Apresentação



O presente blog foi criado em Janeiro de 2005. Está em actualização permanente, tal como o seu autor, que decidiu agora regressar ao estudo do Direito. Tem como linha de orientação não comentar processos ou casos concretos, menos ainda o que tenha a ver com a minha profissão, estando o meu site de Advogado aqui, nele se mantendo o mesmo critério. Estou presente também na rede social Linkedin e no Twitter.

José António Barreiros




Parlamento: plenário, dia 6

É esta a agenda dos temas principais do próximo plenário da Assembleia da República:

Proposta de Lei n.º 28/XIV/1.ª (GOV)

Altera o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e à assistência das sua vítimas

Projeto de Lei n.º 194/XIV/1.ª (PS)

Altera o Estatuto da Ordem dos Advogados, revendo o estatuto remuneratório do Revisor Oficial de Contas que integra o respetivo Conselho Fiscal

Projeto de Lei n.º 336/XIV/1.ª (PSD)

Garante apoio social extraordinário aos gerentes das empresas

Projeto de Resolução n.º 409/XIV/1.ª (BE)

Garante que as crianças cujos pais perderam rendimentos não são excluídas das creches, protegendo as famílias afetadas e os profissionais

Projeto de Lei n.º 341/XIV/1.ª (PCP)

Proíbe a distribuição de dividendos na banca, nas grandes empresas e grupos económicos

Projeto de Resolução n.º 397/XIV/1.ª (CDS-PP)

Criação do “Cheque Emergência” para as micro e pequenas empresas cuja atividade se suspendeu

Projeto de Lei n.º 338/XIV/1.ª (PAN)

Altera o Decreto-Lei n.º 14-G/2020, de 13 de Abril, possibilitando a realização de exame de melhoria de nota interna no ensino secundário

Projeto de Resolução n.º 405/XIV/1.ª (PEV)

Informação aos cidadãos sobre as melhores práticas de deposição de resíduos, como máscaras e luvas protetoras

Legislação & Confusão

Se há diplomas em que deveria haver o cuidado de os tornar perceptíveis são os que se estão a publicar relativos à actual pandemia. Mas não. Mesmo juristas cujos méritos não estão em causa manifestam perplexidade ante o significado e por isso o âmbito de algumas das suas normas. Para além disso a técnica de alteração de preceitos transactos sem republicação integral do texto leva a que ao leigo tudo surja de modo imperceptível, por não ser suposto que se dedique ao trabalho primitivo de "corta e cola" para, enfim, conseguir reconstituir o alterado e ganhar uma visão actualizada do que passará a vigorar. Para piorar as circunstâncias, são as rectificações, algumas já para além do limite da mera rectificação de lapso, a evidenciarem precipitação [compreensível] e imprevisão [menos compreensível].
Sou o primeiro a reconhecer que o momento é difícil e os serviços incumbidos da legisferação não estarão a trabalhar nas melhores condições. Mas é de exigir que à insegurança dos factos não siga a insegurança da lei: é através desta que se transmite ao País confiança quanto às medidas que são aprovadas para enfrentar e regular esta excepcional situação. É que estas são as leis que se destinam directamente aos cidadãos, pelo que deveriam ser simples, claras e perceptíveis.
A não ser assim, como estranhar a litigação que surgirá e a incapacidade do sistema de justiça para a enfrentar?

Prazo de recurso do arresto criminal

A natureza urgente do processo por arresto preventivo decretado nos termos da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro foi reconhecido pelo Acórdão da Relação de Lisboa de 1 de Abril de 2020 [proferido no processo n.º 16275/16.0T9PRT-B.P1, relatora Maria Joana Grácio, texto integral aqui] ao ter decidido o que de seguida se transcreve como sumário [tomando inclusivamente posição quanto ao prazo de recurso nesta matéria ser de 15 dias, previsto no CPC para este tipo de matéria, e não o de 30 dias, prazo geral de recurso previsto no CPP, sendo curioso, porque não dizê-lo, a propósito de urgência, que se trata de um processo de 2016...]:


«I - O art. 10.º, n.º 4, da Lei 5/2002, de 11-01, determina que em tudo o que não contrariar o disposto nessa mesma lei é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo previsto no CPPenal.
II - As questões relativas à tempestividade, ou não, do recurso não encontram qualquer resposta naquela lei, pelo que se impõe a sua apreciação à luz do regime do arresto preventivo previsto no art. 228.º do CPPenal.
III - De acordo com o n.º 1 deste referido preceito, o juiz decreta o arresto nos termos da lei do processo civil.
IV - Nos termos do disposto no art. 363.º, n.º 1, do CPCivil «Os procedimentos cautelares revestem sempre caráter urgente».
V - Esta natureza mantém-se mesmo na fase de recurso, pois a lei não a excepciona e o uso do advérbio sempre leva a concluir que perdura em qualquer fase do processo, devendo os autos, por tal razão, ser tramitados em férias, independentemente da fase processual em que se encontrem, de acordo com a regra da continuidade absoluta dos prazos nos processos urgentes (art. 138.º, n.º 1, do CPCivil).
VI – De resto, as querelas outrora existentes nesta matéria vieram a ser resolvidas através da jurisprudência fixada no acórdão do STJ n.º 9/2009, de 31-033, no sentido de que «Os procedimentos cautelares revestem sempre carácter urgente mesmo na fase de recurso», a qual se mantém perfeitamente actual em face do novo código de processo civil.»

Relevando já a situação de pandemia que se vive, consignou o aresto na sua fundamentação:

«Assim, de acordo com esta natureza inegável do arresto preventivo, os recursos respectivos devem correr em férias judiciais.
E no âmbito do processo civil o prazo de recurso no caso em apreço é de 15 (quinze) dias – art. 638.º do CPCivil.
A especificidade deste incidente de natureza urgente, que deve ser decretado de acordo com as normas processuais civis (art. 228.º do CPPenal), não é compatível com cindibilidade da tramitação processual, não prevista na lei, consoante estejamos antes ou depois da fase de recurso e muito menos com a transmutação da sua natureza urgente para não urgente em fase de recurso consoante estejamos no âmbito de um processo cível ou de um processo penal, sem fundamento atendível e sem previsão legal.
Não perfilhamos, por isso, a posição de que em fase de recurso as regras aplicáveis à tramitação do incidente são as do processo penal e, muito menos, a de que o incidente perde a sua natureza urgente.
Mas mesmo para aqueles que entendem que nesta fase de recurso já não se aplicam as regras do processo civil, logo a manutenção do carácter urgente do incidente por essa via – no que discordamos, como referido, pois a lei não cindiu a respectiva tramitação nem a natureza do arresto preventivo em face de qualquer momento processual –, o recurso continua a ser extemporâneo.
Segundo as regras do CPPenal o prazo de recurso seria de 30 dias mas isso não invalida que continua a existir obrigação de tramitar o recurso do incidente, que tem natureza urgente, no período de férias judiciais, como no caso concreto ocorreu, por respeitar a acto processual indispensável à garantia da liberdade das pessoas, conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 103.º, n.º 2, al. a), 104.º, n.º 2, e 191.º, n.º 1, do CPPenal.
Neste sentido, cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª edição, anotação ao art. 103.º, págs. 271 a 274, que considera incluídos nos actos processuais indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas os actos relativos a quaisquer medidas de coacção e de garantia patrimonial, os quais funcionam como excepção ope legis à regra do n.º 1.
Considerando a natureza urgente do incidente que aqui tratamos e a gravidade das consequências que do mesmo resultam, não se concebe que o mesmo em fase de recurso, vista a sua importância, como o supracitado aresto desta Relação do Porto, de 30-01-2003, deixa bem vincado, não seja tramitado em férias judiciais ao abrigo dos preceitos indicados.
Basta atentarmos ao momento que vivemos, com suspensão de toda a actividade processual não urgente.
Na tese do recorrente e daqueles que perfilham o carácter não urgente do incidente em fase de recurso no âmbito do processo penal, os processos de arresto deviam parar nesta fase de recurso, o que significa que alguém que seja alvo de arresto, com todas as consequências patrimoniais daí decorrentes, pode estar vários meses – as perspectivas de regresso à normalidade não são auspiciosas – à espera de poder recorrer de tal decisão.
A apreciação deste próprio recurso deveria, então, ficar suspensa.
O não reconhecimento do carácter urgente da tramitação de tais incidentes reflecte uma posição francamente atentatória dos direitos fundamentais de qualquer cidadão, que rejeitamos.
Nesta medida, quer se entenda que o prazo de recurso respectivo é o de 15 (quinze) dias previsto no art. 638.º, n.º 1, do CPCivil [4], posição que perfilhamos, quer se entenda que é o de 30 (trinta) dias com previsão no art. 411.º, n.º 1, do CPPenal [5], o mesmo sempre teria de correr em férias judiciais.»
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[4] Neste sentido, acórdão da Relação do Porto de 17-09-2014, acessível in www.dgsi.pt, onde se afirma: «É sem qualquer reserva que aceitamos que à tramitação subsequente ao decretamento do arresto (em que o arrestado pode exercer o contraditório) se aplicam as normas que a lei processual civil estabelece para este procedimento cautelar.
[5] Neste sentido, acórdão da Relação de Lisboa de 19-11-2015, CJ XL V, pág. 116 (tem voto de vencido).

Separação da matéria criminal e contraordenacional

O tema do conhecimento cumulativo dos crimes  contraordenações que se verifiquem em concurso material num mesmo caso conhece um problema processual, o da possibilidade da separação processual e nomeadamente quanto ao momento limite para a efectivar. Foi isto que decidiu o Acórdão da Relação do Porto de 1 de Abril do corrente [proferido no processo n.º 234/17.9PRPRT.P1, relatora Maria dos Prazeres Silva, texto integral aqui], ao ter decidido que: 

«Encerrado o inquérito com a prolação de despacho de acusação, no qual seja imputado o cometimento, em concurso, de crime e de contraordenação, não é admissível a separação posterior dos processos criminal e contraordenacional, com a remessa às entidades administrativas de certidão para conhecimento da contraordenação, mas antes cabe desde então ao tribunal criminal o conhecimento da matéria contraordenacional, independentemente do desfecho da ação penal.»

O decidido funda-se num argumento literal expresso o que, findo o inquérito, a remessa da matéria contraordenacional às autoridades administrativas, para conhecimento e decisão, só pode efectivar-se em caso de arquivamento [eis o que decorre do disposto no artigo 38º, n.º 3 do RGCO] e no que remeta para decisões no mesmo sentido da jurisprudência.

A litigação suspensa e a que aí virá

«Há todo um debate em aberto quanto à paralisação em que se encontra o sector da justiça. Se bem que não se possa dizer que todos os processos estão parados não se pode afirmar que estejam todos a andar, mesmo aqueles que não carecem de presença física para manterem a sua tramitação. O que ninguém equacionou foi o que sucederá quando, levantado o cerco, afluir aos tribunais a massa da litigação decorrente das circunstâncias sociais e de mercado criadas pela pandemia, não só na área civil e comercial, mas por igual na área criminal. Os tribunais que não resolveram a massa de processos que tinham, terão capacidade, sem se "afundarem" para resolver o que aí vem? Duvido. E a nada ser feito, tenho a certeza que não.» [publiquei esta manhã na minha conta no Linkedin]

Quaestio Facti

Cito do texto de apresentação desta revista internacional sobre o raciocínio probatório, que acaba de anunciar o seu número inaugural e que pode ser lida on line aqui. Viva, pois!

«Quaestio Facti es una revista dedicada al tratamiento de los problemas que plantea el razonamiento probatorio en la aplicación del derecho, lo que incluye, claro está, el proceso judicial, pero también muchos procesos administrativos. Se trata de una revista en las fronteras de muchas disciplinas y ámbitos: entre el derecho procesal, la epistemología jurídica, el derecho internacional de los derechos humanos, las distintas ciencias de aplicación forense, así como entre los ámbitos culturales de civil y common law. No se trata, sin embargo, de una revista sobre derecho probatorio, de uno u otro país. Los trabajos que publicamos abordan, en cambio, problemas generales del razonamiento probatorio, que van más allá de las cuestiones interpretativas o jurisprudenciales de una concreta legislación nacional.»

iter criminis: longa vida!

Com o maior gosto saúdo a chegada do novo blog iter criminis. Do elenco dos seus colaboradores consta: Ana Rosa Pais, Miguel João Costa, Nuno Brandão, Sónia Fidalgo e Susana Aires de Sousa. Pode ser consultado aqui.

Dum Romae consulitur, Saguntum expugnatur

Momentos de reflexão chegam a cada momento. Esta manhã de Páscoa encontrei-me com o que é mais do que um exemplo, um modo de ser.
Estamos em plena crise sanitária mundial, Itália foi dos países da Europa aquele que foi mais tragicamente atingido.
E, no entanto, a maturidade cultural desse país mostra-se sobretudo em momentos como este.
Saiu, precisamente agora, o primeiro fascículo trimestral de uma nova publicação dedicada à crítica da jurisprudência criminal. Dir-se-ia: inevitavelmente, fruto da inércia do passado. Direi: não, pelo contrário, surgiu mas também como forma de afirmação ante o futuro.
A revista, que pode ser encontrada on line aqui, não está apenas actualizadíssima - sim o superlativo faz aqui todo sentido - face aos acontecimentos de saúde pública, como faz o seu enfoque sempre na perspectiva do seu enquadramento jurídico, dando sentido, lógica, coerência, ao que acrescenta ao decidido pelos tribunais.
É o tema da autoresponsabilização e da responsabilização culposa ou dolosa de terceiro a orientar o comentário à legislação de confinamento e de punição da difusão epidémica, a responsabilidade de entidades colectivas quanto ao risco pandémico, como é o caso dos operadores sanitários e das entidades empregadoras, tudo ao lado de reflexões ponderadas e fundamentadas sobre tantos outros temas do Direito contemporâneo.
Sobre os escombros da tragédia, tudo morre mas o pensamento resiste. Cada um no seu posto, enfrenta o caos e a barbárie fazendo apelo ao melhor de si. Ecco, la Primavera!
A frase que dá título a esta publicação «Dum Romae consulitur, Saguntum expugnatur» copio-a de um dos seus textos, a clamar pela urgência de uma solução a nível prisional: enquanto Roma discute Sagunto é assaltada. Disse-o Tito Lívio. 

Leitura de uma tarde: o conceito de bem jurídico

Dois capítulos lidos esta tarde, breves, do seu último livro de uma extensa bibliografia, ambos sobre o conceito, agora tornado problemático, do bem jurídico [páginas 85-888 e 235-244].

Problemático porque sob o assalto contemporâneo da reformulação do pensamento político autoritário, mas não só.

É facto, como assinala Paulo Ferreira da Cunha, actualmente Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, que esses «novos amigos» de um Estado totalitário ou autoritário, «estarão naturalmente interessados em que este paradigma seja manipulado, desfigurado» [página 235]. E há que relevar, como não indiferente argumento desta perspectiva não liberal que «os bens jurídicos passam a restringir-se a uma perspectiva garantística, suspeita até para alguns (numa linha de leitura muito conservadora da realidade) de mais garantidora dos direitos dos arguidos que das vítimas».

Mas é também problema a principal dúvida que pessoalmente se me suscita ante este conceito, o saber em que medida ele não será instrumento de um apriori normativo em favor de uma extensão ou retracção da vontade de criminalizar ou descriminalizar, de valor, modo, pois, e não substância.

É que, entendido na sua função operacional, o conceito de bem jurídico mandata o legislador para determinar a punição que salvaguarde a tutela daqueles bens constitucionais que, no caso, se ache carecerem de defesa - e não terem, numa lógica de subsidiaridade - outra defesa possível salvo a criminal, mas fica-se sem resposta quando nos defrontamos ante problemas - como, em lógica de argumento pelo excesso no livro se suscitam - do tipo da hipótese de descriminalização, por exemplo, já não do consumo, mas do próprio tráfico de estupefacientes. E a isso regresso já.

É que, por outro lado, numa perspectiva que no texto lido se não expõe - mas creio ser determinante para o argumento - há o argumento adicional de que se trataria, assim, no que este conceito respeita, da tradução de um Direito Penal de Professores, pois seriam estes a ditar, pela construção da noção concreta de bem jurídico e assim do âmbito de extensão da mesma e sobretudo da enunciação dos bens concretos e sua catalogação quem, em primeira instância, determinariam os limites da tipicidade abstracta e sobretudo o critério prático da sua aplicação. 

Diz-se Direito Penal de professores como pode [deva talvez] dizer-se Direito Penal da Jurisprudência e nisso o livro fornece exuberante exemplo de infixidez da noção de bem jurídico, ao citar um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Outubro de 2018 [processo n.º 5/16.0GAAMT.S1] ante o qual - e precisamente no que à punição do tráfico de estupefacientes respeita - se entendeu que poderia estar em causa, e legitimar a sua repressão, não só a saúde pública, mas também «o desenvolvimento são, seguro e livre dos cidadãos e da sociedade face aos perigos representados pelo consumo e tráfico de droga, atentatória da dignidade humana, mas também a saúde pública da população, a estabilidade económica, financeira, cultural e política da sociedade e e a segurança e soberania do Estado»,

em suma, tanto e tanto, que, de súbito somos surpreendidos que tantos e tão relevantes bens jurídicos, num instante descriminalizador, ainda que hipotético quanto ao tráfico - já não quanto ao consumo - de estupefacientes passem ao rol das desnecessidades criminalizadoras.

A partir deste exemplo, a leitura torna-se interessante tema de reflexão. E assim:

-» escreve Paulo Ferreira da Cunha [página 238] que «não é obrigatório que [...] se esteja a mascarar uma opção penal moralista ou retributivista sob a capa de consideração de outro bem penal para além daquela perspectiva objectiva, utilitarista ou positivista», mas assim afirmar é admitir, em lógica e raciocínio, que a possibilidade do contrário não seja de excluir;

-» adianta que a categoria se encontra em processo de revisão e crítica, mas, tal é convocado por um lado numa lógica expansionista, ante a «complexificação da sociedade e portanto, também, da criminalização» [página 236], mas simultaneamente, em caminho reducionista, consigna que «no quadro de necessidade de protecção de um bem jurídico pode haver excepções» [página 237], e assim, «o bem jurídico não pode funcionar como um trunfo em mãos erradas».

Ora é precisamente este o ponto nuclear do que retiro desta tarde de leitura: o subjectivismo que, pelos vistos, é inerente ao conceito, a ductibilidade a que presta consoante quem o formule ou aplique, afinal, a insegurança que trás quando não o arbítrio, tudo longe da ideia que terá presidido à sua formulação.

Mais: ao ter-se formulado um caminho que, visando «um Direito Penal virado para os resultados» [página 85], decorrente de um Direito Penal em «neutralidade moral» [ibidem], pergunto se não se terá aberto a porta ao cinismo de uma garantia que nada garante, tudo permite e assim a posteriori legitima. Pergunto com dureza pois serão duros os efeitos de qualquer resposta que se dê, restando, como sempre, saber para quem.


Os dois Barbosa de Magalhães e a sua Gazeta

Esgravato mais uma folhas para uma biografia de há muito prometida e esboçada, em primeiro ensaio, para um livro sobre Figuras do Judiciário [séculos XIX e XX] sobre José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães, filho de José Maria Barbosa de Magalhães, dois notáveis jurisconsultos aveirenses, e encontro-me ante duas realidades: a mais completa confusão entre ambos, assumindo-se como sendo de um a biografia que é do outro, isto em espaços onde a asneira é livre, como a Wikipedia, que tantos, por preguiça tomam como referência única, mas até em locais respeitáveis, como a do espólio depositado na Biblioteca Nacional. 
Hoje o acaso das pesquisas, esse interminável fio de Ariana, conduziu-me até uma folha solta da Gazeta da Relação de Lisboa, a publicação que começou por ser de dois escrivães e que, adquirida por Barbosa de Magalhães, pai, seria nas mãos do filho arma de arremesso contra o regime do Estado Novo até que, apertada, por causa de um artigo sobre a Concordata com a Santa Sé, pela Censura, encerrou para não se submeter ao Exame Prévio.

RPCC: acaba de sair

Mais um número da Revista Portuguesa de Ciência Criminal, o n.º 3 do 29º ano, correspondente a Setembro-Dezembro de 2019. Secretário da publicação: Nuno Brandão [Doutor em Direito, professor auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, para mais informação curricular ver aqui].

Editada pela Gestlegal [ver aqui], com o apoio do IDPEE [ver aqui] a presente contém quatro artigos de fundo:

-» Wagner Marteleto Filho [doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e promotor de justiça no Estado de Minas Gerais, sobre o autor ver mais aqui], O problema do erro de tipo permissivo: entre o princípio da responsabilidade e o princípio epistémico;

-» José M. Damião da Cunha [doutorado pela Universidade Católica e professor associado na mesma, sobre o autor ver mais aqui], Sobre o recurso de apelação em processo penal (alguns pontos suscetíveis de crítica e de reforma necessária);

-» Fábio Gulpilhares [mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e juiz de Direito], Providência de habeas corpus e recurso ordinário de medida de coação: o caso da prisão preventiva [condensação da sua tese de mestrado submetida a júri em 2016];

-» Avelino Augusto de Sá [psicólogo, professor associado da Universidade de São Paulo, falecido] , Criminologia clínica de inclusão social e as medidas de segurança.

No campo da jurisprudência crítica, Miguel João Costa [assistente convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e assessor dos juízes do Tribunal Constitucional] aborda o tema dos limites à extradição fora da União Europeia.

E, a findar, Pedro Caeiro edita as suas Observações sobre a projectada reforma do regime dos crimes sexuais e do crime de violência doméstica.

Proibida proibida mas intelligence policial?

Há um tema consistente em saber se a prova obtida de modo ilícito pode ser licitamente usada. Para isso, a meu ver, há uma definição clara, proibitiva, consagrada no artigo 126º do Código de Processo Penal; há outro tema que é saber se a mesma prova pode ser utilizada como intelligence na investigação policial, ou seja, não como prova no sentido técnico-jurídico do termo, válida para uso processual, sim como meio orientador da actividade da investigação criminal.
Vejo que há muita discussão em torno da primeira asserção, nenhuma no que à segunda respeita: e esta é a que carece uma resposta clara do sistema jurídico, mormente em termos de futuro.
Que a validação da possibilidade está na ordem do dia já se pressentia ao ler este excerto da autoria do Conselheiro Santos Cabral, publicado neste ebook aqui, do CEJ, na sequência do que aquele magistrado tem escrito e decidido sobre o relevo da prova indirecta: «Em crimes complexos, como é o caso da criminalidade económica, um dos instrumentos mais poderosos susceptível de ser utilizado pela investigação criminal é a denominada intelligence. A mesma assume uma natureza essencial numa área em que é cada vez mais evidente que a investigação do caminho do dinheiro “sujo” é a forma mais eficaz para localizar determinados tipos de delinquência e, também, que a privação dos produtos da actividade criminosa constitui uma importante eficácia dissuasora.»
Para começar talvez, a partir de um âmbito conhecido, o que se passa, por exemplo, no domínio da Interpol, ver aqui.
Quando se bebe chá há quem note as folhas amarrotadas que se acumulam no fundo e que são elas a infusão...

A toca do coelho

Período crítico, este, a muitos níveis e a gerar uma tensão psicológica latente.
Para os que não estavam habituados a trabalhar no confinamento das suas residência, a adaptação; para aqueles que não as têm adaptadas a funcionar simultâneamente como local doméstico e de trabalho, adaptação mais difícil ainda, perda de produtividade, stress, dificuldades emocionais de relacionamento.
Para quantos não têm a sua vida profissional digitalizada ou têm de se relacionar com entidades que não o estão, limitação decorrente de ter de gerir o acesso aos suportes tradicionais da documentação.
Como se isto não fosse já preocupante, há as perspectivas realistas sobre o futuro, nomeadamente para os que têm rendimentos obtidos ou por trabalharem para o sector privado ou por conta própria. 
A retracção da actividade económica projecta-se a nível financeiro: há encargos que, mesmo adiados, geram responsabilidades na hora de os pagar, há proventos que seguramente só virão muito depois de se chegar ao momento em que se tornam indispensáveis.
Do lado positivo, haverá seguramente uma cultura a interiorizar para aqueles que estão para isso disponíveis ou têm a liberdade de poder organizar o modo como se materializa a prestação do seu trabalho: a adstrição a horário fixo e a local determinado mostrou ser valor relativo que as circunstâncias demonstraram poder transformar-se numa flexibilidade dos vectores de tempo e espaço.
Também pode gerar-se essa positividade aproveitando melhor o tempo agora não despendido em deslocações, fracção que é devorada pelo dispêndio com os encargos domésticos para aqueles que não os tinham, ou com a distracção inerente à domesticidade.
No meu caso por via dos deveres inerentes à profissão a noite e o dia têm-se confundido. Nota-se pelas ausências aqui; o que não se nota é o défice entre o que gostaria de ter feito e o que acabo por ter de fazer. Todos os dias o relógio parece girar mais depressa, em cada dia a dimensão mais estreita.
Corre-se, sim, muito, num espaço cada vez mais confinado e mais fundo, rumo ao indefinido: é a metáfora da toca do coelho no país de Alice.

PGR: Directiva n.º 2/20: SARS/COV-2 e COVID-19 & MP

Eis o teor da Directiva anteontem emitida pela PGR sobre o tema da "Atuação Funcional do Ministério Público no Período de Vigência da Situação Excecional de Prevenção, Contenção, Mitigação e Tratamento da Infeção Epidemiológica por SARS - COV-2 e da Doença COVID-19 e Estado de Emergência":

«Considerando, 

Que a Organização Mundial de Saúde qualificou, no passado dia 11 de março de 2020, a emergência de saúde pública ocasionada pelo agente Coronavírus (SARS-Cov-2 e COVID19) como uma pandemia internacional; 

Que, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, foi decretado o estado de emergência pelo Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18 de março, e Resolução da Assembleia da República nº 15-A/2020, de 18 de março; 

As medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 constantes da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março, que, igualmente, ratificou os efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, dela fazendo parte integrante; 

O conteúdo do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, que procede à execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março;

O Despacho 2836-A/2020, de 2.3.2020, dos Gabinetes das Ministras da Modernização do Estado e da Administração Pública, do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e da Saúde, o Despacho conjunto n.º 3301-C/2020, de 15-3-2020, e o Ofício-Circular n.º 05/2020, de 17-3-2020 (DGAJ/DSAJ); 

As orientações da Direção Geral da Saúde (DGS), em especial as Orientações 6/2020, de 26-2-2020, relativa aos Procedimentos de prevenção, controlo e vigilância em empresas, e 11/2020, de 17-3-2020, relativa a medidas de prevenção da transmissão em estabelecimentos de atendimento ao público; 

Os Planos de Contingência adotados pela Procuradoria-Geral da República e pelas Procuradorias-Gerais Regionais; 

A Deliberação do Conselho Superior da Magistratura divulgada através da Divulgação n.º 81/2020, de 20-3-2020, e ainda a Comunicação dirigida aos Magistrados judiciais, publicada através da Divulgação n.º 83/2020, de 25-03-2020; 

Os Despachos da Procuradora-Geral da República de 20-03-2020 e 23-03-2020, sobre o funcionamento da Procuradoria-Geral da República e de constituição do Gabinete de acompanhamento e gestão do estado de emergência, e a sua composição, respetivamente, e 

A Deliberação do Conselho Superior do Ministério Público de 27-03-2020, a qual tem por objeto a fixação de orientações para a realização presencial de diligências e julgamentos urgentes por parte dos Magistrados do Ministério Público, 

Face ao evoluir da situação, de modo a garantir o cumprimento das atribuições e competências constitucionais e legais do Ministério Público e a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, importa adotar para o período em que vigorar a situação de exceção, medidas excecionais em consonância com o contexto também excecional, e de acordo com as regras constantes dos diplomas legais citados, em especial a Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março, a Constituição da República e as leis de processo. 

Tudo em nome da manutenção do regular funcionamento do Estado de Direito Democrático e no justo equilíbrio do direito à saúde de todos, sem exceção, sendo indiscutível que ao Ministério Público estão atribuídas competências únicas a cujo exercício, salvaguardando a preservação da segurança comunitária, deverá continuar a corresponder, assegurando com responsabilidade e eficácia a relevante missão que lhe está constitucional e legalmente cometida, como peça fundamental integrante do órgão de soberania Tribunais, em prol da confiança que os cidadãos e a comunidade em si depositam. 

Assim, ao abrigo do disposto na alínea b), do artigo 19.º, da Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto, que aprovou o Estatuto do Ministério Público, durante o período de tempo em que se verificar a situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS - CoV-2 e da doença COVID-19 (artigo 7.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março), adotam-se as seguintes diretrizes de atuação funcional a serem seguidas pelos/as Magistrados/as e Agentes do Ministério Público: 

1. Durante o período a que se refere o artigo 7.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, aos atos a praticar no âmbito dos processos e procedimentos a correr termos nos tribunais a que se refere o citado preceito, incluindo no Ministério Público, aplica-se o regime das férias judiciais. 

2. Por isso, durante o referido período, sem prejuízo do disposto nos números seguintes e na Deliberação do Conselho Superior do Ministério Público de 27-03-2020, serão tramitados e praticados atos processuais em todos os processos que, por imposição legal ou por determinação da autoridade judiciária competente, nos casos em que a lei o permite (vg. artigos 103º., nº.2, alíneas c) e g) do Código de Processo Penal1), revistam natureza urgente, ou quando estejam em causa direitos fundamentais, o que abrange a prática dos atos próprios dos Magistrados do Ministério Público e o seu cumprimento. 

3. Porém, os atos processuais nos processos urgentes (urgência decorrente da lei ou de despacho do Magistrado titular) serão praticados através de meios de comunicação à distância, se tal for tecnicamente viável. 

3.1. Nos casos em que tal se mostrar legal e operacionalmente possível, proceder-se-á à entrega eletrónica das peças processuais, sem prejuízo do que seja entendido, de modo minimamente fundamentado, pelo Magistrado, em face das circunstâncias concretas e das condições de segurança verificadas, e do que se estabelece na Deliberação do Conselho Superior do Ministério Público de 27-03-2020 quanto à realização presencial de atos e diligências. 

3.2. Não existindo nenhuma dessas possibilidades (realização presencial ou à distância), os respetivos prazos suspendem-se. 

3.3. Os suportes físicos e demais expediente necessário à tramitação de qualquer processo urgente, que não seja possível remeter por meios eletrónicos, poderá ser entregue fisicamente desde que respeitadas as recomendações emitidas pelas autoridades de saúde na sua entrega e manuseamento. 

4. Quando não se mostre viável a tramitação de processo de natureza urgente através da utilização de sistema de “acesso remoto”, designadamente porque o processo não está integralmente digitalizado ou por esse acesso não ser tecnicamente viável, o despacho deverá ser assegurado por Magistrado que, de acordo com a organização do serviço que venha a ser definida pela estrutura hierárquica, se encontre em funções presencialmente no tribunal. 

5. O restante serviço a cargo dos Magistrados do Ministério Público, apesar de suspenso quanto ao decurso dos prazos processuais, poderá, sempre que tal se mostre possível e adequado, v.g. face ao volume de serviço e aos concretos processos em causa e, mormente para recuperação de pendências, ser assegurado, através de meios de comunicação à distância, designadamente através de acesso remoto às aplicações informáticas de tramitação dos processos (via VPN), teleconferência ou videochamada. 

6. Considerando o exercício do direito fundamental do Acesso à Justiça, nas suas diversas dimensões, os incidentes de aceleração processual devem ser remetidos à PGR, via SIMP, através do imediato superior hierárquico, e apenas instruídos com o respetivo requerimento. 

6.1. Sempre que a consulta do inquérito for possível através de acesso remoto ou sistema VPN, deverá igualmente ser remetido, juntamente com o requerimento, um relatório sucinto enquadrador dos elementos essenciais que habilitem à decisão. 

7. Sem prejuízo do determinado na Deliberação do Conselho Superior do Ministério Público de 27-03-2020, os Magistrados do Ministério Público decidirão casuisticamente a submissão ou não dos arguidos a julgamento em processo sumário, a realização do seu interrogatório não judicial ou a sua submissão a interrogatório judicial para aplicação das medidas de coação que na circunstância se imponham, ponderando as condições de segurança sanitárias disponíveis no Tribunal, a salvaguarda do interesse público associado à declaração do estado de emergência, a necessidade de proteção das vítimas e de imediata realização da justiça e, bem assim, a suscetibilidade de aplicação imediata de medidas de coação. 

7.1. A estrutura hierárquica de nível imediatamente superior será informada das decisões proferidas no quadro aludido no ponto que antecede. 

8. A atividade pericial solicitada aos Gabinetes Médico-Legais (GML), que não diga respeito a autópsias médico-legais (estas também com as condicionantes determinadas pelo INMLCF e a articulação necessária com os GML), exames sexuais e perícias em contexto de ofensas à integridade física, maus-tratos e violência doméstica em que esteja em risco a preservação e aquisição de prova, apenas deverá ser determinada mediante prévia articulação com o GML respetivo. 

9. Deverão ser privilegiados os meios de comunicação à distância, na articulação a realizar, muito em particular com os órgãos de polícia criminal e outras entidades de apoio e coadjuvação, bem como com as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens. 

10. Os Magistrados do Ministério Público deverão continuar a garantir uma articulação próxima com os OPC e com as CPCJ, considerando a eventual necessidade de orientação na readaptação de diligências a realizar ou já em curso que careçam de intervenção, face às limitações impostas durante o período a que se refere o artigo 7.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março.

11. Sem prejuízo do enunciado no número anterior, os Magistrados deverão reportar, via hierárquica, à Procuradoria-Geral da República os constrangimentos que se verifiquem em concreto na articulação com os OPC ou as CPCJ. 

12. Especial atenção deverá igualmente ser conferida à necessidade de manter uma estreita articulação comunicacional com as estruturas da Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica, em pleno funcionamento, e cujos contactos atualizados podem ser obtidos no portal da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) (https://www.cig.gov.pt/). 

13. Os Magistrados do Ministério Público que não disponham de acesso remoto aos processos para poderem praticar atos processuais à distância deverão contactar as equipas de proximidade do IGFEJ para obterem a credenciação necessária para o efeito. 

14. Os Magistrados do Ministério Público coordenadores e Diretores de Departamentos deverão articular com as equipas locais de apoio informático a promoção e disponibilização dos meios tecnológicos necessários para cumprimento da presente diretiva, nomeadamente os meios que permitem o trabalho remoto com recurso às TIC. 

15. Na impossibilidade de desenvolver localmente as soluções tecnológicas referidas no ponto anterior, deverão os Magistrados do Ministério Público coordenadores e Diretores de Departamento representar a situação diretamente, com conhecimento aos respetivos Procuradores-Gerais Regionais, ao Departamento de Tecnologias e Sistemas de Informação da Procuradoria-Geral da República (DTSI), via SIMP, o qual deverá, se necessário em articulação com o IGFEJ, promover as soluções tecnológicas adequadas. 

16. Os Magistrados do Ministério Público devem abster-se de comparecer no respetivo local de trabalho, privilegiando o teletrabalho e restringindo a sua deslocação a situações pontuais e imprescindíveis, mormente nos casos em que devam praticar atos processuais presencialmente nas situações objeto da Deliberação do Conselho Superior do Ministério Publico de 27-03-2020, de acordo com os termos e organização a definir pelos Magistrados do Ministério Público hierarquicamente competentes para o efeito. 

17. Os planos de turno já concretizados para o período de contingência são acionados quando não seja possível assegurar a regra relativa às substituições legais. 

18. O serviço de turno instituído para as férias judiciais da Páscoa será cumprido de acordo com os planos de turno já concretizados para o período de contingência. 

19. Os Magistrados que marcaram férias pessoais para o período de férias judiciais da Páscoa poderão, se assim o desejarem, dá-las sem efeito, através de comunicação endereçada, consoante os casos, aos Magistrados do Ministério Público Coordenadores de Comarca, ao Procurador-Geral Regional ou ao Procurador-Geral da República, no prazo de 72 horas após a entrada em vigor da presente Diretiva. 

20. Em caso de dúvida interpretativa, de concretização ou constrangimento funcional, deve a mesma ser reportada superiormente, via Procuradoria-Geral Regional, ao Gabinete de acompanhamento e gestão do estado de emergência da Procuradoria-Geral da República, no qual se encontram representados os Magistrados coordenadores dos diversos Departamentos e Gabinetes da Procuradoria-Geral da República. 

21. A presente diretiva não prejudica os Planos de Contingência adotados pelas Procuradorias-Gerais Regionais, em tudo o que não contendam, devendo proceder-se à sua adequação nos casos em que se mostre necessário. 

22. Na aplicação das determinações constantes da presente diretiva ter-se-á em consideração a disponibilidade dos Senhores Oficiais de Justiça afetos ao Ministério Público, de acordo com as orientações emanadas pelos seus órgãos de gestão, assegurando que, no cumprimento dos despachos e diligências, é possível cumprir as regras sanitárias emanadas pelas autoridades de saúde. 

23. Os Magistrados do Ministério Público devem fazer uso do respetivo cartão profissional, atributivo de livre-trânsito, em todas as suas deslocações efetuadas no exercício das suas funções profissionais ou por causa delas. 


A presente diretiva entra em vigor na data da sua publicação no SIMP e no Portal do Ministério Público e cessa os seus efeitos na data em que produzir efeitos o Decreto-Lei que declare o termo da situação excecional. 


Publique-se no SIMP e no Portal do Ministério Público. 

Comunique-se: 

- A S. Excelência a Ministra da Justiça;

- Ao Presidente do Conselho Superior da Magistratura;

- À Diretora-Geral da Direção Geral de Administração da Justiça;

- Ao Diretor-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais;

- À Secretária Geral do Sistema de Segurança Interna;

- Ao Diretor Nacional da Polícia Judiciária;

- Ao Comandante-Geral da Guarda Nacional Republicana;

- Ao Diretor Nacional da Polícia de Segurança Pública;

- Ao Comandante-Geral da Polícia Marítima;

- À Diretora Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras;

- Ao Inspetor-Geral da ASAE;

- Ao Bastonário da Ordem dos Advogados;

- Ao Presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses;

- À Presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção de Crianças e Jovens.»

COVID-19 & Serviços Prisionais

Pela sua relevância, cita-se na íntegra o comunicado oficial sobre o tema da relevância da pandemia COVID-19 no sistema prisional:

«Saúde nos prisionais: investimento, responsabilidade e solidariedade

Nos tempos difíceis que atravessamos é fundamental contar com a responsabilidade social de todos, com vista ao reforço da cooperação, solidariedade e transparência.

Nos últimos dias, temos assistido a uma divulgação de informação sobre os serviços prisionais por vezes contraditória, nem sempre válida e rigorosa, e claramente geradora de alarme social.

A população reclusa, para acautelar a saúde de toda a comunidade prisional, tem estado privada de visitas e contatos com o exterior, pelo que mais dificilmente pode aceder a informação credível.

Deste modo, mais uma vez publicamos as medidas mais importantes até agora tomadas com o objetivo de proteger todos os profissionais dos serviços prisionais e a população reclusa:

1. Está aprovado e divulgado pelo sistema prisional, desde dia 17 de fevereiro, o Plano de Contingência para o Covid-19 (na altura referente à fase de contenção). Face ao evoluir da situação este Plano de Contingência tem vindo a ser regularmente atualizado.

2. Na segunda-feira, 30 de março, foram recebidas 22 mil máscaras, das quais 13 900 foram distribuídas por todo o país (exceto regiões autónomas que receberão nos próximos dias).

3. O stock de máscaras e outros materiais de prevenção de contágio irão ser renovados à medida das necessidades.

4. Igualmente, na segunda-feira, 30 de março, foi emitida uma ordem do Diretor-Geral aos serviços, reforçando que as máscaras devem ser usadas por todos os colaboradores – é-lhes dada uma máscara sempre que iniciam as funções diárias.

5. Neste momento há quatro infetados com Covid-19: Uma auxiliar e um guarda prisional (resultados recebidos hoje) do Hospital Prisional S. João de Deus e um guarda do EP Porto/Custóias (todos em isolamento domiciliário segundo indicação da saúde pública). Uma detida que entrou da liberdade já infetada em isolamento no Hospital Prisional.

6. Graças ao protocolo estabelecido entre a Saúde e a Justiça, desde 2018, a população reclusa passou a ter acesso dedicado a cuidados de saúde, nomeadamente: prescrição eletrónica de medicamentos; consultas da especialidade por teleconferência e disponibilidade de consultas e cuidados médicos nos estabelecimentos prisionais; vacinação contra a gripe e pneumonia; tratamento de doenças infeciosas como a hepatite e HIV (cerca de 1500 reclusos); entre outros investimentos consideráveis.

7. Toda a população reclusa passou a ser diagnosticada e acompanhada por médicos especialistas, otimizando-se assim o tempo de reclusão como uma oportunidade de tratamento dos que o necessitam, com ganhos em saúde para o próprio, para o sistema e para a comunidade.

8. O sistema prisional não tem parado de investir em matéria de saúde:

2017 - 5,2 milhões de euros;

2018 - 9,9 milhões de euros;

Até 31.10.2019 - cerca de 10 milhões de euros.

9. Tem sido posta em prática, desde 2015, uma estratégia racional para pôr termo à sobrelotação das prisões em Portugal. Em dezembro de 2015 havia 14 074 reclusos para 12 591 lugares (sobrelotação de 111,8 por cento).

Em dezembro de 2019 existiam 12 934 reclusos para 12 634 lugares (taxa de ocupação de 97,6 por cento).

10. O investimento na saúde nos estabelecimentos prisionais tem vindo a ser reconhecido pelas instâncias internacionais competentes. Por exemplo a World Health Organization (WHO):

«”Portugal is at the international forefront of access to health in prisons”, stated Carina Ferreira-Borges, Programme Manager of the Prisons and Health Programme at the WHO European Office for Prevention and Control of Noncommunicable Diseases, who attended the ceremony on 16 July [2018] where the newly proposed model of work was signed by hospitals and prisons, in the presence of the ministers of health and justice.

The Portuguese health system recognizes prisons as an opportunity for public health, as the period of imprisonment can also be used to treat infectious diseases in individuals who would otherwise experience limited access or interrupted treatment cycles, due to situations such as extreme poverty and social vulnerability» Ver aqui:

Junção de documentos em recurso penal?

Tema relevante é saber se é admissível a junção de documentos em sede de recurso penal, por eventual aplicação analógica, para integração de lacuna, do preceituado no Código de Processo Civil e isto por acção do artigo 4º do Código de Processo Penal.

Sobre este tema, o Acórdão da Relação de Évora de 18 de Fevereiro de 2020 [proferido no processo n.º 73/15.1GHSTC.E1, relator Martinho Cardoso, texto integral aqui] sentenciou: 

«Os art.º 425.º e 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que em certas condições permitem a junção de documentos com as alegações dos recursos cíveis, não têm aplicação no processo penal por via do art.º 4 deste último código, por não se tratar de caso omisso.»

Para a compreensão do tema, citem-se aqueles preceitos do Código de Processo Civil:

-» Artigo 425º: «Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.»

-» Artigo 651, n.º 1: «As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.2 - As partes podem juntar pareceres de jurisconsultos até ao início do prazo para a elaboração do projeto de acórdão.»

Ora a fundamentar o decidido, expressou-se assim o Acórdão nesta parte da sua fundamentação:

«Diz o art.º 165.º, n.º 1, que o documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência. Da audiência da 1.ª Instância.
O processo penal vigente caracteriza-se por uma filosofia de parificação do posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os seus actos e de igualdade material de "armas" no processo.

Tal significa que a apresentação de um documento, seja pela acusação ou pela defesa, tem de ser sujeita ao contraditório e pode suscitar as mais variadas reacções de contraprova pela parte contrária. Ora essa actividade tem que ter lugar na 1.ª Instância e não nesta Relação, que não possui mecanismo processual adequado a lidar com essa situação.

Daí que qualquer documento só possa ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, excepcionalmente, não sendo isso possível, deve sê-lo então até ao encerramento da audiência da 1.ª Instância.

Os art.º 425.º e 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que em certas condições permitem a junção de documentos com as alegações dos recursos cíveis, não têm aplicação no processo penal por via do art.º 4 deste último código. O art.º 4 destina-se a suprir os casos omissos e o caso que estamos a tratar está expressamente regulado nos art.º 164.º e 165.º do Código de Processo Penal; não se trata pois de um caso omisso. O legislador é que deliberadamente não quis para o processo penal o regime contido nos mencionados art.º 425.º e 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Senão tinha-o importado.

De resto, se o arguido não esteve presente em julgamento por forma a apresentar quaisquer documentos que lhe interessassem, foi porque não quis, uma vez que estava notificado das datas do mesmo e faltou até sem apresentar justificação.

(Sobre o assunto: Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, 16.ª ed. , pág. 391; Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal (…)”, 3.ª ed. , pág. 447; “Código de Processo Penal, Comentários e Notas Práticas dos Magistrados do M.º P.º do Distrito Judicial do Porto”, pág. 428; e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10-2-1994 e de 30-11-1994, Colectânea de Jurisprudência dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1994, respectivamente tomo I-227 e tomo II-262; e, agora em www.dgsi.pt, acórdão da Relação do Porto de 11-6-2008, proferido no processo 0842171 e do STJ de 22-10-2008, processo 08P2832).»

Recorribilidade directa dos despachos

Verdadeira ratoeira processual o saber-se se os despachos são passíveis de recurso directo ou se o mesmo só é admissível quanto a decisões proferidas que desatendam a arguição da invalidade dos mesmos.
Tornando claro que a cautela é de rigor, o Acórdão da Relação de 9 de Março de 2020 [proferido no processo nº 170/19.4GAPTB-A.G1, relator Armando Azevedo, texto integral aqui] determinou, como foros de generalidade que: «apenas a nulidade da sentença e não também dos meros despachos é legalmente possível suscitar diretamente por via da interposição de recurso, cfr. nº 2 do artigo 379º do CPP, segundo o qual “As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso…”.»
Nesta lógica restritiva, os despachos apenas admitem recurso directo quando houver sobre isso previsão  legal expressa.

MDE e garantias exigíveis

Clarificando o âmbito e o alcance do mandado de detenção europeu, o Acórdão da Relação de Évora de 18 de Março de 2020 [proferido no processo n-º 103/19.8YREVR, relator Renato Barroso, texto integral aqui] estatuiu:


«I - O objectivo de um MDE destinado à entrega do requerido para procedimento criminal não se resume à mera transferência de pessoas para interrogatório na qualidade de suspeitos, pois para este efeito, outras medidas existem, em alternativa, como a decisão europeia de investigação, que pode ser utilizada para obter provas provenientes de outro Estado-Membro e que abrange qualquer medida de investigação, incluindo o mero interrogatório do suspeito no âmbito de um procedimento criminal no qual ainda não foi deduzida a acusação, o qual pode até ser feito através de videoconferência, a fim de determinar se deve, ou não, ser emitido, posteriormente, um MDE tendo em vista julgamento.

«II - O caso de um MDE em que se solicita a entrega do requerido para procedimento criminal é algo de diferente, abrangendo, também, a fase de julgamento.

«III - O pedido de entrega de um individuo para efeitos de procedimento criminal, implica, necessariamente, que a sua devolução ao Estado de que é natural ou residente, apenas aconteça, após a sua audição em julgamento, se a tal houver lugar, pois não se concebe que este corra à sua revelia.»

A consequência prática desta interpretação ressalta a nível das garantias exigíveis:

«Daí que, nestes casos, se aplique, por inteiro, a obrigatoriedade da prestação, por parte do Estado-Membro requerente, da garantia prevista no nº3 do Artº 5 da Lei-Quadro 2002/584/JAI e que foi vertida no nosso ordenamento jurídico na al. b) do nº1 do Artº 13 da Lei 65/03 de 23/08, no sentido de a pessoa procurada ser devolvida ao seu país de origem ou de residência, para cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade, caso venha a ser condenada no julgamento relativo ao procedimento criminal que gera o MDE.

É certo que se desconhece, em concreto, o estado do inquérito em causa, ainda que, tanto quanto se saiba, não foi proferida qualquer acusação contra o arguido.

Mas o pedido de entrega de um individuo para efeitos de procedimento criminal, implica, necessariamente, que a sua devolução ao Estado de que é natural ou residente, apenas aconteça, após a sua audição em julgamento, se a tal houver lugar, pois não se concebe que este corra à sua revelia. (Cfr., neste sentido, Acórdão do STJ, de 20/06/12, proc. 445/12.3YRLSB.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Ora, essa foi, precisamente, a garantia assegurada pelas autoridades austríacas, no sentido de devolver o arguido a Portugal - país onde reside desde os 3 anos de idade, tendo autorização de residência permanente válida até 09/12/2027, aqui trabalhando e tendo toda a sua família - assim que for ouvido, em audiência de julgamento, com vista ao cumprimento da eventual pena da medida de segurança em que venha a ser condenado.

Nessa medida, a garantia prestada pelo Estado emitente do mandado, preenche o conteúdo material da garantia preconizada pelo nº3 do Artº 5 da Lei-Quadro 2002/584/JAI e al. b) do nº1 do Artº 13 da Lei 65/03 de 23/08.»




Requisitos do RAI

O entendimento estava de há muito adquirido: a instrução, pois tem de ter objecto factual e jurídico e não podendo correr contra incertos, até por não ser uma outra fase de investigação - os actos de instrução têm carácter subsidiário face à sua finalidade - obrigam a que o requerimento respectivo esteja adstrito a requisitos específicos. Eis o que rememorou o Acórdão da Relação de Évora de 18 de Março de 2020 [proferido no processo n.º 1710/18.1T9FAR.E1, relator Alberto Borges, texto integral aqui].
Na sua fundamentação, o aresto lembra que «o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a questão da constitucionalidade da norma do artigo 283 n.º 3 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas, tendo declarado a sua não inconstitucionalidade (veja-se, entre outros, o acórdão n.º 358/04 desse Tribunal, publicado na II Série do DR n.º 150, de 28 de junho de 2004).»

Branqueamento de capitais: o fim das três fases necessárias


Uma perspectiva sobre o crime de branqueamento de capitais que reconfigura a sua categorização clássica: onde o mesmo se caracterizava pela existência de três etapas, tidas como necessárias para a sua verificação, agora, segundo este entendimento expresso pela da Relação do Porto no seu acórdão de 18 de Março [proferido no processo 1551/19.9T9PRT.P1, relator Moreira Ramos, texto integral aqui], secundando a perspectiva do mesmo Tribunal em decisão de 18 de Julho de 2013, para a realização do tipo de ilícito basta qualquer uma.

É este o sumário do decidido: «I – O crime de branqueamento de capitais p. e p. pelo art.º 386º-A do Código Penal [manifesto lapso de escrita, trata-se do artigo 368º-A] tem vindo a sofrer diversas algumas alterações, não exigindo actualmente que uma determinada conduta abranja as denominadas três fases ou etapas que constituem as modalidades de acção de branqueamento, a saber, a colocação, a circulação e a integração, bastando-se com a prática de qualquer delas.»

Jurisprudência criminal: ponto de situação

Na medida do possível há que retomar a normalidade. Fui rever o estado da jurisprudência publicada na dgsi [esse iceberg como alguém já mencionou, que traduz uma parte apenas da jurisprudência produzida] e eis, para já o ponto de situação:

-» STJ: 31 de Dezembro de 2019 [incompreensível, diga-se o atraso]: ver aqui
-» TRC - 6 de Março de 2020: ver aqui
-» TRE - 18 de Março de 2020: ver aqui
-» TRG - 9 de Março de 2020: ver aqui
-» TRL - 5 de Março de 2020: ver aqui
-» TRP - 18 de Março de 2020: ver aqui

Segunda etapa será visitar cada um dos espaços e ir anotando aqui o que me for possível.

Abolir o estatuto de assistente?

Se há estatuto ambíguo no nosso Direito ele é o de assistente. Distingue-se teoricamente do lesado mas na prática confunde-se com ele. Os seus contornos jurídicos são fluídos e assim tem ficado à mercê das interpretações jurisprudenciais. 
Exemplo, o que se passou com a denúncia caluniosa, em que começou por ser negada a possibilidade de os caluniosamente denunciados serem constituídos como tal nos processos-crime pelos quais pretenderam a punição do caluniador, por se entender que era um crime contra a justiça e, por isso, atacados, embora, num direito constitucional, não poderiam ter um estatuto processual cuja natureza era estritamente penal e assim lhes negava o direito de actuação; foi preciso uma segunda reflexão para enfim, uma nova visão das coisas junto dos tribunais superiores, se abrir a possibilidade dessa assistência.
Por outro lado, mau grado a fórmula legislativa segundo a qual eles actuam subordinadamente ao Ministério Público de quem são colaboradores [artigo 69º, n.º 1 do CPP], a verdade é que a própria lei lhes reconhece zonas de actuação sem o Ministério Público e contra o Ministério Público: assim podem requerer instrução contra a posição do Ministério Público [artigo 287º, n.º 1, b) do CPP], podem recorrer mesmo que o Ministério Público não recorra [artigos 69º, n.º 1, c) e 401º, n.º 1, b) do CPP].
Neste território de incerteza jurisprudencial, resultante de falta de uma estrutura jurídica coerente que oriente nesta matéria, avultam zonas do processo em que ou pode ser concedia ou negada a constituição como assistente [exemplo ao crime de falsificação, mesmo quando instrumental da burla], ou em que pode ser rejeitado o recurso do assistente [assim o recurso quanto à medida da pena].

Creio não errar ao escrever que a figura do assistente é privativa do nosso Direito processual penal, porquanto o que é regra no Direito Comparado é ser admitido no processo penal o lesado, aquele que sofreu danos resultantes de um crime, para que possa aí fazer valer os seus direitos; e hoje estar franqueada também a intervenção a vítima, essa sim, a figura processual com substância e que deveria ter relevo consumindo a de assistente, mas que tem a magreza de meios processuais de intervenção que lhe confere o artigo 67º-A do CPP.

Não se estranha pois que tenha sido necessário chegar-se ao Supremo Tribunal de Justiça e neste à definição por uniformização de jurisprudencial através do Acórdão de 13 de Fevereiro  [publicado hoje no Diário da República n.º 61/2020, Série I de 2020-03-26, texto integral aqui]; o que espanta [com o devido respeito] é ter sido possível pensar-se o contrário, sobretudo ante a injustiça que uma tal interpretação, ora derrotada,  significaria.

Definiu agora, enfim, o Supremo Tribunal de Justiça [mesmo assim com dois votos de vencido], consagrando a jurisprudência que já era maioritária nesse tribunal: 


«O assistente, ainda que desacompanhado do Ministério Público, pode recorrer para que a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado fique condicionada ao pagamento, dentro de certo prazo, da indemnização que lhe foi arbitrada».

O acórdão fundamenta o decidido. Mas fica o que há pouco referi: quer isto dizer que a interpretação adversa, que assim ficou vencida, permitia que aquele que via na suspensão da pena a única possibilidade de reparação do sofrido pelo crime, e via a sentença que a decretou desconsiderar essa faceta, não poderia suscitar a intervenção dos tribunais superiores desde que o Ministério Público se desinteressasse com tal problema do cidadão e não recorresse? Sim, porque se entendia que na suspensão da pena estavam em causa valores estritamente penais [e não temas ressarcitórios privados].

A defesa dessa posição, assim se colhe num dos voto de vencido, assenta numa visão puramente conceptual da realidade.

Consta desse voto: «A aplicação duma pena de substituição está sujeita à verificação de pressupostos específicos, nomeadamente os respeitantes a considerações de prevenção especial de socialização e de defesa do ordenamento jurídico. Quando o assistente pretende, através do recurso interposto, que se condicione a suspensão de execução da pena ao pagamento duma indemnização dentro de um determinado prazo, não pretende discutir qualquer um daqueles pressupostos, mas única, e simplesmente, munir-se de um meio reforçado de obter a defesa do seu direito. Visa um interesse particular e não um interesse colectivo.»

Ante uma tal posição, duas vias eram viáveis para se ultrapassar esta visão das coisas: ou mover o raciocínio dentro das categorizações jurídicas, e tantas vezes é nesse território que tudo se resolve, ou reagendar o tema primordial da finalidade punitiva ainda que por decorrência de uma pena de substituição e, sobretudo, numa lógica de protecção das vítimas. 

Isto, ante um problema que, na sua própria configuração patenteia um ilogismo: se [de acordo com certa jurisprudência] o estatuto de assistente tem natureza estritamente [processual] criminal [e daí tanta exclusão de candidatos a assistentes em relação a certos crimes], agora é a natureza civil do que pretendem [indemnização como injunção em caso de condenação do arguido a pena de substituição] que serve de fundamento para os rejeitar de um território onde estariam agora [em exclusivo] valores de cunho jurídico-penal.

Segundo a primeira perspectiva, a técnica, estará em causa na matéria o conceito de interesse em agir como complemento da noção de legitimidade processual e no caso legitimidade para a interposição de recurso. Ora, nesta vertente, a da configuração do interesse em agir como equivalente ao da "necessidade do recurso" [expressão cunhada por Paulo Pinto de Albuquerque], louva-se o acórdão que acompanho nas palavras de Cláudia Cruz Santos, segundo a qual o interesse em agir não existe apenas nas circunstâncias em que ele exprime uma pretensão ressarcitória que pretende que seja considerada na operação de determinação da pena em sentido amplo (ainda que nesses casos deva considerar-se que tal interesse de facto existe, na medida em que tal pretensão expressa a necessidade de encontrar uma resposta - no caso, a reparação - que considere justa para o mal de que foi vítima)», indo, contudo, essa Autora mais longe quando destaca que «enquanto assistente, ele tem o poder de procurar conformar a resposta à questão penal que engloba quer a questão da culpa, quer a questão da pena», caso a decisão seja contra ele proferida e tiver interesse em agir.

De acordo com a segunda vertente, e como o aresto do Supremo o refere expressamente, haveria que ultrapassar essa visão "redutora" e convocar dois ângulos de avaliação jurídica do tema, os quais têm a ver com a caracterização global do sistema.

Um, aquele que releva estar o dever de indemnizar, assim como os demais deveres que dão corpo às alíneas do n.º 1 do artigo 51.º do CP [respeitante à suspensão da pena], «para lá da função de reparação do mal do crime, visam, também, a realização dos fins das penas, conforme a doutrina e jurisprudência vária têm assinalado.», ou seja, que o tema da indemnização em processo penal está, afinal, numa lógica de convergência com as finalidades jurídico-penais não sendo uma outra realidade a elas estranha.

Outro dos ângulos é o que releva a protecção da vítima, noção sistematicamente clamada em nome dos nobres princípios mas reiteradamente desconsiderada por critérios que na prática os desconsideram. É tese que, no desenvolvimento argumentativo do caso, surge como a mais frágil, [mas não irrelevante] porquanto assenta nesta equação «embora a figura da vítima se não confunda com a do assistente (este, enquanto sujeito processual), ambas as figuras coexistem, as mais das vezes, na mesma pessoa» o que significa que se vai buscar tutela para este [assistente] em função da consideração daquela [vítima], o que seria idêntico e como tal discutível a valorar-se de modo idêntico se a equação fosse lesado/assistente em termos de conferir a este direitos em nome da tutela daquele.

Ora é chegados a este ponto que definitivamente o tema nuclear se me colocado: é tempo de rever o conceito de assistente, ao limite abolindo-o em prol de uma potenciação processual do estatuto de vítima e de clarificação do de lesado.

A figura está desautorizada, até pela sua régia concessão, por via legislativa e generalizada complacência jurisprudencial, a todos, sem qualquer relação substancial com o objecto do processo e até para a prossecução de outras finalidades [a de informar jornalisticamente, por exemplo] se prevalecem do acesso a tal instituto relativamente a um largo espectro de crimes [artigo 68º, n.º 1, e) do CPP].

Para além disso, as zonas diluídas quanto à sua caracterização, como acima aflorei, prestam-se a decisões jurisprudenciais contraditórias que, se os teóricos consideram interessantes para as suas análises académicas e até demonstração da vivacidade do Direito, são, em suma, injustiça e desprestígio para os tribunais.

E de resto sejamos claros: concebido historicamente como forma de garantir a sindicabilidade indirecta do Ministério Público, meio que foi em momentos difíceis da nossa vivência judiciária de garantir que certos processos chegassem, enfim, a julgamento [assim em 1972, precisamente por intervenção do STJ] ante «amnistias administrativas do Ministério Público» [a expressão é do Emygdio da Silva], o estatuto de lesado acaba por se tornar, perversamente, a forma de o lesado [despojado estaria se o não fizesse] motorizar o processo penal para, no final, buscar as magras indemnizações que são, aliás, o apanágio dos nossos tribunais.

Tudo isto está mal. E quando um edifício tem erros ao nível da sua estrutura, não se estranhe que surjam fendas nas paredes e ameace ruína.

Covid-19 e flexibilização fiscal


A Autoridade Tributária informa no seu site:

«Perante a situação epidemiológica que o país atravessa e na tentativa de minimizar os seus efeitos, face ao calendário fiscal, às obrigações de pagamentos para o segundo trimestre de 2020 e às demais obrigações fiscais, foram adotadas as seguintes medidas:


O pagamento especial por conta (PEC) de IRC a efetuar em março pode ser efetuado até 30 de junho de 2020. (Despacho n.º 104/2020 – XXII – SEAF)

A declaração periódica de rendimentos de IRC (declaração Modelo 22) do período de tributação de 2019, pode ser cumprida até 31 de julho de 2020. (Despacho n.º 104/2020 – XXII – SEAF)

O 1º pagamento por conta e 1º pagamento adicional por conta, ambos de IRC, a efetuar em julho, podem ser efetuados até 31 de agosto de 2020. (Despacho n.º 104/2020 – XXII – SEAF)

A aplicação do regime de justo impedimento no cumprimento das obrigações declarativas fiscais, relativamente a contribuintes ou contabilistas certificados, aplica-se nas situações de infeção ou de isolamento profilático declaradas ou determinadas por autoridade de saúde. (Despacho n.º 104/2020 – XXII – SEAF)

Aplicação do regime das férias judiciais aos prazos tributários que corram a favor dos contribuintes e que respeitem atos de interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como aos prazos para a prática de atos no âmbito dos mesmos procedimentos tributários (artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março).»