Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Prova documental com a contestação

 


Quem suponha que, sendo o inquérito nos processos com maior sensibilidade uma fase pautada pelo segredo de justiça - contra o arguido diga-se - e sendo a instrução uma fase facultativa - relativamente à qual o arguido pode ter reservas em requerê-la e que, por tudo isso, a fase do julgamento - plenamente oral e contraditória e destinada ao apuramento final das responsabilidades que lhe caibam, o momento lógica para apresentar a sua defesa através da contestação, nisso incluindo a prova documental, que se desiluda.

Ante o teor literal do artigo 165º do Código de Processo Penal, está a consagrar-se jurisprudência restritiva segundo a qual,  a junção de documentos com a contestação, ou o requerimento da sua obtenção quando em poder de terceiros, só é admissível mediante a prova de que tal não foi possível naquelas fases antecedentes, a do inquérito e da instrução.

Ou seja, o que tem sido uma prática, estará em breve amputada, assim triunfe este modo restritivo de aplicar a lei. 

Admite-se que a hermenêutica do preceito não ajuda e o mesmo encontra-se no Código desde a sua versão inicial. Eis o seu teor:

Artigo 165.º
Quando podem juntar-se documentos
1 - O documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência.
2 - Fica assegurada, em qualquer caso, a possibilidade de contraditório, para realização do qual o tribunal pode conceder um prazo não superior a oito dias.
3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a pareceres de advogados, de jurisconsultos ou de técnicos, os quais podem sempre ser juntos até ao encerramento da audiência.

Haverá, porém, um espírito legislativo, que contraria esta sua interpretação, até por contraste com o que está hoje consagrado como sendo o regime de produção probatória na fase já de julgamento, pois aí, sim, o legislador, com a Lei nº 20/2013, de 21 de Fevereiro; deu esta redacção ao artigo 340º, n.º 4 do CPP, o qual ficou assim redigido:

Artigo 340.º
Princípios gerais
1 - O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
2 - Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 328.º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis.
4 - Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
a) As provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, exceto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa;
b) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
c) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou
d) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.

Prova pericial: lei de saúde mental



Está claramente enunciado neste Acórdão da Relação de Lisboa de 07.09.2021 [proferido no processo 19731/15.4T8LSB-E.L1-5, relator Paulo Barreto, texto integral aqui] o problema da prova pericial, em geral, e nomeadamente em matéria de saúde mental, o qual tem idêntica expressão no sistema processual penal.
O regime legal é, claramente, uma regra de confiança na qualidade dos peritos, sendo que peritos são os que são designados pela autoridade judiciária, já não aqueles que os demais sujeitos possam indicar, por mais competentes sejam; e isto é assim, a favor da oficiosidade, devido à inexistência de um sistema de perícia contraditória.
Este voto de confiança traduz-se na regra expressa pelo artigo 163º, n.º 2 do CPP, segundo o qual:

 Artigo 163.º
Valor da prova pericial
1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.

E, como se denota no caso, está igualmente presente no âmbito do artigo 17º, n.º 5 da Lei de Saúde Mental [Lei 36/98, de 24 de Julho], o qual determina que:

 Artigo 17.º
Avaliação clínico-psiquiátrica
1 - A avaliação clínico-psiquiátrica é deferida aos serviços oficiais de assistência psiquiátrica da área de residência do internando, devendo ser realizada por dois psiquiatras, no prazo de 15 dias, com a eventual colaboração de outros profissionais de saúde mental.
2 - A avaliação referida no número anterior pode, excepcionalmente, ser deferida ao serviço de psiquiatria forense do instituto de medicina legal da respectiva circunscrição.
3 - Sempre que seja previsível a não comparência do internando na data designada, o juiz ordena a emissão de mandado de condução para assegurar a presença daquele.
4 - Os serviços remetem o relatório ao tribunal no prazo máximo de sete dias.
5 - O juízo técnico-científico inerente à avaliação clínico-psiquiátrica está subtraído à livre apreciação do juiz.

Trata-se, explicitam ambos os normativos de uma presunção, seja em sentido técnico ou não, conforme é posto em causa na literatura jurídica, a qual limita os poderes de avaliação do tribunal.

Cite-se pois o sumário do aresto em causa, tal como redigido pelo relator:

«I– Se o legislador impõe que o juízo técnico científico, inerente à avaliação clínico-psiquiátrica, do serviço oficial de assistência da área da residência da internada, está subtraído à livre apreciação do juiz, só pode ser porque se concluiu que técnica e cientificamente é credível, que estas perícias serão seguras e confiáveis e que os respectivos peritos gozam de total autonomia técnico-científica, garantindo um elevado padrão de qualidade científica.

«II– Não compete ao tribunal apreciar a competência dos psiquiatras e, outrossim, do relatório da avaliação-psiquiátrica nada consta que seja notoriamente errado (à luz do homem médio e da experiência comum) que justifique uma intervenção dos (leigos) juízes já que as conclusões da avaliação psiquiátrica estão em consonância com o exame pericial produzido, os peritos fundamentaram de modo razoável e suficiente a sua convicção, apreciando crítica e cientificamente a situação da internada e o relatório da avaliação clínico-psiquiátrica está devidamente fundamentado.»

Benefício do prazo do último notificado


Despacho do Presidente do Tribunal da Relação de Évora, proferido a 15.07.2021 [texto integral aqui], vem consignar como entendimento que o benefício do prazo do último notificado em matéria processual penal não se aplica ao prazo para recurso de sentenças.
 
É este o trecho relevante do decidido:


«Estabelece o artigo 113.º, n.º 14, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 1/2018, de 29-01, que «[n]os casos expressamente previstos, havendo vários arguidos ou assistentes, quando o prazo para a prática de actos subsequentes à notificação termine em dias diferentes, o acto pode ser praticado por todos ou por cada um deles até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar».
Assim, decorre do normativo legal em causa que apenas nos casos expressamente previstos, havendo vários arguidos, quando o prazo para a prática dos atos subsequentes à notificação termine em dias diferentes, o ato pode ser praticado por qualquer dos arguidos até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar.
Entre tais casos expressamente previstos encontra-se o requerimento de abertura de instrução (artigo 287.º, n.º 6) e o prazo de apresentação da contestação (artigo 315.º, n.º 1).
Porém, já em relação ao prazo de interposição nada se diz, o que significa que a citada norma do n.º 4 do artigo 113.º não lhe é aplicável.
Isto é, e dito de forma direta: no caso de haver vários arguidos, o disposto no artigo 113.º, n.º 14, do Código de Processo Penal, não é aplicável ao prazo de interposição de recurso da sentença (neste sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-04-2013, Proc. n.º 1721/09.8JAPT.P1.S1, referido no Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, 2016, 2.ª edição, Almedina, pág. 1294, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição, Universidade Católica Editora, pág. 1115, n.º 8 da anotação ao artigo 113.º).
Para além da referida conclusão, outra resulta do mesmo n.º 14 do artigo 113.º: este regula expressamente as situações a que é aplicável, pelo que, ao contrário do sustentado pelos reclamantes, não se verifica aqui qualquer omissão a que haja que recorrer através da integração de lacunas, com aplicação das normas do Código de Processo Civil, maxime dos seus artigos 569.º, n.º 2 e 638.º, n.º 9.»

Julgar em ditadura/julgar em democracia

 


O Centro de Estudos Judiciários teve a gentileza de publicar em formato digital e acessível on line o texto de uma intervenção que tive, a propósito do binómio «julgar em ditadura, julgar em democracia», no evento homónimo, o qual conheceu também participação o Senhor Conselheiro Luís Noronha Nascimento.

Sob o tema "Criminalizar a Política, Defender o Estado", tenho a sensação de ter produzido um contributo não consensual e até em contraciclo. Isso não se me configura como problema; problema seria se o que escrevi não fosse verdade. 

Para que possa haver opinião, aqui fica a menção. Pode aceder-se ao texto aqui [a partir da página 53 do PDF].

Populismo penal - 2

 


O populismo penal é pela sua essência autoritário: opera numa lógica securitária. A sua tribuna preferida são os media não os espaços institucionais. O seu discurso é por essência revanchista, de transmutação da prevaricação de alguns na culpabilização de todos, transformando as falhas próprias na responsabilidade dos demais. Vive da lógica recalcitrante da falta de meios, forma de apelar por mais poder.

Para o populismo penal o raciocínio preferido é a generalização, a ética preferida a do simplificado maniqueísmo: os processos que torna mediáticos são o seu espaço natural de expressão, aptos à purga e à diabolização, meios de catarse colectiva onde faz sacerdócio. Mesmo quando dão em nada, o ritual expurgatório está feito, absolvidos no Céu, queimados na fogueira do Inferno nesta terra.

Esta lógica redutora do usual no excepcional, esse culto permanente da exemplaridade, torna os seus arautos apetecíveis para a comunicação de massas, sobretudo quando loquazes. O tempo da reserva e da autocontenção verbal terminou.

O culto futurista da velocidade, isso mesmo um conceito tecnicamente fascista, deu em aliciante que baste para os populistas; mas não em tudo andar necessariamente depressa nos processos, porque a lentidão também serve aos casos em que é suposto andarem nunca ou só andarem quando: sob a aparência tecnocrática da eficiência, da produtividade e da estatística, o populismo é selectivo, aparentando-se igualitário, tornando-se política.

Posto isto, não se estranhem certos discursos, vejam-se, sim, neles, o sinal dos tempos que deixámos que se criassem. 

O espaço de liberdade e cidadania em que o processo penal se formou está hoje cercado pela nova ordem: ele transformar-se-á, em matéria de liberdade, no mercantilismo burguês em que tudo se transaciona, até as penas; no que à cidadania respeita, tornámo-nos de cidadãos em contribuintes e aí também o processo criminal se tornou num meio ditatorial de cobrança de receitas tributárias. 

Na putrefação do capitalismo selvagem que foi consentido, na colonização do Estado permitida aos interesses privados, encontra o populismo penal o seu espaço venatório. Falta hoje moral para o censurar. Ele tornou-se uma inevitabilidade. A tanto chegámos.

Depoimento de OPC sobre depoimento de testemunha ausente

 


Determina o artigo 356º, n.º 7 do Código de Processo Penal: «7 - Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.»

Por seu turno, estatui o artigo 129º, n.º 1 do mesmo diploma sobre depoimento indirecto: «Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.»

Parece-me que o primeiro dos normativos, porquanto especial, se sobrepõe ao primeiro, traduzindo um comando inderrogável porque sem excepção. O inciso nele contido «cuja leitura não for permitida» talvez suscite a dúvida sobre a excepção, mas creio que ela é resolúvel: o facto de a fonte da informação não ter sido encontrada viabiliza o testemunho indirecto de quem a ouviu dizer, mas não sobre o conteúdo do auto em que ficou registado o que ela disse.

Sendo esta, por ilógica que pareça, a articulação entre os preceitos, tema é saber se o OPC, não podendo ser inquirido sobre o conteúdo do auto poderá ser ouvido em audiência sobre o que a testemunha inquirida disse desde que não se reporte ao auto, forma sofismática que então se encontrará de permitir o que parecia proibido.

Eis o que decorre do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.07.2021 [proferido no processo n.º 1747/18.0PBPDL.L1-9, relator Abrunhosa de Carvalho e texto integral aqui]: «I – Se não for possível localizar uma testemunha, nos termos do art.º 129º/1, segunda parte, do CPP, pode o tribunal valorar o depoimento do Agente da PSP sobre o que aquela disse.»

Populismo penal - 1

 


Se há territórios jurídicos onde o populismo tem o seu local privilegiado de expressão é o da justiça penal. Logo veremos porquê.

Uma das características essenciais do fenómeno do populismo na área jurídica é o do alinhamento do que se decide, não com as exigências racionais imanentes à necessidade da solução, à razoabilidade da mesma, à sua congruência com as regras do Direito, sim com as expectativas da opinião pública; é, em suma, a expectável conformidade.

Dir-se-á que essa será decorrência de uma justiça que se aplica em nome do povo e que terá de se fazer eco do seu sentir; só que, no universo populista, a esta, já por si, abstração, cujo sentir é, aliás, imperscrutável,  sucede a do concreto sentir que os "mass media" veiculam na suas visíveis linhas editoriais, aquele cuja expressão valida o decidido, pelo aplauso, conferindo-lhe, assim, esta forma de legitimação pelo sufrágio.

Trata-se, mais rigorosamente, de uma relação dialética, porquanto se surgem decisões  a sincronizarem-se com essa valoração mediática dos factos, é porque  no espaço da comunicação social já os casos sofreram uma prévia revelação e valoração, um julgamento, em suma.

Nasce daqui o inquebrantável fenómeno da impunidade da violação do segredo de justiça; quebrá-lo seria atentar contra esse circuito comunicacional indispensável ao sistema, tal como ele se implantou, de osmose relacional entre ambos os poderes, o terceira e o quarto, o da justiça e da imprensa, com a hipocrisia de se manter a lei pela qual atentar contra o segredo de justiça é crime.

Sendo isto o que é, não se estranhará que o Presidente da República, tendo visto o Tribunal Constitucional barrar-lhe um decreto, em que jogara a sua promulgação, entre, via telefone, em directo para o noticiário de uma televisão e, não só se permita transformar em vitória política o que foi uma derrota jurídica, como se atreva a dar voz á noção de que «O Direito deve estar ao serviço da política e não a política do serviço do Direito».

Com uma só frase se desqualifica o Tribunal Constitucional e se mostra à Justiça o modo de alinhar o passo. 

Lamentável mas esclarecedor, sintomático mesmo: o populismo é isto, haver exemplos que isto permitem.


Sociedades, seus representantes: a responsabilização

 


Recentíssima publicação da Universidade Católica o livro, que se anuncia e natureza didáctica, compendia estudos que o seu autor vem efectuando no âmbito da responsabilidade nomeadamente criminal das pessoas colectivas, agora na óptica da responsabilização dos seus "dirigentes". 

Trata-se da sequência da obra publicada em 2009, pela Verbo, sob o título "Responsabilidade das Sociedades e dos seus Administradores e Representantes" e do que foi publicado nesse mesmo ano e já com segunda edição de 2018, o "Direito Penal Tributário".

São, de facto, dois os capítulos em que o tema é desdobrado, o primeiro logo directamente orientado ao tema da responsabilidade pessoal dos dirigentes, o segundo ao da responsabilidade das sociedades.

A isso se junta [páginas 69 e seguintes] uma análise de alguns crimes em especial: os crimes ditos "comuns", porquanto previstos no Código Penal [recebimento indevido de vantagem, corrupção no sector público e privado, tráfico de influência, participação económica em negócio e fraude fiscal] e os crimes previstos no Código das Sociedades Comerciais.

A bibliografia final ajuda o leitor a ampliar o estudo.

CSM: isto compreende-se?

 


O Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, Conselheiro José António Lameira, difunde, através de uma longa entrevista concedida a Fernando Carneiro, da Agência Lusa, a sua posição pessoal quanto ao controverso tema do Tribunal Central de Instrução Criminal, posição claramente contrastante com a do Presidente cessante e que, por isso, talvez devesse ter sido guardada para o local próprio. 

A difusão de pluralidade de perspectivas tem sentido. A demonstração pública de entendimentos pessoais, enquanto se é titular de um órgão já é, em si, uma outra questão. Quando a entrevista vai do A a Z dos temas hoje em causa na agenda do Conselho já se trata de uma questão dentro das questões.

A entrevista está publicada aqui. O seu título enuncia o problema: isto compreende-se?

Estatuto dos Oficiais de Justiça: projecto de revisão


 O Ministério da Justiça publicou o projecto de alteração ao Estatuto dos Oficiais de Justiça, o qual havia sido aprovado pelo Decreto-Lei n.º  343/1999, de 26 de Agosto. O texto pode ser encontrado aqui. Na apresentação pública do mesmo foi acentuado que aqueles oficiais podem, assim o projecto seja tornado lei e haja lei processual que o habilite, praticados actos até aqui próprios de magistrados judiciais, no âmbito dos denominados actos processuais de expediente.

Prevê-se, de facto, como competência do oficial de justiça da categoria de técnico superior de justiça:

a) Assegurar a regular tramitação dos processos e a prática dos inerentes atos, de acordo com as diretivas e orientações estabelecidas pelo magistrado funcionalmente competente e pela chefia da unidade orgânica;

b) Proferir despachos de mero expediente, no exercício de competência própria atribuída por lei ou, não sendo esse o caso, por delegação do magistrado;

c) Preparar a agenda dos serviços a efetuar;

d) Realizar pesquisas de legislação, jurisprudência e doutrina necessárias à  preparação das decisões e das promoções nos processos;

e) Colaborar na preparação de processos em fase de inquérito;

f) Desempenhar, no âmbito do inquérito, as competências dos órgãos de polícia criminal que lhe sejam cometidas pelo Ministério Público;

g) Colaborar na preparação de processos para julgamento;

h) Assegurar o apoio processual aos magistrados na realização de diligências;

i) Exercer as funções de agente de execução, nos termos previstos no Código de Processo Civil;

j) Desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior.

2- Sempre que as necessidades do serviço o justifiquem, em cada comarca ou em cada zona geográfica da jurisdição administrativa e fiscal, o juiz presidente e o magistrado do Ministério Público coordenador, ouvido o administrador judiciário, podem designar técnicos superiores de justiça para o exercício exclusivo de funções de assessoria técnica aos magistrados.

Por seu turno, em relação ao oficial de justiça da categoria de técnico de justiça projecta-se que seja das suas atribuições:

a) Assegurar a tramitação dos processos e a prática dos inerentes atos que não sejam da competência dos técnicos superiores de justiça, ou não estejam a estes cometidos, de acordo com as diretivas e orientações estabelecidas pelo magistrado funcionalmente competente e pela chefia da unidade orgânica;

b) Assegurar o apoio processual e a demais assistência necessária aos magistrados na realização de diligências;

c) Assegurar a realização das videoconferências;

d) Assegurar a realização do serviço externo, com exceção do cometido aos técnicos superiores de justiça;

e) Desempenhar as demais funções conferidas por lei ou por determinação superior.

Governo: alteração das leis de processo civil


Foi submetida pelo Governo à Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 94//XIV/2 visando alterar o Código de Processo Civil, as normas regulamentares do regime da propriedade horizontal, o regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª Instância e o Código do Registo Predial
Pela sua relevância e por se tratar de lei eventualmente subsidiária no âmbito processual penal, aqui fica o preâmbulo, o qual é suficientemente explicativo. O texto integral bem como os pareceres obtidos estão aqui

«Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou o surto da COVID-19 uma emergência de saúde pública de âmbito internacional, tendo considerado o surto como pandemia a 11 de março de 2020.

Na sequência da emergência de saúde pública internacional, muitos Estados, entre os quais Portugal, declararam o estado de emergência nacional, que determinou entre outras medidas o necessário confinamento dos cidadãos e, consequentemente, a redução da atividade dos Tribunais.

Neste quadro, considerando o natural aumento das pendências decorrente do entorpecimento da atividade judicial importa introduzir alterações na lei processual civil que agilizem o processado e, simultaneamente, clarifiquem os institutos permitindo uma melhor e mais célere administração da justiça.

Nessa medida, desde logo, introduz-se alterações no regime da prova pericial, alargando, de forma clara, o âmbito legal das entidades competentes para a sua realização a outras entidades oficiais ou particulares, como sendo as universidades, que de facto já as realizam nos processos judiciais de forma célere e credível, designadamente no domínio do reconhecimento de letra ou assinatura.

Por outro lado, reserva-se o direito da parte requerer a realização de perícia colegial apenas para os casos em que a especial complexidade do objeto ou o conhecimento de matérias distintas o justificar.

Por último, neste conspecto, a fim de evitar a marcação da diligência de prestação de compromisso do perito, que ocupa a agenda do Tribunal e obriga à deslocação injustificada dos envolvidos, estabelece-se a obrigatoriedade do compromisso escrito sempre que o juiz não assista à diligência.

Repristina-se a redação anterior do artigo 560.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, para assegurar, por um lado, a igualdade entre autores que estão e não estão representados por mandatário judicial e, por outro lado, entre o autor e o réu no tocante à falta de comprovação do pagamento da taxa de justiça.

Na sequência da reforma introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, instituiu-se na lei processual civil, como princípio, a obrigatoriedade da realização da audiência prévia.

Ora, a prática judicial dos últimos anos tem demonstrado ser imperiosa a revisão de tal matéria, porquanto mostra-se de difícil compreensão, especialmente em contexto de pandemia, a obrigatoriedade da realização de uma diligência judicial, com necessária deslocação de intervenientes e preenchimento de agenda, quando ao juiz apenas cumpra apreciar exceções dilatórias ou conhecer do mérito da causa, desde que já tenha sido cumprido o contraditório quanto a estas questões, por escrito.

Assim, restringe-se a obrigatoriedade da realização de audiência prévia quando a mesma seja relativa a questões sobre as quais as partes não tenham tido oportunidade de se pronunciar.

A fim de evitar a realização, no mesmo processo, de várias audiências prévias ou várias sessões da referida diligência, mormente com o fundamento da suspensão da instância a requerimento das partes, estatui-se que a audiência prévia não pode ter lugar mais do que uma vez.

Por último, considerando a simplicidade do ato em causa, estende-se a possibilidade de dispensa da audiência prévia, pelo juiz, quando a mesma tenha por finalidade a mera programação da audiência final.

A prática judiciária tem também demonstrado que a convocação de tentativas de conciliação é por vezes efetuada de forma dilatória e desnecessária em casos em que já teve lugar ou há lugar a audiência prévia.

Donde, restringe-se a realização da tentativa de conciliação aos processos em que esta não tenha tido lugar, ou não haja lugar, a audiência prévia, impedindo que a mesma possa ser suspensa ou realizar-se, exclusivamente para esse fim, mais que uma vez.

Como é consabido, o Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, fixa em 10 o número de testemunhas que podem ser oferecidas pelas partes, embora, em função da complexidade do processo, o juiz possa admitir número superior. Contudo, não vigora atualmente qualquer limite ao número de testemunhas produzidas por cada facto.

Ora, é de toda a conveniência consagrar na lei processual civil um limite de produção de testemunhas – três – por cada facto, sendo que sempre poderão ser ouvidas mais se o juiz o entender necessário, por não ter ficado suficientemente esclarecido.

No mais, no plano internacional são reconhecidas as vantagens de celeridade processual do recurso ao depoimento testemunhal escrito ou previamente produzido no domicílio profissional de um dos advogados, atualmente previstos nos artigos 517.º e 518.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual.

Trata-se de um modelo muito utilizado no regime processual civil francês e norte-americano, que demonstra reconhecidas vantagens para a celeridade e tempo de duração dos processos, mas que no sistema judicial português ainda tem utilização meramente residual.

Nessa medida, tendo em vista estimular as partes a recorrer a este meio de produção de prova testemunhal estatui-se que as custas do processo são reduzidas a metade, sempre que, até ao despacho que marque a audiência final, for apresentada ata de inquirição da totalidade das testemunhas arroladas pelas partes.

Por outro lado, altera-se o regime do depoimento apresentado por escrito permitindo a sua utilização, sem a necessidade de autorização judicial nesse sentido, desde que as partes estejam de acordo ou no caso de a testemunha ter conhecimento de factos por virtude do exercício das suas funções. Introduz-se, ainda, a obrigação do depoimento vir acompanhado de cópia de documento de identificação do depoente e indicação da existência de alguma relação de parentesco, afinidade, amizade ou dependência com as partes ou qualquer interesse na ação.

Por último, neste conspecto, permite-se que o depoimento por escrito possa ser efetuado perante notário, bem como a possibilidade de o juiz, oficiosamente ou a requerimento das partes, determinar a renovação do depoimento na sua presença.

Com exceção do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, não é possível à luz da lei processual civil portuguesa a prolação oral de sentenças. Ora, julga-se que inexiste fundamento para manter tal situação.

Assim, institui-se a possibilidade, de nos casos de menor complexidade, a sentença ser oralmente proferida para a ata e sumariamente fundamentada, à semelhança do que já acontece no processo penal no âmbito dos processos sumário e abreviado.

Nesse caso, a discriminação dos factos provados e não provados pode ser feita por remissão para as peças processuais onde estejam alegados, sendo que a sentença limitar-se-á à parte decisória, precedida da identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado.

Em sede de aplicação do direito aos factos, o n.º 2 do artigo 608.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, já permite que o juiz não resolva todas as questões jurídicas suscitadas, desde que para tanto a decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Por maioria de razão, agora estende-se este regime à matéria de facto, permitindo que o juiz, em sede de decisão da matéria de facto, não tenha de julgar toda a factualidade alegada, quando seja manifesto o juízo de prejudicialidade existente entre as questões, segundo as várias soluções plausíveis da matéria de direito.

Reintroduz-se o articulado da réplica para resposta às exceções alegadas pelo réu e retoma-se o tratamento da compensação como exceção peremptória, em coerência com a sua natureza de causa de extinção das obrigações que lhe é assinalada pela lei substantiva: a compensação só constitui objeto de pedido reconvencional no caso de o réu pretender a condenação do autor no pagamento do excedente do seu crédito sobre o crédito alegado pelo primeiro.

No que respeita ao regime do maior acompanhado introduz-se a regra de conhecimento oficioso da incompetência relativa, bem como a possibilidade de audição do beneficiário por meios telemáticos sempre que este não resida na área do concelho onde se mostre sediado o tribunal onde pende o processo, de modo a assegurar, por um lado, a proximidade entre o tribunal e o beneficiário e, por outro lado, de modo a obstar às dificuldades de mobilidade que afetam grande parte do universo dos beneficiários, especialmente em contexto de pandemia.

No tocante ao recurso de apelação clarificam-se os ónus, e a sede da sua alegação, que vinculam o recorrente que impugne a decisão da questão de facto, e reconhece-se ao juiz relator a faculdade de decidir liminar e sumariamente essa impugnação, sempre que, logo em face da alegação mesma do recorrente, ela se mostre patentemente infundada.

A aferição dos fundamentos específicos da revista é agora atribuída, em exclusivo, ao juiz relator do Supremo Tribunal do Justiça, cabendo da decisão deste, que admita ou rejeite a revista, reclamação para a formação constituída por três juízes, cuja decisão, sumariamente fundamentada, é definitiva. Por uma razão de extensão de competência, aquela formação é ainda competente, tendo a reclamação como fundamento a verificação de alguns dos pressupostos específicos da revista, para apreciar os restantes fundamentos invocados pelo reclamante, com o que se evita a duplicação de procedimentos reclamatórios, dirigidos a órgãos diversos.

Ordenada pelo propósito de garantir a tutela da confiança dos particulares, consagra-se a faculdade de o Supremo Tribunal de Justiça, orientado por critérios de segurança jurídica e de equidade, estabelecer os efeitos temporais da uniformização de jurisprudência, prevenindo os inconvenientes, para a situação jurídica dos particulares, da sua aplicação retroativa irrestrita.

Os fundamentos do recurso extraordinário de revisão são objeto de uma reponderação geral, através da individualização das patologias processuais que, à luz dos parâmetros do processo equitativo, devem permitir a revisão de uma sentença transitada em julgado. Mantém-se, porém, um adequado equilíbrio entre a intangibilidade do caso julgado e a possibilidade da sua rescisão por inarredáveis imperativos de justiça, de modo a que se possa proceder à reparação da injustiça da sentença transitada em julgado e ao proferimento de uma nova decisão fundada no direito.


Em sede de matéria recursória introduzem-se também alterações no Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 305/83, de 29 de junho, na sua redação atual, estatuindo que para além dos casos em que é sempre admissível recurso, do acórdão da Relação cabe, ainda, recurso se puder ser invocado um dos fundamentos específicos enumerados no n.º 2 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, harmonizando, assim, o regime geral dos recursos com as normas próprias de recursos inscritas no Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 305/83, de 29 de junho, na sua redação atual.

II

No tocante ao regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância resolve-se, de modo expresso, o problema suscitado pela falta de resposta do autor à compensação invocada pelo réu, harmonizando o regime da sentença destes procedimentos com a alteração prevista para o Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual.

Por último, dissipam-se as dúvidas quanto à exequibilidade extrínseca da ata da assembleia de condóminos, estatuindo-se que o título executivo suscetível de permitir a realização coativa das prestações devidas ao condomínio é constituído por aquela ata e pelo documento de notificação admonitória do condómino relapso, com a especificação dos valores em dívida.»

CDS-PP: projectos de lei


É todo um vasto pacote de medidas apresentadas pelo Grupo Parlamenta do CDS-PP na Assembleia da República sobre temas da actualidade jurídico-penal. Fica aberta a discussão.

Projeto de Lei 870/XIV/2 [CDS-PP]
Procede à segunda alteração da Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, que Aprova o Estatuto do Ministério Público, criando o crime de sonegação de rendimentos e enriquecimento ilícito e alterando as condições de exercício de funções não estatutárias

Projeto de Lei 869/XIV/2 [CDS-PP]
Procede à vigésima alteração à Lei n.º 21/85, de 30 de julho, que Aprova o Estatuto dos Magistrados Judiciais, criando o crime de sonegação de rendimentos e enriquecimento ilícito e alterando as condições de exercício de funções não estatutárias

Projeto de Lei 868/XIV/2 [CDS-PP]
Criação do Estatuto do Arrependido

Projeto de Lei 867/XIV/2 [CDS-PP]
Cria o crime de sonegação de proventos e revê as penas aplicáveis em sede de crimes de responsabilidade praticados por titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos

Projeto de Lei 866/XIV/2 [CDS-PP]
Criação do Regime de Proteção do Denunciante

Gralhas


Aos leitores que este blog tenha tenho de pedir desculpa pelas gralhas que começam a enxamear o texto. Num último post cometi o imperdoável erro de ter trocado o nome da autora de um livro de que deixei notas de leitura. Quem leu o texto assinalou-me uma outra, a da troca da palavra «determinada» por «determinação». 

Enfim, a soma do cansaço, rapidez na escrita e alguma desatenção, gera esta preocupante situação. 

Gralha não é apenas o nome de uma ave vistosa, sim, pelos vistos, o meu actual modo de escrever.

Justificação e negligência

 


Breve nas suas 126 páginas, concentrado na forma de expor, rigoroso na utilização dos conceitos, claro no raciocínio e assertivo nas conclusões, o livro, editado em Maio deste ano, dá à estampa a dissertação de mestrado que a sua autora sustentou o ano passado na Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

Na página 101 Rebeca Campanário vai ao tema que expõe no título da obra e conclui que «a função que a inexigibilidade objectiva desempenhada no quadro dos ilícitos dolosos - exclusão da ilicitude - é assegurada de outra forma no quadro dos ilícitos negligentes- exclusão da tipicidade»; a antecedente exposição prepara os achados conclusivos que resultam da opção pela qual não se tornará assim necessário, para encontrar legitimação da conduta negligente, admitir que se possam convocadas, para o efeito, as causas justificativas típicas, seja a legítima defesa, o estado de necessidade e o consentimento do ofendido que são as admitidas e de modo não unânime.

Na sua narrativa Rebeca Campanário prepara o leitor para que a acompanhe no progresso do seu pensamento. First the first, repudia que a figura da negligência possa ter natureza residual, contextualizando esta figura no domínio de uma sociedade industrializada, uma «sociedade de risco».

De seguida, em jeito de pedagogia dos conceitos, surge a enlace do conceito de "ilícito" e o de "tipo" que o configura ante a violação de uma norma jurídico-criminal de determinação, sendo que, face a uma concepção do ilícito pessoal, que é a sua, existe uma "complementaridade funcional" entre o tipo incriminador e o tipo justificador, recusando a autora aderir à teoria dos elementos negativos do tipo como meio de recorte dos casos de desvalor da conduta; a isso segue-se a configuração do penalmente relevante como a justaposição da "exigibilidade objectiva" numa determinada situação concreta, ou seja o decorrente da formulação de «um juízo pessoal-objectivo de contrariedade face a uma norma de determinação», simbiose, pois, do juízo de um homem médio colocado na situação concreta vivenciada pelo agente da conduta.

A parte mais interessante da narrativa, em minha opinião é aquela em que, unificando o dolo e a negligência naquilo em que em ambos existem os elementos intelectuais e volitivos respectivamente da representação mental e a adesão da vontade ao tipo objectivo de ilícito, Rebeca Campanário opta por considerar que o elemento de destrinça da negligência é «a atitude interior de descuido ou leviandade para com o dever-ser jurídico-penal», por contraposição com a «atitude interior de contrariedade ou indiferença com o dever-ser jurídico-penal», sendo que, na diferenciação do dolo eventual face à negligência consciente em ambos os casos «se preenche o dolo natural», situando o leitor para uma perspectiva de maior alcance do que a resultante da dicotomia clássica com que o binómio era ponderado.

Convidando à leitura, que terá de ser pausada, ficamos por aqui neste breve apontamento, deixando de lado vários dos problemas que servem de referencial para a exposição, como o tema da causalidade ou do risco permitido.

Obra académica, tem directa projecção numa prática forense que se queira estribada não na casuística mas balizada por critérios de avaliação que estejam escorados na teoria, como tal no pensamento e assim numa justiça racionalizada.

Há nos crimes de recorte negligente um perigo difuso, resultante da contemporânea generalização de deveres complexos, alguns a exigirem para o seu cumprimento o domínio de tecnicismos e até de avaliações sofisticadas do que seja exigível, os quais são depois convertidos em forma de imputação de resultados materialmente subsequentes numa lógica de ligeireza do tipo: "post hoc ergo propter hoc" [depois disto, logo por causa disto]. 

Ganha, por isso, todo o sentido, a frase que a autora convoca na sua dissertação: o que não se encontra no âmbito do dolo ou da negligência pertence ao domínio do acaso, ao que acrescento: a arrogância do homem ao considerar tudo previsível e, assim, tudo exigível, é que abre a porta ao injusto da punição da inconsideração razoável; injusto porque há na vida a causa em virtual sem a qual a vida não teria oportunidade de surgir. 

Crime fiscal e suspensão da pena de prisão

 


O artigo 14º do RGIT estabelece:

«1 - A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
«2 - Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:
a) Exigir garantias de cumprimento;
b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
c) Revogar a suspensão da pena de prisão.»

Nesta linha faz sentido o sentenciado pelo Acórdão da Relação de Coimbra de 19 de Maio de 2021 [proferido no processo n.º 30/19.9IDVIS-C1, relatora Ana Carolina Cardoso, texto integral aqui], segundo o qual: «Por contrariar lei especial, concretamente a norma do artigo 14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 05-06-2001), a suspensão da execução da pena de prisão decorrente da prática de crime previsto naquele regime jurídico não pode ficar condicionada ao pagamento de quantia inferior à da prestação tributária devida.»

A questão fora suscitada pelo recorrente para quem o citado preceito penal fiscal deveria ser interpretado em articulação com o estabelecido no artigo 51º, n.º 2 do Código Penal, no qual se determina que «os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir» e no caso, estar-se-ia entre condenado cujas condições económicas não permitiriam satisfazer a integralidade do valor em causa, clamando por uma redução do valor.

Ora é ao incidir sobre este tema que o acórdão desenvolve o seu raciocínio, fundado por um lado no sentido de um Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido em matéria de abuso de confiança fiscal, por outro pela jurisprudência do Tribunal Constitucional que tem vindo a configurar como compatível com a Constituição aquele referido artigo 14º do RGIT.

Permitimo-nos, porquanto de mais fácil percepção, esta longa citação do teor do aresto, o qual começa por rememorar que o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 8/2012 (publicado no DR, 1ª Série, n.º 206, de 24 de outubro de 2012)fixou a seguinte jurisprudência:

“No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.”.

A partir daqui eis o decidido:

«Esta jurisprudência fixada tem sido objeto de distintas interpretações pelas instâncias, convocando o recorrente na sua fundamentação recursiva a parte da jurisprudência das Relações que entende só poder ser imposta a condição prevista no art. 14º, n.º 1, do RGIT se resultar do juízo de prognose realizado que o condenado tem condições para cumprir a obrigação em causa (v. os Acórdãos da Relação de Lisboa de 10.4.2013, 18.7.2013 e 26.2.2014, citados pelo recorrente, e o recente aresto da Relação de Guimarães de 8.2.2021, no proc. 30/18.6T9VVD.G1, em www.dgsi.pt).

«Para dilucidar a questão, essencial será revisitar os fundamentos do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2012, única forma de lograr uma correta interpretação do sentido do sumário enunciado.

«Vejamos:

«A questão foi inicialmente colocada ao nível da constitucionalidade da exigência legal de imposição do pagamento da prestação tributária em dívida como condição para aplicação da pena substitutiva de suspensão da execução da pena de prisão, prevista no art. 14º, n.º 1, do RGIT.

«De forma uniforme, o Tribunal Constitucional pronunciou-se várias vezes pela conformidade daquela imposição com os comandos constitucionais, à margem da condição económica do condenado/responsável tributário, com os seguintes fundamentos, referidos no próprio AUJ:

1º- o juízo quanto à impossibilidade de pagar não impede legalmente a suspensão;

2º- sempre pode haver regresso de melhor fortuna;

3º- a revogação não é automática, dependendo de uma avaliação judicial da culpa no incumprimento da condição; a revogação é sempre uma possibilidade e não dispensa a culpa do condenado; o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena.

Cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 327/2008 – Não julga inconstitucional a norma que se extrai do art. 14º do RGIT, em conjugação com o n.º 5 do art. 50º do Código Penal, interpretada no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de duração da pena de prisão, concretamente determinada, a contar do trânsito em julgado da decisão, da prestação tributária e legais acréscimos -, 256/2003, 335/2003, 376/2003, 500/2005, 309/2006, 29/2007 – este conjuga o art. 14º, n.º 1, com o art. 9º do RGIT, que dispõe que o cumprimento da sanção aplicada não exonera do pagamento da prestação tributária e legais acréscimos -, 277/2007, 563/2008, 242/2009, 587/2009 – Não julga inconstitucional a norma constante do n.º 1 do art. 14º do RGIT quando interpretada no sentido de impor, em qualquer circunstância, a condição de pagamento do devido, para que possa ser decretada a suspensão da execução da pena de prisão aplicada -, e 237/2011, entre outros.

«Relativamente à doutrina, Germano Marques da Silva (Direito Penal Tributário, 2ª ed., Univ. Católica Editora, págs. 133 a 136) vinca a obrigatoriedade da imposição do dever de pagamento da prestação tributária prevista no art. 14º, n.º 1, do RGIT, que é uma lei especial face ao Código Penal, devendo esta ser conjugada com a disposição do Código Penal quanto ao prazo de suspensão – ou seja, apenas na parte omissa. A propósito, refere: “A imposição de pagamento da prestação tributária em dívida não é exclusiva dos crimes tributários. Também o art. 51º do Código Penal, na redação vigente à data da publicação do RGIT, dispunha que a suspensão da execução da pena de prisão podia ser subordinada ao pagamento dentro de certo prazo da indemnização devida ao lesado. A especialidade do art. 14º do RGIT consiste em que a imposição da condição é obrigatória”. E mais à frente esclarece: “O que sucede se o condenado não cumprir a condição de pagamento da prestação tributária? Cremos que pode ser revogada a suspensão da execução, desde que o incumprimento seja culposo e só se o for”. (sublinhado nosso).

«Em suma, e de forma idêntica ao que o Tribunal Constitucional refere, o que é defendido é que só o não pagamento culposo da condição de suspensão pode determinar a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, sendo o momento próprio para aferir da culpa do condenado aquele em que a possibilidade de revogação da pena substitutiva venha a ser colocada – conforme preveem expressamente os arts. 55º e 57º, n.º 1, a contrario, do Código Penal.

«Regressando à fundamentação do AUJ n.º 8/2012, após referir existirem casos concretos em que o agente, por muito empenho que demonstre, não consegue cumprir a condição imposta, em lado algum encontramos sequer resquícios de um entendimento de ser possível a substituição da pena de prisão pela suspensão da execução da mesma pena sem que seja condicionada ao pagamento da totalidade do imposto em dívida!

«Impõe-se considerar que nos acórdãos recorrido e fundamento estava em causa a opção pelas penas alternativas de prisão ou de multa, e não a substituição da pena de prisão pela pena de substituição a que se refere o art. 14º, n.º 1, do RGIT. E é sob este pressuposto que a enunciada uniformização tem de ser lida.

«Vincamos, por relevante, os seguintes excertos da fundamentação do AUJ em análise que determinou a elaboração do sumário que, só por si considerado, poderá conduzir a equívocos (destacados e sublinhados nossos):

“Nada impede que concluindo o julgador pela impossibilidade de cumprimento, se repondere a hipótese de optar por pena de multa, pois o processo de confeção da pena a aplicar não é um caminho sem retorno, há que avaliar todas as hipóteses e dar um passo atrás, se necessário, encarando todas as soluções jurídicas pertinentes, conforme estabelece o art. 339º, n.º 4, do C.P.P. (…)

Ora, o que é de aplicação automática é a condição, não a suspensão, que demanda formulação de lógico juízo prévio: para que se verifique a imposição do condicionamento necessário é que antes se tenha optado exatamente pela suspensão, uma suspensão com contornos especiais, mas exatamente por isso a merecer maiores cuidados.

(…) não é a suspensão que é imposta; uma vez eleita a solução de suspensão, sabido é que terá necessariamente aqueles contornos, aquela forma de reparação e não outra, a reposição na íntegra do devido (…)

A óbvia, patentemente expressa e declarada compressão da liberdade do julgador, levada em forma de lei no art. 14º, n.º 1, do RGIT (…)

A escolha da pena de substituição é um prius em relação à imposição da condição.

Prevendo a penalidade a alternativa prisão/multa, incidindo a opção pela pena de prisão, de duas, uma: ou é eleita a pena de prisão efetiva ou a pena de substituição, a pena suspensa. Mas porque no caso a suspensão ficará subordinada a condição com contornos pré-definidos, a opção não pode ser cega, tem de ser ponderada, avaliada, porque senão deixa de ser um poder dever (…)

Feita a escolha, a adoção da medida de substituição, cessa a liberdade de punição, porque imposta é a subordinação à condição; o juiz fica subordinado, amarrado, ao incontornável passo seguinte, que é impor a subordinação ao pagamento.

Mas porque assim é, será nesse primeiro momento, em que é possível o exercício de liberdade, que poderá avaliar do sucesso da medida e mesmo cogitar sobre o regresso ao estádio anterior e pensar sobre a escolha de pena que temporariamente, como mero exercício de raciocínio, não foi tida então em consideração e tomada como boa solução.

Por último, o julgador sempre terá uma palavra a dizer sobre o prazo de pagamento, para mais no âmbito de uma norma especial.

Pelo exposto, opta-se pela solução do acórdão fundamento.”

«Um AUJ não poderia nunca, como é evidente, afastar a aplicação de lei expressa; tal só lograria ser obtido através de uma declaração de inconstitucionalidade, que foi ao longo dos anos negada, de forma unânime, pelo Tribunal Constitucional.

«O que resulta de forma clara do AUJ n.º 8/2012 é o seguinte:
a) No caso de o crime fiscal ser punível, em abstrato, e em alternativa, com pena de prisão ou pena de multa, o julgador opta, perante as circunstâncias, por uma das penas;
b) Caso a opção seja a pena de prisão, após a determinação da pena em concreto, pondera a eventual aplicação de uma pena de substituição;
c) Se a opção incidir sobre a suspensão da execução da pena de prisão, tem o julgador de considerar, para a sua aplicação, a imposição obrigatória da condição prevista no art. 14º, n.º 1, do RGIT;
d) Nessa altura, deverá efetuar um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, sob pena de nulidade (conforme impõe o AUJ);
e) Concluindo pela impossibilidade, presente e futura, de o condenado poder cumprir a condição, cuja aplicação é automática, deverá o julgador regressar ao primeiro passo da decisão relativa à determinação da sanção (escolha da pena a aplicar, prisão ou multa);
f) Se for de afastar a aplicação da pena de multa, por via do art. 70º do Código Penal, e concluir pela incapacidade do condenado de cumprir a condição de suspensão legalmente imposta pelo art. 14º, n.º 1, do RGIT, nem deva/possa ter lugar outra pena de substituição, terá o condenado de cumprir a pena de prisão (no mesmo sentido, cf. Ac. desta Relação de Coimbra de 19.3.2014, no processo 189/09.3IDSTR.C1, relatado pelo Juiz Des. Jorge Dias, e de 12.4.2011, no proc. 89/04.3TAACB.C1, rel. pela Juíza Des. Elisa Sales, ambos em www.dgsi.pt, e o n/ Ac. de 15.1.2020 proferido no proc. 38/14.0TASJP.C2).

«Em resumo, conforme sumaria o Ac. da Relação do Porto de 11.9.2019 (Coletânea de Jurisprudência n.º 297, tomo IV, 2019, pág. 213-215), “O juízo de prognose a que alude o AUJ 8/2012 apenas é necessário quando o crime tributário em causa for punível com pena de prisão ou, em alternativa, com pena de multa” – sendo para este efeito que é imposta a obrigação de o julgador sopesar as condições económicas do condenado para satisfazer a condição obrigatória prevista no art. 14º, n.º 1, do RGIT”.

«Concluímos assim, e salvo o devido respeito por opinião contrária, pela desconformidade da tese defendida pelo recorrente primeiro com a letra da lei (art. 14º, n.º 1, do RGIT), e depois com o próprio Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2012.

«Desta forma, por contrariar lei especial e expressa, não pode a suspensão da execução da pena de prisão pela prática de crime previsto no RGIT ser condicionada ao pagamento de quantia inferior ao da prestação tributária em dívida.»

A íntima presunção

 


Haver necessidade de sentenciar em recurso que a existência de antecedentes criminais não pode fazer presumir a autoria do que esteja em julgamento, deveria dar azo a uma reflexão quanto ao modo como se forma em certas mentes, o conforto repressivo da íntima convicção.

Eis o que determinou o Tribunal da Relação de Guimarães no seu acórdão de 10 de Maio de 2021  [proferido no processo n.º 76/19.7PAPTL.G1, relator Armando Azevedo, texto integral aqui]:


«I- Na ausência de prova direta, a lei não permite extrair, no todo ou em parte, o facto desconhecido que se pretende apurar, através dos antecedentes criminais do arguido pela prática de crimes da mesma natureza.
«II- Os antecedentes criminais não relevam para efeitos de determinação da culpabilidade, mas apenas para a determinação da pena, cfr. artigo 124º, nº 1 do CPP e artigo 71º, nº 2 al. e) do CP.»

Admitir que o contrário seja pensável sequer, é sombra de um novo mundo que nos aguarda, com o ocaso do sistema liberal, que se quis fosse o travejamento garantístico do sistema processual penal e cujo fim o autoritarismo populista já prenuncia.

+

Origem da imagem: quadro do pintor Duarte Vitória aqui

Arresto preventivo: critério conforme o requerente


Haja idêntico critério para os arrestos preventivos requeridos pelo Ministério Público, em que a evidência do receio de perda de garantia patrimonial é quase feita decorrer da indiciação de crime de cunho patrimonial, sobretudo quando seguido de branqueamento, numa lógica de que este acto de ocultação faz presumir outros que impeçam o ressarcimento do dano ou a recuperação dos activos a declarar em perda.

Tratando-se de arresto requerido por lesado, mas estatuindo entendimento que não exclui, nem excluo, possa ser extensível sejam quem for o requerente, sentenciou o Tribunal da Relação de Guimarães no seu acórdão de 10 de Maio de 2021 [proferido no processo n.º 1492/17.4T9VRL-A.G1, relator Paulo Serafim, texto integral aqui], com apoio em outra jurisprudência: 


«I – Ressuma do disposto conjugadamente nos arts. 391º e 392º, nº1, do CPC, ex vi do art. 228º, nº1, do CPP, que os requisitos para o decretamento do arresto preventivo são: a) a probabilidade da existência do crédito; b) comprovação de justo receio de perda da garantia patrimonial para satisfação daquele crédito.
«II – A verificação do justo receio de perda da garantia patrimonial pressupõe que se alegue e prove que o devedor/requerido já praticou ou se prepara para praticar actos de alienação ou oneração relativamente ao património que possui, legitimando tal postura que se conclua, face às regras da experiência e da lógica, que se prepara para subtrair os seus bens à acção dos credores, assim criando o perigo de tornar impossível ou assaz difícil a cobrança do provável crédito constituído. Não se exige que a perda da garantia se torne efetiva, mas apenas que haja um receio justificado de que tal perda virá a ocorrer.
«III –O requerente tem o ónus de alegar e provar, ainda que indiciariamente, factos concretos que revelem o justificado receio à luz de uma prudente apreciação, não bastando o receio subjectivo, fundado em simples conjeturas ou generalidades, nem a mera recusa de cumprimento da obrigação.
«IV – In casu, não é alegado no requerimento inicial qualquer facto concreto suscetível de, a provar-se, legitimar um juízo positivo sobre a provável e iminente alienação ou oneração de património da Requerida e consequente perigo fundado de perda da garantia patrimonial das indiciárias credoras, risco sério que o decretamento do procedimento pretende acautelar.
«V - Não estamos perante uma deficiente alegação ou mera insuficiência dos factos invocados relativamente ao preenchimento do requisito do justo receio da perda da garantia patrimonial a impor ao juiz o convite ao aperfeiçoamento do alegado, mas sim perante a inexistência de tal alegação, pelo que nada há a suprir.»

A roda das horas


Se há uma regra de comportamento deste blog é ter-se tornado intermitente. São circunstâncias da vida do seu autor que determinam tal modo de ser.

Excesso de trabalho na profissão, o que há pudor em dizê-lo numa altura em que, infelizmente, muitos colegas estão à míngua de oportunidades  para satisfazerem os seus encargos, esse excesso é causa directa, mas aparente, afinal.

Sucede que, servida hoje por meios electrónicos, um computador com 16 GB de RAM e 2 TB de disco, com o arquivo alojado numa "nuvem", todos os documentos digitalizados, assinatura de tantas bases de dados que alojam informação relevante e com acesso on line, em suma, com a tecnologia supostamente a ajudar, tornei-me, e sei que nos tornámos escravos da profissão.

Há, evidentemente, a obsessão twitteriana de consultar em cada momento o smartphone para actualizar a informação sobre o que se passa no mundo, para além do nosso pequeno mundo, as newsletters que, uma a uma, se vão assinando, tão indispensáveis parecem, e que começam pela madrugada ao trazerem-nos as capas dos jornais e fecham à noite com o resumo do dia e inundam o dia com actualizações permanentes. Um amigo meu envia-me, em lote, dezenas de jornais, de que não leio um que seja, pois ler exigiria o dia inteiro. E agradeço muito, sem confessar-lho.

Há também o sem descanso das mensagens que chegam a todas as horas, dia ou noite, pelos mais diversos canais, do email, ao Whatsapp, deste ao Signal, pelo Telegram, pelo Skype, até pelo Messenger. E evito os podcasts, há semanas que não vejo televisão, raramente ouço notícias na rádio, na imprensa vejo o mais directo e passo adiante, poupando-me aos comentadores enciclopédicos. 

Não é falta de interesse cívico, é apenas o dia ter vinte e quatro horas, cada hora sessenta minutos e, cada vez mais, cada minuto ter mesmo e apenas sessenta segundos. A angústia é eu ter setenta e dois anos já gastos.

Ante tudo isto, troquei as horas do dia, dei comigo a acordar às quatro da manhã, qual vigília monástica, sem cantar matinas, em alguns dias a trabalhar até perto das quatro, qual coruja noctívaga de triste piar.

E, no entanto, ficam por ler os livros que vou comprando, as revistas que assino, por escrever os livros de há muito iniciados, até os artigos que me atrevi a prometer. A ausência aqui é, pois, parte de uma insuficiência maior.

Claro que, neste admirável mundo novo, há o computador a fazer longas actualizações, o sistema operativo a crashar por conflitos de software, a internet em baixa, a espera até restabelecer o sinal e até lá o pavor de não ter feito um backup.

Mas há sobretudo um inefável não sei o quê a ter tornado a vida insuportável. Faço listas, planos, programo, divido as tarefas pelos dias, dentro destes o trabalho pelas horas. E passo cada vez mais expectativas para o dia seguinte, promessas para logo que possível.

Comprei um fantástico livro do Umberto Ecco intitulado A Obsessão das Listas, magnificamente ilustrado. Folheei-o sem ler. Está ali, na estante, a servir de consolo.

Outrora a chegada do correio marcava o dia, a carta em papel era a má consciência do dever por cumprir. Além disso, era tudo lento. Tinha uma máquina de escrever, um telefone analógico em que se discava o número. Assinava fichas com jurisprudência, mensais, em cartolina azul, colava as actualizações aos códigos, cortando fotocópias da folha oficial e anotando à mão o sentido da mudança.

Tínhamos, porém, tempo, mais tempo.

A contemporaneidade é andar mais depressa num lugar cada vez mais pequeno, como ratos enlouquecidos na roda da incessante busca.

Outro dia, num julgamento, alguém, não importa quem e tão amigo foi, veio amigavelmente fazer-me saber que lia este espaço. E animar-me a que continuasse. Quase envergonhado terei murmurado: assim tenha oportunidade.

É claro que as redes sociais são espaços de liberdade; quando temos leitores há, porém, um difuso dever de corresponder à gentileza, sobretudo quando o que escrevemos visa dar aos outros o que encontrámos. 

Vim, por isso, aqui, neste Domingo. 

A inércia soma-se ao cansaço. Não sei sobre o que escreverei. Outra faceta da actualidade é parecer que está tudo dito, na variante perversa de aparentar ser inútil dizer seja o que for. Ante um mundo tão vocal, o silêncio tornou-se refúgio ou ao menos sinal de boas maneiras.

A Assassina da Roda


«Sob o título "A Desordenada Paixão de Apetecer", escrevi este texto para a folha de sala da peça de teatro "A Assassina da Roda", baseada num romance escrito por Rute de Carvalho Serra, com encenação e interpretação de Maria Henrique. O contexto da narrativa, a condenação pela Casa da Suplicação, em 1772, de Luiza de Jesus, acusada de ter morto 33 crianças retirada da Roda dos Enjeitados de Coimbra. Assisti a noite passada ao espectáculo no Teatro da Trindade. Interpretação magistral. 

«Tudo se move num mundo de horror, o mundo dos expostos e dos enjeitados.
Horror, o dos enjeitados, «filhos da desgraça», frutos indesejados, tropeços à conveniência, sobrepesos à miséria de quem os deu à luz.
Horror, o do seu abandono, condenados à sorte logo no acto de terem nascido, a somarem aos que nem chegaram a ter vida própria.
Horror o que mostram os números sobre as taxas de mortalidade destes desgraçados, tomando como exemplo a cidade de Lisboa e, nesta, o Hospital Real de Todos os Santos, que D. João II mandara erigir em 1492, depois de autorização do Papa Sisto IV, e do qual fazia parte um “criandário” destinado precisamente a receber os enjeitados, incorporando o Hospital do Colégio dos Meninos Órfãos, criado pela mulher de D. Afonso III, e cuja gestão estava confiada, desde 1530, por édito de D. João III, à Congregação dos Cónegos Seculares dos Lóios:
«No ano de 1743 entraram no Hospital Real de todos os Santos desta cidade, pela roda e pelo portal da casa dela, 1.038 crianças expostas, a saber 545 meninos e 493 meninas; com 1.717 que no princípio se estavam criando, faz o número de 2.755. Faleceram das mesmas crianças, na casa da roda, e das que se tinham dado a criar, 778.»
Para tudo isto confluíam vários factores, desde logo a noção de legitimidade da filiação, apenas reconhecida quanto àqueles que fossem fruto de matrimónio legalmente reconhecido, o que logo escorraçava para fora da lei quem não tivesse essa origem tida por legítima.
Nasce aí o conceito de enjeitados, de que é espelho a lei máxima da época, concretamente as Ordenações Filipinas (Título 88, § 11), as quais, codificando a legislação antecedente, estavam em vigor desde 1603, sobrevivendo mesmo à Revolução de 1640. E que, nesta parte, reproduziam quanto constava já das Ordenações Manuelinas, suas antecedentes (Título 67, § 11), publicadas entre 1512 e 1514 e que em 1521 substituiriam aquelas.
Em tal corpo normativo provia-se sobre os enjeitados, sintomaticamente na parte em que tratava dos órfãos, como se de uma mesma categoria se tratasse, e de facto, pela antiga legislação, os expostos eram considerados órfãos e, terminada a sua criação nas Casas de Caridade, eram entregues aos Juízes do Órfãos para lhes dar tutor, o qual devia mandar-lhes ensinar qualquer ofício.
E assim rezava a lei sobre «as crianças, que não forem de legítimo matrimónio, forem filhos de alguns homens casados, ou de solteiros» provendo que: «[…] primeiro serão constrangidos seus pais que os criem, e não tendo eles por onde os criar, se criarão à custa das mães. E não tendo eles, nem elas, por onde os criar, sejam requeridos seus parentes, que os mandem criar. E não o querendo fazer, ou sendo filhos de religiosos, ou de mulheres casadas, os mandarão criar à custa dos hospitais, ou albergarias, que houver na cidade, vila, ou lugar, se tiver bens ordenados para a criação dos enjeitados; de modo que as crianças não morram por falta de criação. E não havendo aí tais hospitais e albergarias se criarão à custa das rendas do concelho. E não tendo o concelho rendas por que se possam criar, os Oficiais da Câmara lançarão finta pelas pessoas, que nas fintas e encarregos do concelho hão-de pagar».
É, pois, a norma legal o ponto interessante de observação relativamente a muitos dos conceitos da época.
Primeiro, o conceito de enjeitado, amálgama que abrangia, desde logo, a filiação fora de matrimónio, pelo que o enjeitamento era, antes de ser acto individual de repúdio, acto legal de exclusão.
Depois, a ideia de que homem casado poderia ser obrigado a sustentar seu filho ilegítimo, mas sendo filho de mulher casada já a lei não criava sobre elas tal dever, empurrando desde logo a obrigação de sustento e “criação” para as instituições públicas, tal como no caso de filhos de religiosos.
Mas não se ficava por aqui o preceituado legal, pois havia que levar em conta o estatuído nas leis que completavam as Ordenações Filipinas e muitas delas posteriores até à Revolução de 1820.
De acordo com as normas jurídicas de então, a criação dos expostos era entregue, como vimos, a Casas de Caridade, à custa do erário público, mas chegados aos sete anos eram entregues aos Juízos dos Órfãos que os encaminhavam ou para famílias de acolhimento ou para o mercado de trabalho, conforme o lanço que os abrangesse.
A prevalência do encaminhamento para o mercado de trabalho tornou-se clara, e de tal modo que determinação legal, promulgada pouco antes da data dos actos de Luiza de Jesus, determinaria que em relação a estas crianças, sendo difícil arranjar-lhes emprego, poderiam ser repartidas por entre os lavradores, que até aos 12 anos não lhe pagavam soldada, tendo assim o benefício desta mão de obra infantil gratuita, dando-lhes educação, sustento e vestido (Alvará de 10 de Maio de 1783 e posterior Decreto de 6 de Dezembro de 1802).
Relegados todos eles a serem criaturas de segunda, sujeitos à triste sina, «os de cor preta ou parda» eram, porém, declarados “ingénuos”, querendo isso dizer, considerados originariamente livres e não meramente “libertos” (Alvará citado § 7, o qual seria revisto mais tarde por provisões de 26 de Junho de 1815 e de 22 de Fevereiro de 1823), sendo que só em 1846 se definiu que os expostos filhos de africanos livres não seriam escravizados (Alvará de 11 de Fevereiro de 1846).
Institucionalizados, os enjeitados estavam à mercê de abusos e do aproveitamento das suas pessoas e de tal modo para fins tidos por «imorais» que um Alvará da Rainha D. Maria I, de 12 de Fevereiro de 1783, «dado em Salvaterra de Magos», determinou que os mordomos da Casa dos Expostos da cidade de Lisboa promovessem, admoestando ou mandando prender, pelo máximo de um mês, aqueles que procurando os internados «para o honesto trabalho e serviço», no entanto, «se apartam da honestidade e modéstia com que devem sempre proceder, sendo aliciadas por pessoas que as pervertam ou procuram perverter».
Subentende-se na contida linguagem legislativa do que se tratava, afinal.
+
É neste universo de sordidez pavorosa que a “Roda” surge como caridade entendida à maneira da época: caridade, porque tentativa de combater o infanticídio e o aborto, abrindo porta a que fossem recebidos, de modo anónimo, em instituição que era suposta assumir o encargo de cuidar da sua sobrevivência.
Só que, na prática, efeitos perversos surgiam a tornar abjecção o que teria na origem outra intenção, sendo lancinante a situação que se vivia em meados do século dezoito.
Logo o comércio das amas, fornecedoras de «leite mercenário», como numa expressão dorida lhe chamou Júlio Dantas, neste seu trecho que é o retrato tremendo do que era a repelência feita sistema:
«A Mesa dos Inocentes era o último recurso para o leite mercenário das amas. Algumas delas, para dobrarem a pataca de prata da criação de cada ano, saíam do Hospital Real com duas crianças penduradas dos peitos, levando, para o canto hediondo da sua alfurja de miséria a flor das suas vidas. Se alguma das crianças morria, a Casa da Roda lá estava, chilreando; trilando como um grande ninho; iam buscar outra. Se tinha a desgraça de resistir e de viver a criação estava paga até aos 7 anos.»
Mas não se quedava por aqui a triste sina destes deserdados, pasto de comércio e de exploração mercantil, porque confiados a este amparo de aleitação, ficavam, quantas vezes, à mercê do infortúnio, em perigo da própria sobrevivência.
Retomando a dura denúncia de Júlio Dantas:
«Depois, deixada as mantilhas e o leite das amas, o Calvário dos expostos começava. Se elas os queriam ainda, podiam tê-los em casa mais cinco anos, sem receber criação e sem pagar soldada. Mas aos doze, o juiz dos órfãos arrematava-os a quem desse mais por eles; e se havia algum enjeitado enfermiço ou débil que não tivesse lanço, animal de trabalho que ninguém quisesse, boca inútil que ficasse pesando no Cofre do Povo, a Roda enjeitava-o pela segunda vez, e lá ia, pobre Lázaro infantil, comer à Cadeia do Tronco na gamela dos presos, ou lamber com os cães na portaria de S. Bento da Saúde, o resto da sopa dos mendigos».
Enfim, visando pôr termo ao criminoso abandono de recém-nascidos, a Roda veio, afinal, permiti-lo a coberto do anonimato, porque nenhum esforço era feito para localizar os progenitores, alguns, aliás, eclesiásticos, outros de linhagem, cuja devoção e fama pública eram assim defendidas pelo manto da hipocrisia.
E até as próprias mães naturais os levavam para os recuperarem aos sete anos. Nasce aí a prática dos “sinais”, menções escritas ou físicas, apostas por vezes na própria roupa amortalhada que permitiria identificar aquela criança que ali fora deixada.
Era, enfim, o tentar evitar a morte certa através da escassa probabilidade de sobrevivência, a Roda tida, numa equação cruel, como o mal menor.
Local de acolhimento para as crias que a miséria não conseguia sustentar, era também lugar de albergue esconso para os filhos indesejados, frutos de amores clandestinos ou de abusos que assim se poderiam ocultar.
Para além disso, para os poderes públicos, era uma grosseira tentativa de inverter o decréscimo de população.
E, enfim, o encargo orçamental. Por Alvará de D. José de 11 de Fevereiro de 1775, manda-se cortar o tempo de permanência no Hospital dos Expostos que até aí era de nove anos e que somavam mais de novecentos por ano a somar aos «mais de quatro mil com trato sucessivo».
Legislação cruel determinava, entre outras cláusulas de exclusão, que «nenhum exposto, que exceder a idade de sete anos, possa entrar no Hospital por este título nem nele possa ser admitido como hóspede ou outro título que não seja o de artífice ou servente.»
Foi neste contexto que, a 10 de Maio de 1783 o Intendente Geral da Polícia Diogo Inácio de Pina Manique, fundador da Casa Pia, deu à Roda foros de coisa oficial, através de circular, ordenando a
sua abertura em todas as «cabeças de comarca» de Portugal.
A Intendência Geral da Polícia fora criada pelo Alvará com força de lei de 25 de Junho de 1760, para coordenar as atribuições de polícia exercidas pelos magistrados judiciais. Dela dependia a Real Casa Pia, criada por Decreto de 3 de Junho de 1780 e responsável pela integração social e profissional de jovens com actividades irregulares ou marginais.
Foi seu primeiro Intendente o desembargador Inácio Ferreira Souto, que desempenhou um papel fundamental na perseguição à família dos Távoras. Diogo Inácio de Pina Manique seria nomeado em 1780, pela Rainha D. Maria I, e manter-se-ia em funções até 1805. A instituição seria extinta a 8 de Novembro de 1833.
Por todo o país se disseminam, em alguns locais com notável atraso, e sucessiva legislação tentou dar ordem à instituição.
À Circular de 10 de Maio de 1783 sucederam outras, bem como alvarás régios, como, por exemplo, a 31 de Março de 1787, a 5 de Junho de 1800 e 9 de Novembro de 1808, tudo se prolongando até quase ao início do século vinte.
Ao chegar a Revolução de 1820, com ela uma mescla de liberalismo e das ideias que na França após 1789 haviam levado ao Terror pela guilhotina, tida esta por forma “humanitária” de pena de morte, a situação destas crianças era lancinante.
No seu acolhimento cumpria-se o ritual: recebidas pela “ama rodeira”, eram limpas e registadas com detalhe e baptizadas, se não houvesse sinal de o terem sido, e enfim confiadas a amas externas para que delas cuidassem.
Amas mal pagas, com remunerações amiúde em atraso, fazendo daquela criação modo de vida, eram mãos que valiam o que valesse a moral e o espírito de compaixão de cada uma.
Em 1823, números relativos aos expostos da cidade do Porto mostravam que dos 31.257 enjeitados que haviam entrado na instituição entre 1803 e 1822 haviam morrido 20.975; em Lisboa os valores não eram muito diferentes. Facto é que foi este século um dos períodos mais negros no que respeita ao abandono infantil e em que as taxas de mortalidade atingiam valores que chegaram a mais de 90%.
A Roda seria formalmente extinta apenas a 21 de Novembro de 1867, entrando esta determinação em vigor no ano seguinte, mas a sua implementação materializada por fases, tanto que em 1888 ainda se tentava dar execução a uma alternativa a este modelo em prol de uma nova ideia assistencial, através dos hospícios, agora custeada pelas recém-criadas Juntas Gerais de Distrito.
A lógica subjacente alterou-se, pelo menos, em uma parte: terminou o anonimato do abandono, obrigando-se à identificação da progenitura.
Como contraponto a este sistema, surgiu outro que o penalizava: é que a recepção das crianças que fossem levadas por mão identificada, ficava dependente de aceitação, o que excluía do acolhimento uma parte não despicienda do total das que ali eram presentadas.
Mas regressemos ao tempo e ao local dos crimes de Luiza de Jesus.
Neste covil de infâmias, eis-nos em Coimbra, lugar de tal horror onde em 1785 seria construído o Cemitério da Roda quando o sepultamento dos enjeitados atingia foros de escândalo, com os bebés a serem diariamente enterrados junto à igreja de S. Tiago, na zona da praça do mercado de legumes, carnes e peixes, «aonde por mal sepultado, em termos que por muitas vezes têm sido descobertos por vários animais».
É por aqui que o crime individual se soma ao crime da sociedade: aquele, repugnante pela violência do infanticídio, este, nojento pelo comércio da vida, pela morte lenta a que condenava esta legião de crianças.
A história de Luiza de Jesus é parte de tudo isto.
Confessando, sob tormentos, o infanticídio de 28 crianças, teriam sido encontrados 33 corpos que foram levados à formação da sua culpa.
Do seu caso cura o livro A Assassina da Roda, de Rute de Carvalho Serra, jurista, especializada em criminologia.
Trouxe-nos a narrativa como romance histórico, contando a história no contexto de outras histórias de personagens da época, que vão desfilando como seu cenário contextual. E eis o que chega agora aos palcos, adaptação da própria autora e interpretação de Maria Henrique.
Visto do ângulo ficcional, lido nos documentos da época, sentido agora pelo teatro, o episódio traz à tona aquela mescla de ideias e sentimentos que determinam a verdadeira e legítima compreensão histórica.
Com isto termino esta breve nota de apresentação.
No imediato, o horror dos factos, a morte de inocentes, alguns desossados, misto de «ambição e fereza» como lhe chamou a sentença que a condenou, ao «monstro de coração tão perverso, e corrompido, de que não haverá facilmente exemplo no presente século».
Ao contraponto dessas mortes infames, a pena de talião da morte da infanticida no patíbulo, sujeita à pena capital, esta cometida com atrocidade.
A 1 de Julho de 1772, após três meses de detenção, os juízes da Casa da Suplicação em Lisboa sentenciaram, em recurso, a infanticida a desfilar com baraço e pregão pelas ruas da cidade, ou seja, levando ao pescoço a corda em que seria enforcada e com um oficial de justiça a proclamar os crimes e as penas, para que disso ficasse clamor público.
A condenação era a de que morresse, mas não sem que antes lhe decepassem as mãos e «atenazada» fosse, o que vale dizer queimada com um ferro em brasa; morte sim, enfim, não pela sufocação de uma corda que a asfixiasse, mas pelo garrote que a isso juntava a lenta perfuração do pescoço.
E, enfim, «para que nunca mais houvesse memória de semelhante monstro» seria queimada e as cinzas dispersas, para que não pudessem ser recolhidas.
Condenação no plano civil, era também sentenciada no plano religioso, porquanto, incinerada e dispersas as cinzas, ficaria privada de enterro religioso.
Juntando à infâmia da pena, somava-se a sua condenação nas despesas do processo, calculadas em cinquenta mil réis.
Choca à nossa sensibilidade esta crueldade da Justiça.
E, no entanto, se pode ser considerada pena mais severa aplicada a uma mulher de que há memória em Portugal, não foi caso único.
O registo da pena capital impressiona até pelo que abrangia e pelo modo como se materializava.
Dois anos antes, tinham sido enforcados o Juiz dos Órfãos de São Sebastião da Pedreira e o seu escrivão, em 1769 outro juiz e seu escrivão por furto do «cofre das décimas». No ano de 1773 um
armador da Patriarcal de Lisboa, sentenciado por lançar várias vezes fogo à Igreja, foi queimado vivo. Acusado de ter atentado contra vida do Marquês de Pombal, um cidadão foi atado a quatro cavalos, arrastado, despedaçado, cortadas as mãos e, enfim, queimado. Em 1781 dois espanhóis são enforcados e esquartejados, por mortes e roubos.
Também mulheres não foram poupadas à morte com suplício antes da execução. Assim, em 1725 uma escrava acusada de matar o seu senhor com veneno; e no próprio ano de 1772, outra escrava que ajudara a matar o seu amo foi atenazada, cortadas as mãos e depois de morta, a cabeça decepada antes de ser enforcada.
A exposição da cabeça cortada fazia parte do ritual macabro visando dissuadir e prevenir pelo pavor.
Justiça de classe, a este cortejo de sofrimento escapavam, salvo excepções, de que os Távoras foram cruel demonstração, os de condição nobre: a decapitação a que eram sujeitos era tida por forma de compaixão, porque instantânea a dor.
Visto hoje, perguntamo-nos se tudo isto não poderia ter sido tratado como caso de loucura e, por isso, com a terapia psiquiátrica. Nada disso existia então. Vigiar e punir eram então e foram-no durante décadas, realidades indissociáveis, os possuídos de patologias da mente confundidos até com os que, em pecado, pela feitiçaria e bruxaria atentavam contra a religião. E essa a pista, qual ritual satânico de magia negra, que o livro de Rute Serra nos deixa.
História de malvadez, de malignidade, de cadeias de união no sofrimento, paixão tumultuosa, «essa desordenada paixão de apetecer», enfim, é toda uma sociedade que é assim desventrada.
Ao chegar ao fim, exaustos, os sentidos, leitores e espectadores anseiam por um momento que lhes restitua na vida a bondade, à alma, a doçura da paz. Breve intervalo seja.»