 do CPP], mas outros configuram-se como razoavelmente proporcionados, como é o caso da delimitação do objecto do processo através da acusação.

Vem, por isso, a propósito, o determinado pelo Acórdão da Relação de Coimbra de 22.09.2021 [proferido no processo n.º 222/19.0GBSRT.C1, relator João Novais, texto integral aqui] quando determinou que:

«I - Não é exigida a perfeita coincidência entre a narração, mais ou menos imprecisa, da queixa e a descrição, concreta e circunstanciada, da acusação.
«II – A queixa traduz uma descrição do acontecimento naturalístico ocorrido, do “pedaço de vida” relativamente ao qual o ofendido pretende procedimento criminal, ou seja, consubstancia uma manifestação de vontade do ofendido de início e de prosseguimento de processo de natureza criminal contra o denunciado pela prática de um determinado crime.
«III – Já a acusação, reforçando o mesmo propósito, visa horizonte mais vasto, imputando-se nela ao arguido, em termos concretos, os factos e os crimes que os factos consagram.»

Pelo seu interesse, cita-se este excerto da sua fundamentação:

«f) Quanto à acusação particular, exigida para determinados tipos de crimes, constituindo um reforço da vontade do ofendido para que se verifique o procedimento penal já anteriormente manifestado através da apresentação da queixa, não se confunde com esta, indo para além dela.
Já não está apenas em causa, como na queixa, possibilitar o exercício da acção penal (ou impedir esse exercício através da desistência da queixa); está em causa o exercício dessa mesma acção penal, independentemente do próprio Ministério Público.
E uma vez que a acusação particular se relaciona com o verdadeiro exercício da acção penal, facilmente se compreende que a lei exija muito mais do que uma simples manifestação de vontade, sem especiais formalidades, como ocorre na queixa. Por esse motivo, a nossa lei estabelece expressamente a forma que deve revestir a acusação particular devendo respeitar – por remissão do 285º, nº 3 do C.P.P. – o disposto no art. 283º, 3, 7 e 8 do mesmo código; Ou seja, tem necessariamente que conter as especificações exigidas quanto à acusação pública, mormente a «narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada» - cfr. al. b) do n.º 3 do art 283º do C.P.P.
Como é sabido, é de grande relevância a descrição dos factos na acusação: o objecto do processo é o objecto da acusação, no sentido de que é esta que fixa os limites da actividade cognitiva e decisória do tribunal, ou, noutros termos, o thema probandum e o thema decidendum - cfr. Ac. do S.T.J. de 13.10.2011, proc. n.º 141/06.0JALRA.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt; A estrutura acusatória do processo, o princípio do contraditório, bem como o direito de defesa, levam a que, de acordo com o denominado princípio da vinculação temática, os poderes de cognição do tribunal estejam delimitados pelo conteúdo da acusação – cfr. Ac. desta Rel. de Coimbra, de 15-4-2015, processo n.º 992/12.1TAVIS.C1, disponível no mesmo sítio.
«g) Daqui resulta, que se na queixa se deve fazer referência ao acontecimento relativamente ao qual o ofendido pretende que ocorra uma reacção penal, assim se definindo a amplitude da investigação em sede de inquérito e da própria acusação, não se exige a perfeita coincidência entre a narração mais ou menos imprecisa desse acontecimento, e a descrição concreta e circunstanciada exigida numa acusação. Na queixa o que se pretende é uma descrição do acontecimento, ou “pedaço de vida”, relativamente ao qual o ofendido pretende procedimento penal; impõe-se apenas a manifestação da vontade no prosseguimento de processo crime contra o denunciado pela prática de um facto ou acontecimento que configurará determinado crime.
Já na acusação, reforçando-se a mesma manifestação de vontade, vai-se mais longe, imputando-se ao arguido, em termos precisos e concretos, os factos, e os crimes.»

Presunção de culpa penal?


 Aí está o descaramento e, há que reconhece-lo, a óbvia tradução do pensamento populista.

O livro foi escrito durante a reclusão pandémica, o autor é catedrático da Universidade Jaime I de Castellón, em Espanha.

O título antecipa as conclusões: segundo o autor, embora a jurisprudência o não admita, existe no sistema processual penal espanhol uma presunção judicial de culpa, o que implica, como seu efeito, a desvalorização da livre apreciação da prova; por outro lado, em sua opinião, os indícios, não sendo prova em si, consagram uma presunção de natureza probatória, o que é o primeiro patamar apto à respectiva demonstração.

Se isto já é, por si, um preocupante mundo novo, de há muito pensado, mas agora a surgir vocalmente ostensivo, pior é a lógica do raciocínio que subjaz ao raciocínio que a tais conclusões conduz: e esse assenta na lógica de utilitarismo moral, a de que os fins justificam os meios, na forma de que se não for assim, a inexistir presunção de culpa e valia presuntiva dos indícios, não se conseguem obter condenações, nomeadamente em caso de silêncio do acusado e no que se refere a crimes sexuais e, igual ilação se poderia extrair quanto aos crimes de cunho financeiro aqueles relativamente aos quais é usual proclamar que a prova directa é muito difícil.

É isto, que até aqui circulava, como insidiosa interrogação, no espaço mediático: como seria possível que houvesse presunção de inocência até ocorrer uma condenação transitada em julgado e não - e ei-la - presunção de culpa, esta aliás firmada pela degradação cívica a que o suspeito é sujeito, condenado pela opinião pública e cuja inocentação judicial fica relegada para a penumbra do silêncio noticioso.

Fundamentação da não pronúncia: irregularidade?

 


A necessidade de fundamentação do despacho de não pronúncia e projecção dessa exigência a nível da garantia do caso julgado, eis o que foi configurado pelo Acórdão da Relação de Guimarães de 13.09.2021 [proferido no processo n.º 196/20.5GBBCL.G1, relatora Fátima Furtado, texto integral aqui], o qual, divergindo do que tem sido entendido por outras decisões, nele aliás citadas, consigna que se trata de mera irregularidade e não de nulidade.

Pelo seu interesse, eis o excerto relevante do decidido:

«O despacho de não pronúncia, enquanto ato decisório do juiz, tem necessariamente de ser fundamentado, o que significa que nele devem ser especificados os motivos de facto e de direito da respetiva decisão (3), de forma a permitir a sua impugnação e o reexame da causa pelo tribunal de recurso.
Aliás, no que respeita à decisão instrutória de não pronúncia que conheça do mérito, o cumprimento dessa exigência, nomeadamente no que respeita à indicação dos factos indiciados e não indiciados, é também essencial para a fixação dos efeitos do caso julgado.
Sendo que se pode dizer que a decisão instrutória de não pronúncia decidiu sobre o mérito da causa, sempre que não indiciados os factos da acusação (ou do requerimento de abertura da instrução, conforme os casos), ou apesar de indiciados todos ou alguns deles, os factos descritos, se conclua que eles não constituem crime ou que o arguido não pode ser responsabilizado criminalmente pelos mesmos.
Nestas situações, uma vez transitado o despacho de não pronúncia, o processo onde foi proferido só pode ser reaberto através do recurso de revisão, nos termos prevenidos nos artigos 449.º, n.º2, e 450.º, nº.1, al. b), do Código de Processo Penal (4) e, se for instaurado um outro processo pelos mesmos factos, o arguido poderá arguir, com sucesso, a exceção do caso julgado.
Já assim não acontecerá, quando a não pronúncia do arguido e o consequente arquivamento do processo se fica a dever à não indiciação dos factos essenciais para a integração dos elementos constitutivos do crime imputado ao arguido, no requerimento de abertura da instrução.
É que, neste último caso, porque se trata de insuficiência de prova indiciária, caso surjam novos elementos de prova, o processo pode ser reaberto, assim como pode, também, ser instaurado um novo processo, enquanto não ocorrer a prescrição.
Consequentemente – e como se escreveu no acórdão do TRG, de 27.09.2004, proferido no proc. n.º1008/04.2, relatado pelo Desembargador Heitor Gonçalves (5) – «a reabertura do processo arquivado pelo despacho de não pronúncia depende indubitavelmente dos respectivos pressupostos factuais. É por essa razão que o Sr. Juiz de Instrução, ao proferir despacho de não pronúncia pela não verificação dos pressupostos materiais da punibilidade do arguido, deve descrever e especificar quais os factos que considera indiciados e os que considera não indiciados, indicando os respectivos fundamentos ou motivação, pois só dessa a forma se podem definir os verdadeiros efeitos do caso julgado e se garantem cabalmente os direitos de defesa».
Ora, no caso sub judice, já vimos que o despacho de não pronúncia recorrido, apesar de conhecer de mérito, decidindo que a arguida não pode ser responsabilizada pelos factos que lhe são imputados, não enumera os factos alegados no requerimento de abertura da instrução que considera suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados, limitando-se a tecer considerações sobre a prova produzida.
Como consequência de tal omissão, parte significativa da doutrina e jurisprudência pronuncia-se pela nulidade, embora entendendo alguns ser uma nulidade insanável e de conhecimento oficioso e, outros, sanável e dependente de arguição. (6)
Não perfilhamos de tal posição, antes seguindo aqueles que vêem na omissão da descrição factual do despacho de não pronúncia que conhece de mérito uma irregularidade. (7)
Em matéria de invalidades, o nosso sistema processual penal consagra o princípio da legalidade das nulidades, plasmado no nº 1 do artigo 118º, do Código de Processo Penal, segundo o qual, a violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei. Sendo o ato irregular nos casos em que a lei não determinar expressamente a nulidade (8).
Ora, o certo é que não há norma que determine a nulidade como consequência da omissão ou deficiência da fundamentação das decisões jurisdicionais em geral, nem, tão pouco, qualquer norma específica que comine com a nulidade a omissão ou deficiência de fundamentação da decisão instrutória de não pronúncia.
Contrariamente, aliás, com o que acontece com as sentenças e decisões instrutórias de pronúncia, nas quais se impõe a enunciação dos factos provados/indiciados e não provados/indiciados, sob pena de nulidade. (9)
Afigura-se-nos, assim, que a omissão da descrição dos factos indiciados e/ou não indiciados na decisão instrutória de não pronúncia que conhece de mérito, configura apenas uma irregularidade.
Só que essa irregularidade influi na decisão da causa, na medida em que só depois da enumeração dos factos indiciados e/ou não indiciados se podia decidir se os primeiros são ou não suficientes para a sujeição da arguida a julgamento, pelo crime imputado no requerimento instrutório.
Sendo que a omissão da descrição fática na decisão instrutória de não pronúncia, consubstancia um hiato parcial da respetiva decisão jurisdicional, que afeta o seu valor e impede que o tribunal ad quem sobre ela se pronuncie.
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3. Cfr. artigo 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal.
4. Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 198 e 199.
5. Disponível em www.dgsi/jtrg.pt
6. Cfr. entre outros, a título exemplificativo, os acórdãos, ambos do TRP, de 17.02.2010, proferido no proc. nº 58/07.1TAVNH.P1, relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo e de 21.01.2015, proferido no processo nº 9304/13.1TDPRT.P1, relatado pela Desembargadora Lígia Figueiredo, disponíveis em www.dgsi/jtrp.pt.
7. Cfr., entre outros, a título exemplificativo, o acórdão deste TRG, datado de 09.07.2009, proferido no proc. nº 504/07.4GBVVD-A.G1, relatado pelo Desembargador Cruz Bucho e o acórdão do TRP, de 10.12.2014, proferido no proc. nº 281/12.7TAVLG.P1, relatado pela Desembargadora Luísa Arantes, disponíveis em www.dgsi/jtrp.pt.
8. Cfr. n.º 2 do artigo 118.º do Código de Processo Penal.
9. Cfr. artigos 379.º, nº 1, al. a) e 283.º, n.º 3, ex vi do artigo 308.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal.
»

Perda de vantagens e indemnização: cumulação?

 


Problemático saber se a perda de vantagens emergentes do crime, a denominada "perda clássica", pode ser cumulada com condenação no pagamento de indemnização por danos emergentes do crime.

No sentido dessa possível cumulação, leia-se o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07.09.2021 [proferido no processo n.º 95/18.0T9LLE.E1, relator Nuno Garcia, texto integral aqui], segundo o qual tal cumulação só não se verificar «se no decurso do processo se comprovar que o agente do crime ressarciu o ofendido em montante exactamente igual ao das vantagens que obteve com a prática do crime.»

Útil, por enunciar em seu apoio a literatura jurídica e a  jurisprudência que tem militado no mesmo sentido, é este excerto do decidido:

«A propósito da perda de vantagens, agora prevista no artº 110º do C.P. (redacção introduzida pela L. 30/2017 de 30/5, já em vigor à data da prática do último acto levado a cabo pela recorrente), e anteriormente previsto no artº 111º do C.P., refere o Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, 2ª reimpressão, 2009, pág. 632: “Nas vantagens, diversamente, o que está em causa primariamente é um propósito de prevenção da criminalidade em globo, ligado à ideia – antiga, mas nem por isso menos prezável – de que «o ‘crime’ não compensa”.

E mais adiante, pág. 633, § 1005, a propósito precisamente da questão concreta em causa neste recurso: “À primeira vista, a consagração da perda de vantagens como providência de carácter criminal pode parecer absurda: em princípio, com efeito, ela resulta automaticamente das regras da responsabilidade civil (nomeadamente, sob a forma da restituição em espécie). A providência justifica-se, no entanto, de um duplo ponto de vista. Por uma parte, o lesado pode prescindir da reparação, não apresentando o respectivo pedido; caso em que as finalidades de prevenção, geral e especial, acima apontadas dão fundamento autónomo ao decretamento da perda. Por outra parte, casos haverá em que as vantagens vão além daquilo em que a vítima foi prejudicada. Suscita-se, nestas hipóteses, o problema de saber até onde deverá a perda das vantagens ser decretada (infra § 1009). Mas seja como for quanto a este ponto, também aqui há lugar e justificação autónomos para a perda. Sem deixar de reconhecer-se, em todo o caso, que, sempre que tenha havido pedido civil conexo com o processo penal, poucas serão as hipóteses em que a perda de vantagens poderá vir a ser decretada utilmente”.

Temos, portanto, que a perda das vantagens tem como primeiro objectivo fazer com que o agente do crime não retire qualquer vantagem com a sua prática, fazendo ver a todos (prevenção geral) que para além da punição criminal propriamente dita, não é possível obter qualquer tipo de benefício com a mesma.

E tal objectivo faz sentido mesmo que ocorra condenação no pedido de indemnização formulado pelo ofendido/lesado.

É que mesmo havendo condenação no pedido de indemnização pode sempre o beneficiário desta vir a prescindir da mesma ou permanecer inactivo com vista à sua cobrança. Se tal viesse a ocorrer, e inexistindo declaração de perda da vantagem a favor do Estado e condenação do arguido nesse pagamento, sempre ficaria frustrado o acima referido objectivo e nesse caso ficaria nas mãos do ofendido o crime “compensar”, ou não.

Assim se entendeu, entre outros, no ac. da rel. de Lisboa de 18/6/2019, assim sumariado:

“- O instituto intitulado de “perda de vantagens” constitui uma medida sancionatória análoga à medida de segurança com intuitos exclusivamente preventivos.

- A perda de vantagens do crime constitui instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que, mesmo onde a cominação de uma pena não alcança, nenhum benefício resultará da prática de um ilícito [v.g. “o crime não compensa”, nem os seus agentes dele retirarão compensação de qualquer natureza].

- Reconhece-se, assim, que o agente deverá voltar ao estado inicial antes de beneficiar da vantagem patrimonial demonstrada na acusação, e causada em consequência de um facto antijurídico. Este retorno, sublinhe-se, deverá ocorrer mesmo que o pedido de indemnização civil não tenha sido formulado, por algum motivo tenha sido julgado improcedente ou seja relativo a valor inferior à vantagem patrimonial que ocorra.

- A reserva constante do n.º 2, do citado art. 111ºC.P., em benefício dos direitos do ofendido ou terceiros de boa-fé, não lhes concede poderes derrogatórios das medidas dessa natureza aí previstas, significando apenas que, concorrendo a execução do pedido de indemnização civil com a do valor da perda de vantagens prevalecerá a primeira delas, remetendo-nos para uma fase de tramitação posterior, em que já estão atribuídos e devidamente delimitados quer os valores da indemnização do ofendido ou de terceiro e o da perda de vantagens que, como é bom de ver, poderão nem sequer ser inteiramente coincidentes e no mesmo sentido vai a estatuição do art. 130º, n.º 2, do Cód. Penal, ao prever que o tribunal possa “atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os objectos declarados perdidos ou o produto da sua venda, ou o preço ou o valor correspondentes a vantagens provenientes do crime, pagos ao Estado ou transferidos a seu favor por força dos artigos 109.º e 110.º”.

- O direito ao pedido de indemnização civil não pode contender ou substituir o direito de o Estado ser de imediato reintegrado na sua esfera patrimonial com os bens/direitos/vantagens que lhe foram subtraídos com a prática do crime.

- Não há qualquer incompatibilidade entre o requerimento ou promoção de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público e o pedido de indemnização civil cuja apresentação caberia à Segurança Social.”

E no texto do referido acórdão:

“Ao contrário do que parece defender o Tribunal recorrido, não há nenhuma incompatibilidade entre o requerimento ou promoção de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público e o pedido de indemnização civil cuja apresentação caberia à Segurança Social, tal como a jurisprudência tem vindo consistentemente a decidir no seguimento de informada doutrina (cfr., entre outros, “O confisco das vantagens e a pretensão patrimonial da Autoridade Tributária e Aduaneira nos crimes tributários” - Dr. João Conde Correia e Dr. Hélio Rigor Rodrigues, in Revista Julgar Online, Janeiro de 2017).

Vejam-se, neste sentido e a título de exemplo, os seguintes Acórdãos: - Acórdão de 22 de Fevereiro de 2017, processo n° 2373/14.9IDPRT, no qual foi Relatora a Exma. Sra. Desembargadora Maria Deolinda Dionísio; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Março de 2017, processo n° 86/14.0IDPRT, no qual foi Relator o Exmo. Sr. Desembargador Francisco Mota Ribeiro; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Junho de 2017, processo n° 25/15.1IDPRT, no qual foi Relator o Exmo. Sr. Desembargador José Carlos Borges Martins; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12 de Julho de 2017, processo n° 149/16.8IDPRT, no qual foi Relator o Exmo. Sr. Desembargador Jorge Langweg; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31 de Maio de 2017, processo n° 259/15.9IDPRT, no qual foi Relatora a Exma. Sra. Desembargadora Lígia Figueiredo; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31 de Janeiro de 2018, processo n° 176/16.5PAVFR, no qual foi Relator o Exmo. Sr. Desembargador Ernesto Nascimento; e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de Janeiro de 2018, processo n° 126/14.3GBAMT, no qual foi Relatora a Exma. Sra. Desembargadora Maria Deolinda Dionísio.”

O mesmo no ac. da rel. do Porto de 26/10/2017, assim sumariado: .

“Tenha ou não deduzido pedido civil, tenha ou não a Autoridade Tributária entendido que dispõe de meios suficientes para a cobrança coerciva do imposto devido, há lugar, nos termos do artº 111º CP, num crime de burla tributária, ao decretamento de perda de vantagens obtidas com a prática do crime.”

Acontece que se, por um lado, o lesado não pode ser prejudicado pela declaração de perda das vantagens (cfr. nº 6 do artº 110º do C.P.), podendo o mesmo nos termos do artº 130º, nº 2, do C.P. “fazer-se pagar” quanto aos danos causados pelo valor das vantagens recebidas pelo Estado, por outro lado, não pode ocorrer execução simultânea pelo Estado e pelo ofendido/lesado ou só por aquele quando, como acontece muitas vezes, designadamente nos crimes fiscais, é o Estado o próprio ofendido.

Mas isso é questão que só posteriormente se colocará, se for caso disso, pois que, como bem se refere no voto de vencido proferido no ac. da rel. do Porto de 30/4/2019:

“Não compete ao tribunal, de primeira instância ou de recurso fixar ressalvas sobre que direitos não podem ser prejudicados com esta perda nem como devem ser reduzidos pagamentos; essas questões terão que ser atendidas no momento próprio (na decisão em primeira instância ou em sede de recurso se já tiverem ocorrido pagamentos ou em execução se ocorrerem depois daquelas decisões) e sempre sem prejuízo de direitos legalmente conferidos não havendo que o declarar.”

Uma coisa é certa, repete-se: a recorrente não será “obrigada” a pagar duas vezes a mesma quantia, ou seja, por duas vezes a quantia de que ilicitamente se apropriou, pois tal constituiria um empobrecimento sem justificação, para além do que se pretende que ocorra: inexistência de benefício com a prática do crime. A recorrente deve voltar a estar na situação patrimonial em que se encontrava antes da prática do crime, não mais “pobre” (em duplicado) do que estava.

É como se refere no texto do acima referido rel. do Porto de 26/10/2017:

“É por isso mesmo, porque não pode ser executada duas vezes (sob pena de se modificar a natureza jurídica do confisco: em vez de colocar o arguido no status patrimonial anterior à prática do facto ilícito típico seria um mecanismo de redução do seu património lícito) que Jorge de Figueiredo Dias refere quer nesses casos, decretar o confisco poderá não ter utilidade. Da sua asserção não se pode, todavia, retirar que o confisco cessa quando existe um pedido de indemnização civil, mas apenas que «poucas serão as hipóteses em que a perda das vantagens poderá ser decretada utilmente» (Direito Penal Português…, p. 633). O que não significa, por exemplo, que não tenha já relevância (teórica) ou que não possa vir a ganhá-la no futuro (v.g. porque o título executivo já existente prescreveu entretanto).”

Como é sobejamente referido, designadamente pelo Prof. Figueiredo Dias, a declaração judicial de perdimento da vantagem pode vir a revelar-se inútil, inconsequente, mas isso não significa que, pelas razões já referidas, não deva ser decretada. Só assim não será se no decurso do processo se comprovar que o agente do crime ressarciu o ofendido em montante exactamente igual ao das vantagens que obteve com a prática do crime. Aí sim: aquando da condenação já se sabe que a declaração de perda é completamente inútil.»

Constitucionalidade: absolvição e condenação em pena suspensa


O Plenário da 2ª Secção do Tribunal Constitucional  no seu acórdão n.º 524/2021 de 13.07.2021 [proferido no processo processo 140/2017, relatora Maria de Fátima Mata Mouros, com um voto de vencido, texto integral aqui] decidiu «não julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação dos artigos 400.º, n.º 1, alínea e), e 432.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações, que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condenem os arguidos em pena de prisão não superior a cinco anos, suspensa na sua execução.»

Revista do CEJ: 2/2020


A Revista n.º 2/2020 do CEJ contém dois artigos com interesse na área jurídico-penal:

-» Alexandre Au-Yong Oliveira , Reflexões em torno do crime de burla informática

-» Rui Cardoso, A transacção no processo penal em Cabo Verde.

Prova documental com a contestação

 


Quem suponha que, sendo o inquérito nos processos com maior sensibilidade uma fase pautada pelo segredo de justiça - contra o arguido diga-se - e sendo a instrução uma fase facultativa - relativamente à qual o arguido pode ter reservas em requerê-la e que, por tudo isso, a fase do julgamento - plenamente oral e contraditória e destinada ao apuramento final das responsabilidades que lhe caibam, o momento lógica para apresentar a sua defesa através da contestação, nisso incluindo a prova documental, que se desiluda.

Ante o teor literal do artigo 165º do Código de Processo Penal, está a consagrar-se jurisprudência restritiva segundo a qual,  a junção de documentos com a contestação, ou o requerimento da sua obtenção quando em poder de terceiros, só é admissível mediante a prova de que tal não foi possível naquelas fases antecedentes, a do inquérito e da instrução.

Ou seja, o que tem sido uma prática, estará em breve amputada, assim triunfe este modo restritivo de aplicar a lei. 

Admite-se que a hermenêutica do preceito não ajuda e o mesmo encontra-se no Código desde a sua versão inicial. Eis o seu teor:

Artigo 165.º
Quando podem juntar-se documentos
1 - O documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência.
2 - Fica assegurada, em qualquer caso, a possibilidade de contraditório, para realização do qual o tribunal pode conceder um prazo não superior a oito dias.
3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a pareceres de advogados, de jurisconsultos ou de técnicos, os quais podem sempre ser juntos até ao encerramento da audiência.

Haverá, porém, um espírito legislativo, que contraria esta sua interpretação, até por contraste com o que está hoje consagrado como sendo o regime de produção probatória na fase já de julgamento, pois aí, sim, o legislador, com a Lei nº 20/2013, de 21 de Fevereiro; deu esta redacção ao artigo 340º, n.º 4 do CPP, o qual ficou assim redigido:

Artigo 340.º
Princípios gerais
1 - O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
2 - Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 328.º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis.
4 - Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
a) As provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, exceto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa;
b) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
c) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou
d) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.

Prova pericial: lei de saúde mental



Está claramente enunciado neste Acórdão da Relação de Lisboa de 07.09.2021 [proferido no processo 19731/15.4T8LSB-E.L1-5, relator Paulo Barreto, texto integral aqui] o problema da prova pericial, em geral, e nomeadamente em matéria de saúde mental, o qual tem idêntica expressão no sistema processual penal.
O regime legal é, claramente, uma regra de confiança na qualidade dos peritos, sendo que peritos são os que são designados pela autoridade judiciária, já não aqueles que os demais sujeitos possam indicar, por mais competentes sejam; e isto é assim, a favor da oficiosidade, devido à inexistência de um sistema de perícia contraditória.
Este voto de confiança traduz-se na regra expressa pelo artigo 163º, n.º 2 do CPP, segundo o qual:

 Artigo 163.º
Valor da prova pericial
1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.

E, como se denota no caso, está igualmente presente no âmbito do artigo 17º, n.º 5 da Lei de Saúde Mental [Lei 36/98, de 24 de Julho], o qual determina que:

 Artigo 17.º
Avaliação clínico-psiquiátrica
1 - A avaliação clínico-psiquiátrica é deferida aos serviços oficiais de assistência psiquiátrica da área de residência do internando, devendo ser realizada por dois psiquiatras, no prazo de 15 dias, com a eventual colaboração de outros profissionais de saúde mental.
2 - A avaliação referida no número anterior pode, excepcionalmente, ser deferida ao serviço de psiquiatria forense do instituto de medicina legal da respectiva circunscrição.
3 - Sempre que seja previsível a não comparência do internando na data designada, o juiz ordena a emissão de mandado de condução para assegurar a presença daquele.
4 - Os serviços remetem o relatório ao tribunal no prazo máximo de sete dias.
5 - O juízo técnico-científico inerente à avaliação clínico-psiquiátrica está subtraído à livre apreciação do juiz.

Trata-se, explicitam ambos os normativos de uma presunção, seja em sentido técnico ou não, conforme é posto em causa na literatura jurídica, a qual limita os poderes de avaliação do tribunal.

Cite-se pois o sumário do aresto em causa, tal como redigido pelo relator:

«I– Se o legislador impõe que o juízo técnico científico, inerente à avaliação clínico-psiquiátrica, do serviço oficial de assistência da área da residência da internada, está subtraído à livre apreciação do juiz, só pode ser porque se concluiu que técnica e cientificamente é credível, que estas perícias serão seguras e confiáveis e que os respectivos peritos gozam de total autonomia técnico-científica, garantindo um elevado padrão de qualidade científica.

«II– Não compete ao tribunal apreciar a competência dos psiquiatras e, outrossim, do relatório da avaliação-psiquiátrica nada consta que seja notoriamente errado (à luz do homem médio e da experiência comum) que justifique uma intervenção dos (leigos) juízes já que as conclusões da avaliação psiquiátrica estão em consonância com o exame pericial produzido, os peritos fundamentaram de modo razoável e suficiente a sua convicção, apreciando crítica e cientificamente a situação da internada e o relatório da avaliação clínico-psiquiátrica está devidamente fundamentado.»

Benefício do prazo do último notificado


Despacho do Presidente do Tribunal da Relação de Évora, proferido a 15.07.2021 [texto integral aqui], vem consignar como entendimento que o benefício do prazo do último notificado em matéria processual penal não se aplica ao prazo para recurso de sentenças.
 
É este o trecho relevante do decidido:


«Estabelece o artigo 113.º, n.º 14, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 1/2018, de 29-01, que «[n]os casos expressamente previstos, havendo vários arguidos ou assistentes, quando o prazo para a prática de actos subsequentes à notificação termine em dias diferentes, o acto pode ser praticado por todos ou por cada um deles até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar».
Assim, decorre do normativo legal em causa que apenas nos casos expressamente previstos, havendo vários arguidos, quando o prazo para a prática dos atos subsequentes à notificação termine em dias diferentes, o ato pode ser praticado por qualquer dos arguidos até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar.
Entre tais casos expressamente previstos encontra-se o requerimento de abertura de instrução (artigo 287.º, n.º 6) e o prazo de apresentação da contestação (artigo 315.º, n.º 1).
Porém, já em relação ao prazo de interposição nada se diz, o que significa que a citada norma do n.º 4 do artigo 113.º não lhe é aplicável.
Isto é, e dito de forma direta: no caso de haver vários arguidos, o disposto no artigo 113.º, n.º 14, do Código de Processo Penal, não é aplicável ao prazo de interposição de recurso da sentença (neste sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-04-2013, Proc. n.º 1721/09.8JAPT.P1.S1, referido no Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, 2016, 2.ª edição, Almedina, pág. 1294, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição, Universidade Católica Editora, pág. 1115, n.º 8 da anotação ao artigo 113.º).
Para além da referida conclusão, outra resulta do mesmo n.º 14 do artigo 113.º: este regula expressamente as situações a que é aplicável, pelo que, ao contrário do sustentado pelos reclamantes, não se verifica aqui qualquer omissão a que haja que recorrer através da integração de lacunas, com aplicação das normas do Código de Processo Civil, maxime dos seus artigos 569.º, n.º 2 e 638.º, n.º 9.»

Julgar em ditadura/julgar em democracia

 


O Centro de Estudos Judiciários teve a gentileza de publicar em formato digital e acessível on line o texto de uma intervenção que tive, a propósito do binómio «julgar em ditadura, julgar em democracia», no evento homónimo, o qual conheceu também participação o Senhor Conselheiro Luís Noronha Nascimento.

Sob o tema "Criminalizar a Política, Defender o Estado", tenho a sensação de ter produzido um contributo não consensual e até em contraciclo. Isso não se me configura como problema; problema seria se o que escrevi não fosse verdade. 

Para que possa haver opinião, aqui fica a menção. Pode aceder-se ao texto aqui [a partir da página 53 do PDF].

Populismo penal - 2

 


O populismo penal é pela sua essência autoritário: opera numa lógica securitária. A sua tribuna preferida são os media não os espaços institucionais. O seu discurso é por essência revanchista, de transmutação da prevaricação de alguns na culpabilização de todos, transformando as falhas próprias na responsabilidade dos demais. Vive da lógica recalcitrante da falta de meios, forma de apelar por mais poder.

Para o populismo penal o raciocínio preferido é a generalização, a ética preferida a do simplificado maniqueísmo: os processos que torna mediáticos são o seu espaço natural de expressão, aptos à purga e à diabolização, meios de catarse colectiva onde faz sacerdócio. Mesmo quando dão em nada, o ritual expurgatório está feito, absolvidos no Céu, queimados na fogueira do Inferno nesta terra.

Esta lógica redutora do usual no excepcional, esse culto permanente da exemplaridade, torna os seus arautos apetecíveis para a comunicação de massas, sobretudo quando loquazes. O tempo da reserva e da autocontenção verbal terminou.

O culto futurista da velocidade, isso mesmo um conceito tecnicamente fascista, deu em aliciante que baste para os populistas; mas não em tudo andar necessariamente depressa nos processos, porque a lentidão também serve aos casos em que é suposto andarem nunca ou só andarem quando: sob a aparência tecnocrática da eficiência, da produtividade e da estatística, o populismo é selectivo, aparentando-se igualitário, tornando-se política.

Posto isto, não se estranhem certos discursos, vejam-se, sim, neles, o sinal dos tempos que deixámos que se criassem. 

O espaço de liberdade e cidadania em que o processo penal se formou está hoje cercado pela nova ordem: ele transformar-se-á, em matéria de liberdade, no mercantilismo burguês em que tudo se transaciona, até as penas; no que à cidadania respeita, tornámo-nos de cidadãos em contribuintes e aí também o processo criminal se tornou num meio ditatorial de cobrança de receitas tributárias. 

Na putrefação do capitalismo selvagem que foi consentido, na colonização do Estado permitida aos interesses privados, encontra o populismo penal o seu espaço venatório. Falta hoje moral para o censurar. Ele tornou-se uma inevitabilidade. A tanto chegámos.

Depoimento de OPC sobre depoimento de testemunha ausente

 


Determina o artigo 356º, n.º 7 do Código de Processo Penal: «7 - Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.»

Por seu turno, estatui o artigo 129º, n.º 1 do mesmo diploma sobre depoimento indirecto: «Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.»

Parece-me que o primeiro dos normativos, porquanto especial, se sobrepõe ao primeiro, traduzindo um comando inderrogável porque sem excepção. O inciso nele contido «cuja leitura não for permitida» talvez suscite a dúvida sobre a excepção, mas creio que ela é resolúvel: o facto de a fonte da informação não ter sido encontrada viabiliza o testemunho indirecto de quem a ouviu dizer, mas não sobre o conteúdo do auto em que ficou registado o que ela disse.

Sendo esta, por ilógica que pareça, a articulação entre os preceitos, tema é saber se o OPC, não podendo ser inquirido sobre o conteúdo do auto poderá ser ouvido em audiência sobre o que a testemunha inquirida disse desde que não se reporte ao auto, forma sofismática que então se encontrará de permitir o que parecia proibido.

Eis o que decorre do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.07.2021 [proferido no processo n.º 1747/18.0PBPDL.L1-9, relator Abrunhosa de Carvalho e texto integral aqui]: «I – Se não for possível localizar uma testemunha, nos termos do art.º 129º/1, segunda parte, do CPP, pode o tribunal valorar o depoimento do Agente da PSP sobre o que aquela disse.»

Populismo penal - 1

 


Se há territórios jurídicos onde o populismo tem o seu local privilegiado de expressão é o da justiça penal. Logo veremos porquê.

Uma das características essenciais do fenómeno do populismo na área jurídica é o do alinhamento do que se decide, não com as exigências racionais imanentes à necessidade da solução, à razoabilidade da mesma, à sua congruência com as regras do Direito, sim com as expectativas da opinião pública; é, em suma, a expectável conformidade.

Dir-se-á que essa será decorrência de uma justiça que se aplica em nome do povo e que terá de se fazer eco do seu sentir; só que, no universo populista, a esta, já por si, abstração, cujo sentir é, aliás, imperscrutável,  sucede a do concreto sentir que os "mass media" veiculam na suas visíveis linhas editoriais, aquele cuja expressão valida o decidido, pelo aplauso, conferindo-lhe, assim, esta forma de legitimação pelo sufrágio.

Trata-se, mais rigorosamente, de uma relação dialética, porquanto se surgem decisões  a sincronizarem-se com essa valoração mediática dos factos, é porque  no espaço da comunicação social já os casos sofreram uma prévia revelação e valoração, um julgamento, em suma.

Nasce daqui o inquebrantável fenómeno da impunidade da violação do segredo de justiça; quebrá-lo seria atentar contra esse circuito comunicacional indispensável ao sistema, tal como ele se implantou, de osmose relacional entre ambos os poderes, o terceira e o quarto, o da justiça e da imprensa, com a hipocrisia de se manter a lei pela qual atentar contra o segredo de justiça é crime.

Sendo isto o que é, não se estranhará que o Presidente da República, tendo visto o Tribunal Constitucional barrar-lhe um decreto, em que jogara a sua promulgação, entre, via telefone, em directo para o noticiário de uma televisão e, não só se permita transformar em vitória política o que foi uma derrota jurídica, como se atreva a dar voz á noção de que «O Direito deve estar ao serviço da política e não a política do serviço do Direito».

Com uma só frase se desqualifica o Tribunal Constitucional e se mostra à Justiça o modo de alinhar o passo. 

Lamentável mas esclarecedor, sintomático mesmo: o populismo é isto, haver exemplos que isto permitem.


Sociedades, seus representantes: a responsabilização

 


Recentíssima publicação da Universidade Católica o livro, que se anuncia e natureza didáctica, compendia estudos que o seu autor vem efectuando no âmbito da responsabilidade nomeadamente criminal das pessoas colectivas, agora na óptica da responsabilização dos seus "dirigentes". 

Trata-se da sequência da obra publicada em 2009, pela Verbo, sob o título "Responsabilidade das Sociedades e dos seus Administradores e Representantes" e do que foi publicado nesse mesmo ano e já com segunda edição de 2018, o "Direito Penal Tributário".

São, de facto, dois os capítulos em que o tema é desdobrado, o primeiro logo directamente orientado ao tema da responsabilidade pessoal dos dirigentes, o segundo ao da responsabilidade das sociedades.

A isso se junta [páginas 69 e seguintes] uma análise de alguns crimes em especial: os crimes ditos "comuns", porquanto previstos no Código Penal [recebimento indevido de vantagem, corrupção no sector público e privado, tráfico de influência, participação económica em negócio e fraude fiscal] e os crimes previstos no Código das Sociedades Comerciais.

A bibliografia final ajuda o leitor a ampliar o estudo.

CSM: isto compreende-se?

 


O Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, Conselheiro José António Lameira, difunde, através de uma longa entrevista concedida a Fernando Carneiro, da Agência Lusa, a sua posição pessoal quanto ao controverso tema do Tribunal Central de Instrução Criminal, posição claramente contrastante com a do Presidente cessante e que, por isso, talvez devesse ter sido guardada para o local próprio. 

A difusão de pluralidade de perspectivas tem sentido. A demonstração pública de entendimentos pessoais, enquanto se é titular de um órgão já é, em si, uma outra questão. Quando a entrevista vai do A a Z dos temas hoje em causa na agenda do Conselho já se trata de uma questão dentro das questões.

A entrevista está publicada aqui. O seu título enuncia o problema: isto compreende-se?

Estatuto dos Oficiais de Justiça: projecto de revisão


 O Ministério da Justiça publicou o projecto de alteração ao Estatuto dos Oficiais de Justiça, o qual havia sido aprovado pelo Decreto-Lei n.º  343/1999, de 26 de Agosto. O texto pode ser encontrado aqui. Na apresentação pública do mesmo foi acentuado que aqueles oficiais podem, assim o projecto seja tornado lei e haja lei processual que o habilite, praticados actos até aqui próprios de magistrados judiciais, no âmbito dos denominados actos processuais de expediente.

Prevê-se, de facto, como competência do oficial de justiça da categoria de técnico superior de justiça:

a) Assegurar a regular tramitação dos processos e a prática dos inerentes atos, de acordo com as diretivas e orientações estabelecidas pelo magistrado funcionalmente competente e pela chefia da unidade orgânica;

b) Proferir despachos de mero expediente, no exercício de competência própria atribuída por lei ou, não sendo esse o caso, por delegação do magistrado;

c) Preparar a agenda dos serviços a efetuar;

d) Realizar pesquisas de legislação, jurisprudência e doutrina necessárias à  preparação das decisões e das promoções nos processos;

e) Colaborar na preparação de processos em fase de inquérito;

f) Desempenhar, no âmbito do inquérito, as competências dos órgãos de polícia criminal que lhe sejam cometidas pelo Ministério Público;

g) Colaborar na preparação de processos para julgamento;

h) Assegurar o apoio processual aos magistrados na realização de diligências;

i) Exercer as funções de agente de execução, nos termos previstos no Código de Processo Civil;

j) Desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior.

2- Sempre que as necessidades do serviço o justifiquem, em cada comarca ou em cada zona geográfica da jurisdição administrativa e fiscal, o juiz presidente e o magistrado do Ministério Público coordenador, ouvido o administrador judiciário, podem designar técnicos superiores de justiça para o exercício exclusivo de funções de assessoria técnica aos magistrados.

Por seu turno, em relação ao oficial de justiça da categoria de técnico de justiça projecta-se que seja das suas atribuições:

a) Assegurar a tramitação dos processos e a prática dos inerentes atos que não sejam da competência dos técnicos superiores de justiça, ou não estejam a estes cometidos, de acordo com as diretivas e orientações estabelecidas pelo magistrado funcionalmente competente e pela chefia da unidade orgânica;

b) Assegurar o apoio processual e a demais assistência necessária aos magistrados na realização de diligências;

c) Assegurar a realização das videoconferências;

d) Assegurar a realização do serviço externo, com exceção do cometido aos técnicos superiores de justiça;

e) Desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior.